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Um homem de múltiplas paixões

Arquitecto Costa Rosa adora Tomar, ferve com os touros e viaja sempre com um bloco de desenho

Começa por avisar que gosta muito de falar, hábito que lhe ficou do tempo em que foi professor. Mas conversar com o arquitecto Costa Rosa, 83 anos, é entrar numa viagem repleta de interesse. Tomar, o ensino, a arquitectura, as touradas, as viagens, os projectos, os desenhos e a família são apenas algumas das suas grandes paixões. Cada história é entrelaçada por mais histórias, todas igualmente deliciosas. Elsa Ribeiro Gonçalves

Quando é que descobriu que tinha jeito para o desenho?Sempre tive gosto por desenho. Já em criança agarrava em blocos e saía à rua para desenhar. A minha mãe sempre me apoiou muito. O meu pai queria que eu fosse médico. Ainda cheguei a fazer a admissão para arquitectura e veterinária. Acabei por ir para arquitectura. No meu tempo só havia desenho geométrico até ao terceiro ano. Para seguir Arquitectura, na Escola Superior de Belas Artes, precisava de obter outros conhecimentos, por exemplo, do claro-escuro e da perspectiva. O meu pai tinha amizade com o pintor Henrique Tavares que, tinha eu 16 anos, me deu umas “luzes” aqui em casa. Recordo que a primeira coisa que ele me mandou fazer em perspectiva foi um relógio de parede. Estudava desenho na escola e depois das aulas?Estudava no colégio mas cheguei também a ir à escola industrial estudar desenho. O meu pai foi pedir ao director, Dr. José Tamagnini, para que eu pudesse assistir às aulas de desenho geral e de serralheiros. A escola tinha umas peças de gesso decorativo. O recurso a este gesso permite que nas superfícies brancas vejamos melhor o claro-escuro. O meu professor era Jorge Pinto que era sobrinho de Henrique Pinto que foi professor da minha avó. Ela tinha quadros de Malhoa, Manuel de Macedo. Tinha grande contacto porque o meu trisavô (o avô da minha avó) era um homem de propriedades e tinha um grande contacto com Carlos Relvas, da Golegã. A sua avó tirou o curso de desenho?!A minha avó (materna), Glória Gândara, desenhava extraordinariamente bem. Tirou o curso de desenho e ajudava o meu avô, que construía carros à antiga para as famílias da Golegã e arredores. A minha avó desenhava os carros, muitas vezes a partir de revistas que vinham da Alemanha. Lembro-me de estar com os meus primos - não tenho irmãos - a ver esses desenhos. Devemos ter dado cabo deles porque já não estão no espólio da família. Herdou da sua avó esse jeito para as artes?Não acredito muito nos genes. Acredito mais no contacto, na influência que as pessoas podem exercer sobre nós. Como foi a passagem pelo antigo Colégio Nun’Álvares?Andei 11 anos no Colégio Nuno Alvares, quatro de instrução primária e sete de liceu. Estava para ir para o ensino oficial mas o meu pai atrasou-se na matrícula e só havia possibilidade de ir para uma escola em Carvalhos de Figueiredo. O meu pai não tinha carro, de maneira que teve que recorrer ao colégio. O externato funcionava no edifício onde hoje é a sede da Misericórdia, na Av. Cândido Madureira, e o internato junto à ARAL, na Av. Nuno Álvares Pereira. Havia duas turmas de instrução primária. A dos rapazes, dada pela D. Noémia, e a turma das meninas dada pela D. Alice, mulher do Dr. Raul Lopes. Não havia carteiras suficientes na turma dos rapazes e fui escolhido, com mais dois colegas, para ingressar na turma das meninas. Privou de perto com o Dr. Raúl Lopes, director do colégio?O Dr. Raúl Lopes era um grande democrata. Mas mais do que ele era o Dr. Gil Marçal, que era o sub-director do colégio. Tenho uma história muito engraçada para contar. Quando tocava a campainha, os rapazes dirigiam-se para a porta da sala e aguardavam pela chegada do professor. O Dr. Gil Marçal atrasava-se muitas vezes. Deitava-se tarde porque lia muito. Certo dia, à porta da sala 8, lá estávamos a aguardar uma vez mais pelo Dr. Gil Marçal. O Dr. Raúl Lopes, que era uma pessoa severa, viu-nos ali e ficou também à espera