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Da prisão de Alcoentre para autarca “à força” em Azambuja

Da prisão de Alcoentre para autarca “à força” em Azambuja

José Luís Nazareth Barbosa é um apaixonado pelo Ribatejo, a que chama o seu país

O seu país é o Ribatejo embora tenha nascido no Funchal. Foi na lezíria, no Tejo, nos cavalos e nos toiros, nas tradições ribatejanas que se inspirou para escrever muitos dos poemas a que a sua esposa, recentemente falecida, deu voz na Orquestra Típica Scalabitana. José Luís Nazareth Barbosa, 83 anos, tem uma curiosa história de vida, desde a descoberta da poesia na juventude até às funções de coordenador do serviço social da prisão de Alcoentre e depois de director prisional. Foi autarca em Azambuja mas um dia bateu literalmente com a porta e ficou vacinado da política. Gostava de ficar recordado como poeta.joão Calhaz

A sua forma de participação e intervenção na sociedade foi sobretudo através das artes. Nunca pensou em fazê-lo através da política?Fui político à força. Fui vereador da Câmara de Azambuja. Três anos no tempo da outra senhora e três anos depois.À força porquê?Porque da primeira vez, como foi no tempo da outra senhora, chegaram ao meu gabinete na prisão de Alcoentre e o dr. Joaquim Leal de Oliveira diz-me que tinha de ir à sessão da câmara, porque na véspera tinha sido nomeado vereador. E estive três anos nisso.Até ao 25 de Abril. Sim. Deu-se um caso curioso: tinha uma vantagem em relação aos outros vereadores e por isso brilhava um bocadinho. Antes das sessões ia ao gabinete técnico saber o que se ia discutir. E quando ia para a sessão já tinha ideia formada sobre os assuntos e sobre o que era melhor para a população. Tanto que quando o presidente da Câmara de Azambuja, o engº Botelho de Sousa, acabou o seu mandato indica-me a mim para presidente. Antes do 25 de Abril. Fui a Lisboa ao Governador Civil e disse que não. Porquê?Disse que era um homem modesto que nem automóvel tinha. Tanto insistiram que lá acabei por aceitar. Fiquei à espera e passadas duas semanas o Governador Civil disse-me que afinal eu não podia ser presidente da câmara. E eu disse: ainda bem!E não podia porquê?Porque tinha estado 15 dias em prisão domiciliária.E esteve?Não sei se era prisão domiciliária. Sei que me puseram um gajo à porta do quarto que eu tinha alugado em Lisboa e disseram que eu não podia sair sem autorização prévia. Disseram-me depois que tinha sido por causa de um conto meu que tinha saído no jornal O Século, que a censura considerou provocatório. Era um homem do contra?Não era nada do contra. Embora não andasse aos beijinhos ao Salazar, sentia-me perfeitamente integrado no sistema.Nesse caso, a entidade que lhe dita o que escreve esticou-se um bocadinho e o regime não gostou, pelo que teve a sorte de não chegar a presidente da câmara. Mas voltaria a ser vereador, já depois do 25 de Abril.Aí foi a freguesia de Alcoentre que vem propor-me para continuar a ser vereador, na comissão administrativa antes das primeiras eleições autárquicas.E acabou aí a política para si?Não. Depois estive mais três anos como vereador, após as eleições. Concorri como independente nas listas do PSD. Depois começou a vir aquela bandalheira toda. Um dia um gajo disse que me atirava pela janela fora. Ficou vacinado da política?Tive de dar barraca. As reuniões eram à noite e andavam ali a pisar ovos para passar da meia-noite e terem direito a mais uma senha de 500 escudos. Que vergonha! Até que cheguei lá uma noite, fartei-me daquilo, levantei-me disse que eram uma chusma de oportunistas, de chupistas e que fossem todos bardamerda que eu tinha mais que fazer e que nunca mais lá punha os pés. Até hoje! Quando voltei para Santarém ainda andaram de volta de mim, mas não me quis meter mais nisso.