no corredor. Quando o Dr. Gil Marçal chegou, apressado, Raúl Lopes começou a olhar para o relógio, ao que este disse (pede desculpa por utilizar o termo): Badamerda! À nossa frente! Nunca mais nos esquecemos daquilo. Mas nunca perdemos o respeito ao Dr. Raúl Lopes. Respeito e até um certo receio...Foi professor na Escola Jácome Ratton toda a vida?Dei aulas durante 41 anos. Mas quando acabei o curso tive oportunidade para ir trabalhar em duas câmaras, Coimbra e Setúbal, porque estavam a meter arquitectos. Concorri para Coimbra e fiquei em primeiro lugar, porque tinha tido uma boa classificação de curso. Ia a caminho de Coimbra e achei a estrada horrível. Depois, por coincidência, encontrei o arquitecto que ia de lá sair e que me disse que “me ia meter no fosso das víboras”. A machadada maior foi quando o presidente da Câmara de Coimbra, o Dr. Moura Relvas, me disse quando me preparava para tomar posse que eu só tinha que seguir três trâmites: Deus, Pátria e Família. E eu respondi-lhe: “Sr. Dr., de técnica nada?”. Acabei por recusar assinar o contrato. Para Setúbal também acabei por não ir porque um colega, que tinha andado no curso comigo, morava lá e ligou-me a pedir para não aceitar porque tinha o lugar preparado para ele. Pensei em ser mestre de escola industrial. E dava aulas de quê?Primeiro de marceneiro-carpinteiro. Depois de construção civil que consegui, através de conhecimentos, trazer para a escola industrial. Nesse tempo só havia em Lisboa, Porto e Coimbra. Depois dei o curso de desenhador de construção civil que tinha 18 horas de desenho semanais. Era extraordinário. Dei coisas que não aprendi no meu curso superior. Eram muitas horas de desenho por semana…Acho que há uma falta medonha de ensino técnico no sistema de ensino actual. Deram cabo do ensino técnico. O ensino técnico era a menina dos meus olhos. A ensinar aprendi muito. E a visitar obras também aprendi muito. Os melhores encarregados de obra são os que foram carpinteiros. Porque o carpinteiro vai até ao milímetro. “Sou um louco por Tomar”Chegou a pertencer à Comissão da Festa dos Tabuleiros. Sempre se envolveu muito com as coisas de Tomar?Para mim, depois da minha mãe, Tomar é minha mãe também. Sou um louco por Tomar. Amo-a porque é bonita. Não há uma cidade como esta em lado nenhum. Acho que para além de Tomar só não me importava de viver em Évora. Cada vez que vou lá encontro coisas novas. Como quando vou ao Convento de Cristo. Gosto do rio, das pessoas. Tomar é uma beleza.O que acha da evolução da cidade em termos urbanísticos?Escrevi uma vez num livro que foi lançado numa Festa dos Tabuleiros que a urbanização de Tomar é um horror. Para mim, esta urbanização é disparatada. Não tem consistência. O Bairro da Nabância é uma das poucas coisas da cidade que me parecem razoáveis. Não tem obras públicas em Tomar?Só fiz obras para particulares. A primeira que fiz foi uma moradia junto à Praça de Touros (procura um álbum com fotografias da obra para mostrar). Devo dizer que devo muito ao José Luís da Fonseca que me arranjou muito trabalho. E trabalhei muito para o Manuel Freitas Lopes. Fiz ainda o projecto da casa paroquial da Igreja São João Baptista. Nunca se quis meter na política?Nunca. Disse-me o meu pai que o meu avô paterno morreu com 45 anos por causa da política. Era tesoureiro de finanças e morreu subitamente à janela desta casa. De ataque de coração. Fujo de politiquices. A política é uma coisa horrorosa. O que faz nos seus tempos livres?Gosto de escrever mas gosto ainda mais de desenhar. Já não faço projectos de arquitectura mas ainda desenho quase todos os dias. Tenho desenhos de muitas viagens que fiz por Portugal e Espanha. Desenho a lápis ou tinta-da-china tudo o que vejo. E faço uma caminhada de três quilómetros, quase diariamente, até São Lourenço. E gosto muito de conduzir. Um dos meus maiores hobbies é viajar. Um arquitecto de 19 valoresTerminou o curso, com defesa de tese, com 19 valores. Como é que alcançou esse mérito?Apesar de acompanhar algumas boémias, apliquei-me