“Antes vivia-se intensamente a Feira do Ribatejo”Esteve presente na primeira Feira do Ribatejo. Tem saudades da feira desses tempos?Eu entrava em histeria se quisesse dizer o que penso sobre o que era a verdadeira Feira do Ribatejo e a Feira Nacional de Agricultura. São coisas totalmente diferentes, ou que pretendem atingir objectivos diferentes. A Feira do Ribatejo era uma feira nossa, uma feira do povo, do convívio, de dar expansão às nossas tradições. Agora é uma coisa sofisticada, mais ligada aos grandes empresários e aos grandes negócios. É a diferença entre uma Feira Nacional de Agricultura e uma Feira do Ribatejo.Isso tem tudo a ver com a mudança da feira para o CNEMA?Sim. Embora haja as camionetas que fazem o transporte, o simples facto de se pagar à entrada influencia. Antes vivia-se intensamente a Feira do Ribatejo. Era uma coisa que o povo sentia. As ruas enchiam-se de gente. Nessa época havia representações estrangeiras na feira que hoje já não existem. Era o poder de iniciativa que havia. É o que falta hoje. Continua a ser um visitante assíduo da feira?Não tenho nada contra a feira e vou habitualmente uma vez para marcar presença espiritual naquilo. Mas acho que podiam fazer a Feira Nacional de Agricultura e a Feira do Ribatejo em alturas diferentes e com propósitos diversos.E o que pensa dos arraiais que têm sido promovidos pela câmara junto à praça de toiros?Concordo e sente-se a cidade a mexer.Santarém ganhou mais vida nos últimos anos?Do pouco que tenho saído e contactado com a cidade, estou de acordo com o que fizeram no Jardim da República e no Convento de São Francisco. Já não digo o mesmo das Portas do Sol. Movimento de pessoas também não se vê muito mais. Mas sinto a cidade mais arejada. A Orquestra Típica Scalabitana foi das coisas mais importantes em termos culturais que aconteceram em Santarém nas últimas décadas?O Centro Cultural Scalabitano, onde a orquestra está integrada, foi. A Orquestra Típica não direi. Havia em Santarém três coisas muito importantes a nível cultural: era o Clube Literário Guilherme Azevedo, que fazia teatro e tinha sala de leitura e biblioteca; era a Banda dos Bombeiros Voluntários; e era o Orfeão Scalabitano, que tinha uma orquestra típica, além de ballet e grupo de teatro. E havia também a Rádio Ribatejo, que tinha importância na difusão cultural. A fusão de algumas dessas associações resultou no Círculo Cultural Scalabitano.A orquestra, nos moldes que se conhece e que são fiéis às suas origens, tem futuro?Já tive mais receio. Porque vejo muita gente nova, vejo uma escola de música dentro da orquestra, o que dá ânimo para pensar que vão continuar em moldes muito bons.Imagine que esses jovens músicos depois optam por outro estilo musical, como o seu neto, por exemplo?Não faço futurologia, mas a minha convicção é que esses jovens, inclusivamente a minha neta de 14 anos, que toca flauta, vão garantir o futuro da orquestra.O poeta que não sabe de onde nascem os versosA poesia nasceu consigo?Não sei. Sei que aos 16 anos já escrevia. E que aos nove anos já faltava à escola para ir ouvir os melros e os rouxinóis e tirar grilos da toca com uma palhinha. Tudo o que me rodeava me entusiasmava. Seria a minha alma de poeta a chamar-me a atenção. Costumo dizer que não sou eu que escrevo.Então quem escreve?Alguém que não sei quem é. Alguém que me dita. Sento-me, concentro-me e as imagens, as metáforas, começam a surgir em turbilhão. É como o realizador de cinema que vai escolhendo as imagens para montar.Os seus poemas são uma espécie de trabalho de montagem?Eu sou apenas um escriturário à ordem de não sei quem, que me dita as coisas.Será Deus? Ou não é crente?Sou crente. Muito embora todas as noites peça para ter mais fé, porque a minha é muito fraquinha. A sua fé foi abalada pela perda da sua esposa?Foi. Costumo dizer que a minha fé é uma vela que ainda está acesa, mas se vem uma corrente de ar tenho de pôr uma mão à frente para a aguentar. Rezo muito. Sinto necessidade de rezar, de comunicar. Escrever, para si, é mais inspiração que transpiração?Sim. Muitas