porque queria cumprir as minhas obrigações de estudante. Os meus pais tinham algumas dificuldades. O meu pai era tesoureiro da câmara. Mas o curso de arquitectura que se dava naquele tempo era muito diferente do que é dado hoje. No meu tempo era três anos de cadeiras teóricas e depois entrava-se no curso superior por medalhas. Por cada trabalho/projecto que apresentávamos obtínhamos uma medalha ou menção honrosa que correspondia a um determinado número de pontos. Era preciso alcançar um determinado número de pontos para concluirmos o ensino superior. O meu curso era o curso mais longo depois de padre (risos).A tese incidia em quê?Apresentei um projecto de uma Estação Nacional de Olivicultura. Isto porque o meu pai andou no Colégio Militar e tinha um grande amigo que era o director da Junta de Colonização Interna. Este prometeu ao meu pai que me arranjava emprego se eu tivesse boa nota. Porque nesse tempo era difícil encontrar um lugar. O corpo de arquitectos era pequeno, não tinha peso na sociedade. Como é que desenvolveu esse projecto?Com a ideia de entrar para a Junta de Colonização Interna comecei a estudar coisas sobre colonato agrícola. Cheguei a ler livros, traduzidos em francês, sobre colonatos agrícolas russos. A técnica dos russos era boa mas a política é que estragava tudo. E quando fui apresentar a tese ao meu mestre, o arquitecto Cristino da Silva (N.R: autor do projecto da Praça do Areeiro, em Lisboa) ele disse-me que eu ia meter-me por caminhos complicados.Como assim?Por causa da PIDE, acho. Eu era um bocado avant-garde. Nunca fui um homem de bandeira. Tomava posições. Mas nunca fui preso por isso. Acabei por desistir da ideia e achar que devia era fazer algo que me possibilitasse acabar o curso com tranquilidade.Voltando à tese…Cheguei a saber, por exemplo, quanto comia uma ovelha – também porque fui muito apoiado na parte da pesquisa por um engenheiro agrónomo que se chamava Maia Pereira. Entretanto, lembrei-me que o Dr. Vieira Guimarães tinha uma propriedade onde se poderia instalar esta Estação Nacional de Olivicultura em Tomar. E como era um trabalho puramente académico expropriei as propriedades adjacentes (risos). Entreguei dois “calhamaços”, um com a parte dos textos, outro com a parte dos desenhos. Era um trabalho muito grande. Tinha lagares de azeite, azeitona de conserva e óleo de bagaço. E delineei ainda toda a parte administrativa, as casas para o director, etc…E o que aconteceu a esse projecto?Ofereci-o à Estação Nacional de Olivicultura. Na altura, agradeceram-me imenso mas nunca saiu do papel. Nado e criado em TomarJosé Inácio da Costa Rosa nasceu a 22 de Janeiro de 1927 em Tomar, na casa que os avós maternos tinham na Rua Infantaria XV em frente ao Cine-Teatro Paraíso, hoje um imóvel degradado. Filho único, com oito anos muda-se para o número 74 da Rua Serpa Pinto (Corredoura), uma casa de várias assoalhadas onde ainda vive com a mulher, Maria Luísa da Costa Rosa. “Não é a casa onde nasci mas é como se fosse. É uma vida toda aqui!”, refere a O MIRANTE, sentado no sofá da sala de estar onde se podem observar muitos, muitos livros, alguns com ilustrações da sua autoria, artefactos diversos, quadros pintados pela esposa e até um busto que lhe foi oferecido por um amigo. No piso superior, a casa conserva o seu atelier de arquitectura onde tem emoldurado o diploma que atesta que terminou o curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1952 com 19 valores. É também aqui que tem “a sala dos touros”, onde tem uma infinidade de objectos relacionados com a vida tauromáquica. Casado há 50 anos, tem dois filhos, ambos formados em Design, e quatro netos. “O toiro foi criado para morrer gloriosamente numa praça”Escreveu, em 2007, o livro comemorativo dos 50 anos do Grupo de Forcados Amadores de Tomar. É um aficionado assumido?Foi o meu avô que me meteu a paixão pelos toiros. O meu avô Inácio José – que era muito meu amigo e foi meu padrinho de baptismo - era um aficionado. Mas eu era mais aficionado do que ele. Passei-lha a