vezes levantava-me da cama de madrugada quando me surgia uma ideia de um poema. Saía da cama e escrevia. Ditavam-lhe esses poemas às quatro da manhã.Respondo com um poema meu: Poeta é um lúcido louco / tão louco na lucidez / que sabe que tudo é pouco / do muito que nada fez / E fica à espera do nada / a cismar mundos imersos / sabendo que está errada / a coerência dos seus versos / Na fúria da inspiração ao escrever / temas dispersos desde o amor à desdita / por escrever por sua mão / cuida que são seus os versos que afinal alguém lhos dita / Poeta é um lúcido louco / tão louco na lucidez / que sabe que tudo é pouco / do nada que muito fez.Escreveu poemas, letras para canções, tendo quase sempre o Ribatejo como pano de fundo. Tenho efectivamente muita coisa ligada ao Ribatejo. Vivi uma vida intensa na lezíria durante a minha infância e juventude. E quando ia para o palco fazer as legendas dos números que se iam cantar, nunca sabia o que ia dizer. Fechava os olhos e começava a falar de todas essas reminiscências. O facto de a Orquestra Típica Scalabitana cantar praticamente só versos seus é bom ou é mau?Para quem?Para a orquestra?Não é fácil escrever-se em cima de uma música. É preciso ao mesmo tempo viver um sentido de ritmo, um sentido das palavras que se possam ajustar melhor à música que nos foi imposta.Era sempre assim que funcionava?Nem sempre. Com o maestro Gavino não. Aí era eu que dava o poema e ele inspirava-se nele e fazia a música. Era o letrista exclusivo da Orquestra Típica Scalabitana?Quase. Houve uma altura em que havia um senhor de Torres Novas que escrevia para o maestro Gavino, que também escrevia alguma coisa.Com esta paixão toda pelo Ribatejo, sente-se mais ribatejano que português?Num dos meus poemas digo precisamente isso: Ribatejo, meu país criança. É um dos versos da Marcha Ribatejana. Portanto, tenho o Ribatejo como um país e não como uma província. É o meu país criança. É aquele com que me identifico. O outro é o país de toda a gente. E da Madeira, sua terra natal?É um espectáculo. Mas não me sinto nada madeirense.Porquê?Não tenho influência nenhuma madeirense, embora o meu avô tenha lá vivido até aos 90 anos. Nunca sentiu o apelo das raízes?Não. E a família do lado da minha mão é toda madeirense, de Porto Santo. Não foi por acaso que nasci na Madeira. Do lado paterno a minha família é de Coimbra. Não tem ascendentes ribatejanos.Não tenho ninguém. Mas o Ribatejo é a minha vivência. Escrever para suplantar a dorEnviuvou recentemente da cantora Dilma Melo. Como se viu após a perda da cúmplice de uma vida?Nas primeiras duas semanas não se acredita. Ouve-se abrir a porta e pensa-se que é ela. Depois vem um inconformismo muito grande. Depende também muito de como um casal se relaciona. Saíamos muito, andávamos sempre juntos. Não era homem de ir para o café sozinho. A Dilma ficou muito com a minha imagem, com a minha maneira de pensar, de ser. Agarrou muito o meu estilo de vida. Havia um elo de tal maneira que foi muito difícil de quebrar. Como tem tentado suplantar essa dor?A escrever.Uma escrita onde ela está sempre presente, presumo?Sempre. Começo com um tema qualquer mas vai sempre bater ao mesmo.E agora é a sua voz que dita as palavras, ou é a tal outra voz de que falávamos há pouco?O sentimento é meu. A maneira de o dizer é capaz de ser a mesma voz. A sua mulher preferiu sempre uma vida mais reservada. Passou ao lado de uma grande carreira, como costuma dizer-se?Várias vezes a tentei sacudir para a realidade, pelo valor e pela força que ela tinha. A Dilma nunca quis estar à mercê dos ensaios de horas seguidas, das gravações de horas seguidas, de estar dependente de um intermediário. E sem isso não se alcança coisa alguma. São esses indivíduos que arranjam espectáculos, que põem uma pessoa em cima ou em baixo.Foi uma mulher que preferiu manter-se ligada à família.Sempre. Gostava muito do palco e fazíamos muitos espectáculos de fado, com o Custódio Castelo, com o Girão com o José Carlos Marona, com o Velez. Mas se houvesse um espectáculo da Orquestra Típica que coincidisse com um espectáculo de fados, onde ela ganhava cachê, preferia a Orquestra Típica onde não ganhava nada. O coordenador na cadeia de Alcoentre que introduziu o regime do recluso de confiançaJosé Luís Nazareth Barbosa, 83 anos, nasceu no Funchal, na Ilha da Madeira, mas aos cinco anos veio para o Ribatejo, onde já tinha a viver um tio que era juiz e para onde o pai, veterinário de profissão, veio prosseguir a sua carreira como director da Estação Zootécnica Nacional, no Vale de Santarém. Aí viveu com os pais e os sete irmãos até aos 27 anos, com excepção dos tempos em que estudou em Lisboa.Foi no Vale de Santarém que começou também a sua paixão pela lezíria e por tudo o que ela representa: o Tejo, os cavalos, os toiros, os campinos, os espaços amplos, o cheiro a terra. Uma paixão que verteu no papel em forma de poesia e que foi cantada pela sua cúmplice de uma vida, a esposa e cantora Dilma Melo, falecida recentemente. Conheceu-a e começaram a namorar tinha ela 15 anos e ele 25. “Se fosse hoje chamavam-me pedófilo”, brinca, ressalvando logo que o namoro naqueles tempos era levado a sério e não havia espaço para abusos. Foi a voz dela que o fascinou. A partir daí nunca mais se largaram. Até Março passado, quando Dilma partiu. Ficaram as muitas recordações, evidentes em forma de fotografia na sala onde decorre a entrevista.José Luís Nazareth Barbosa é dono de uma vida multifacetada. Foi radialista e director de programas na Rádio Ribatejo, em Santarém. Tirou cursos de teatro e de locutor, tentando potenciar a vocação que tinha para essas áreas. No ensino superior frequentou o curso de económico-financeiras, que abandonou. Tirou um bacharelato em psicologia. E ia escrevendo e recitando poesia.Foi através de um programa na Rádio Ribatejo que visava a reinserção dos reclusos na comunidade que recebeu o convite para trabalhar como assistente social na Direcção Geral dos Serviços Prisionais, onde viria a fazer carreira. A oferta de casa pelo Estado, com uma renda simbólica, foi decisiva para aceitar a proposta. Esteve dois anos no Linhó, tirou um curso de psicologia criminal que com as bases do bacharelato que já tinha lhe deu mais tarde equivalência a licenciatura. Tem também um bacharelato em assistência social.O Estabelecimento Prisional de Alcoentre foi o seu próximo destino profissional, onde era coordenador do serviço social e uma espécie de adjunto do director. Ajudou a introduzir algumas inovações, como o regime do recluso de confiança, que permitia aos presos saírem para trabalhar no exterior sem vigilância.Esteve 18 anos em Alcoentre e posteriormente mais 18 anos no Estabelecimento Prisional de Caldas da Rainha, como director, até se reformar aos 66 anos. Teve lá alguns “hóspedes” conhecidos de Santarém que ainda hoje o abraçam se o encontrarem na rua. Jogava ping-pong e fazia teatro com os reclusos. Outras vezes dizia um poema do seu poeta preferido, José Régio (o homem que mais o marcou até ao fim da sua adolescência), ou da sua autoria. “O respeito não se impõe, conquista-se. Tenho provas bem fortes disso”, diz.Em Alcoentre, onde continuou a viver mesmo quando foi trabalhar para Caldas da Rainha, envolveu-se no meio associativo local. Participou num grupo de teatro de que era encenador, foi presidente da Casa do Povo local, organizava festas dos santos populares. Com a reforma regressa a Santarém. Dedica-se então de corpo e alma à família, à poesia e à Orquestra Típica Scalabitana, como apresentador, declamador e letrista de serviço. É pai de três filhos. Tem quatro netos e uma bisneta. Descende de uma família aristocrática com raízes na Beira Alta e teve um bisavô visconde. Diz que quando partir gostava que o recordassem “como poeta que eu sinto que sou”.
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