palheta (risos). Íamos os dois à Chamusca e à Barquinha. Dava-se muito com a família do Dr. Rui D’Andrade, da Quinta da Cardiga, que era onde normalmente comíamos o farnel que trazíamos de casa. Lembro-me que a casa estava toda iluminada com candeias de azeite. Dos meus quatro netos só a mais velha, de 21 anos, é aficionada. Como explica esse fascínio?Os toiros são uma mística. Todo o ambiente taurino é transcendente. É uma luta de vida e de morte. Gosto mais das toiradas em Espanha do que cá. É mais verdadeiro matar o toiro do que estar a fazê-lo sofrer, uma vez que um dia ou dois depois muitas vezes são mortos no matadouro. O toiro foi criado para morrer gloriosamente numa praça. Esta é a minha opinião.Nunca foi criticado por isso?Não (risos). Não sou suficientemente importante. Privei muito de perto com o matador de touros Manuel dos Santos, que estudou na Escola Industrial de Tomar. Era uma grande aventura porque não havia o carisma dos touros de morte em Portugal. Chegou a ser forcado?Participei em algumas garraiadas no grupo aqui de Tomar, com 16, 17 anos. Mas fiquei pouco tempo, cerca de um ano. Os cartéis naquele tempo eram muito mais ferozes. Agora começou-se a fazer uma selecção morfológica dos touros. E por que saiu?Por desinteresse. E reconheço que não tinha a valentia dos meus colegas.Ainda assiste a muitas corridas?Costumo ir com frequência a Espanha. É um modo de me encontrar com os amigos. Vou há 50 anos a Sevilha. Cada corrida é uma emoção. E assisto a muitas corridas através da televisão por cabo. Mas é diferente. Falta o cheiro do charuto, o aroma do incenso, as pessoas que falam umas com as outras nos intervalos da actuação. Em Espanha mantém-se mais a chama do toureio do que aqui.E também desenha nessa altura?Tenho a mania de desenhar tudo. Quando era jovem, ia para as corridas e fazia um croqui do que via. Depois passava os desenhos a limpo. Tenho muitos desenhos desse tempo.E nos tempos que estudava Arquitectura também ia às corridas?Era um assíduo do Campo Pequeno. Vou contar uma história que pouca gente sabe. Como já disse, privava de perto com o Manuel dos Santos e ia sempre ter com ele ao hotel antes das corridas. Como ia tourear, comia frutas cristalizadas ao almoço. Em 1951, o Manuel perguntou-me se ia assistir à próxima corrida e eu respondi que não porque não tinha dinheiro para levantar o bilhete. Ele disse que me oferecia a entrada porque ia passar-se algo de muito importante. Foi a única vez em que aceitei um bilhete de Manuel dos Santos. Nessa corrida ele matou um touro pela primeira vez. Foi algo inesperado e chegou a passar uma noite no Governo Civil de Lisboa por causa disso. Depois foi absolvido no julgamento porque argumentou que pensava que estava em Espanha. Um homem de féÉ católico?Sim, sou católico de comunhão. Tenho uma grande devoção por Nossa Sra. da Piedade que a minha mãe já tinha. O que peço mais a Deus é fé. A minha mãe tinha uma fé extraordinária. Morreu com cancro e a passagem dela durante a doença foi extraordinária. Aceitou a morte tranquilamente devido à sua fé. Tenho sido feliz mas a fé é o que nos aguenta mais. Cheguei a pertencer à Juventude Universitária Católica. A primeira peregrinação que fiz foi, aos 18 anos, a Santiago de Compostela. Uma das coisas que mais me marcou foi a entrada em Santiago, já de noite, a rezar o terço…Ainda reza o terço?Hoje rezo poucas vezes. Só em viagem com a minha mulher. Mas antigamente rezava com os filhos. E fui muitas vezes a Fátima a pé. Gosto muito da Igreja da Santíssima Trindade, do ponto de vista arquitectónico. Em Fátima, só ao ver a fé dos outros ganhamos uma força anímica muito grande. Está casado há cinquenta anos, o que por si já é um facto notável…Casei com 32 anos. A minha esposa (Maria Luísa da Costa Rosa) é uma grande pintora. Os quadros dela têm muita luz. O ano passado comemorámos as nossas “Bodas de Ouro” e pedi ao padre Frutuoso Matias que celebrasse uma missa. Depois reuni os amigos num almoço.

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