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“Tenho menos um dia de liberdade que os portugueses da minha idade”

“Tenho menos um dia de liberdade que os portugueses da minha idade”

Vítor Dias, natural de Vila Franca, ex-dirigente do PCP, saiu da prisão de Caxias a 27 de Abril 1974

Nasceu em Vila Franca de Xira. É filho de um funcionário público e de uma doméstica que nas horas vagas costurava para os pobres. Foi funcionário do PCP durante trinta anos, passou pelo comité central e pela direcção do partido. O homem do talho chegou a confundi-lo com um ministro. Vítor Dias tornou-se activista aos 18 anos na secção cultural da União Desportiva Vila-franquense. À beira dos 65 mantém o mesmo espírito na blogosfera para saciar a fome de letras que um dia sentiu na prisão. Passou vinte dias em Caxias. Saiu a 27 de Abril e tem por isso menos um dia de liberdade do que os portugueses da sua idade.

Ana SantiagoFoi um militante activo na secção cultural da União Desportiva Vila-franquense. No manifesto, que deixaram como testemunho da experiência, explicam que combatiam a ditadura com a ajuda do “espírito do livro”. Como é que isso se fazia? Nessa época nós em Vila Franca de Xira, tal como outros homens e mulheres de outras terras do país, não estávamos a inovar nada. Não é nos anos 60 que se descobre que para combater o fascismo também é necessário intervir no plano cultural e das colectividades. Mas é preciso ter cuidado com uma coisa: seria um erro e uma certa distorção histórica olhar para tudo isto que se fez no cine-clube, nas colectividades, nos suplementos culturais, nas associações de estudantes e dizer que foi tudo cultura disfarçada de política. Ou melhor era assim, mas isto tudo era combinado com um valor próprio que atribuíamos àquilo que fazíamos. E assim se formou uma geração. Naquela época a cultura e a formação dos indivíduos fazia-se através da letra escrita. Fosse revista, livro ou jornal. Temos gerações por todo o mundo que são formadas na cultura audiovisual. Isto, sem saudosismo, é uma mudança que teve consequências vastíssimas. A cultura escrita cria espaços de reflexão e de informação que a cultura audiovisual não cria. O ideal seria juntar as duas coisas. Uma cultura que é baseada no audiovisual é pouco propícia à memória, pouco propícia ao conhecimento da história porque o audiovisual, designadamente a televisão, é fragmentário. Isto leva a uma crise da memória e da noção de processo histórico. Hoje vivemos um pouco aquilo a que já chamei de tempo em que tudo se esquece e nada se aprende. Como sublinham no manifesto da memória foram jovens num tempo em que não existia “you tube” nem “playstation”.De tudo o que disse antes não resulta nenhuma crítica. Estes instrumentos que se criaram têm aspectos verdadeiramente fabulosos e que até permitem em certa medida corrigir alguns dos fenómenos negativos que assinalei. Falo em jovens, mas falo de certos segmentos juvenis. Esta ideia de falar da juventude em geral foi sempre equívoca. Já era equívoca no meu tempo. Havia pessoas da minha geração que imaginavam que os jovens eram todos como nós. Éramos uma minoria. Sou muito contra a mitificação da geração de 60. Naquele tempo havia 30 mil estudantes universitários. Se cinco mil fossem activos politicamente já seria um milagre. Quando se ligou à secção cultural da UDV?Em 1963. Tinha 18 anos. Coincide com a chegada de um grupo de jovens estudantes que se junta a um grupo de operários que já lá estavam e que dão àquela secção um lado muito singular. Juntam-se estudantes de pequena e média burguesia e proletariado. Correu muito bem e sem choques. Por causa do carácter das pessoas e da sua ética. Não eram quaisquer pessoas. Eram pessoas solidificadas pela sua orientação política mesmo que não fosse expressa.E a sua orientação política já era expressa?Já tinha a simpatia. Só sou membro do PCP desde Julho de 1973. Durante dez anos não fui, mas era como se fosse. Em 1963 foi abordado por um elemento muito importante da secção cultural. Era um camarada que metia medo às pessoas. Eu também não estava maduro nessa época para isso. Deixei-me andar muitos anos sem bater à porta de ninguém para ser do PCP. O medo existe e quem disser que o medo não existe mente. A questão é ir aprendendo a vencer o medo. Em 1967 ou 1968 fazia coisas que não teria coragem de fazer em 1963 ou 1965. Se em 1963 me dissessem: ‘vais pegar numa mala com duas resmas de comunicados impressos na duplicadora para entregares a fulano’. Não o faria. Mas depois fartei-me de fazer isso e coisas mais arriscadas.Como por exemplo?Como quando fui preso acidentalmente a 6 de Abril de 1974. Apareceu a PSP. Por acaso tive sorte. Estávamos a fazer uma reunião para o primeiro de Maio de 1964 numa garagem em Benfica. Cheguei com o Ruben de Carvalho a essa reunião. Abrimos a porta do carro. Era um largo ali em Benfica. São coisas inexplicáveis. Telepatia. Achámos que devíamos deixar a mala no carro. Levava uma mala castanha exactamente com duas resmas de papel de comunicados já impressos. Mas pior do que isso com dois aparelhos electrónicos para entregar a camaradas para imprimirem noutros lados. Se tenho sido apanhado lá dentro com a mala as coisas teriam sido mais complicadas. Depois saí no 25 de Abril. Também acho que não iria lá ficar. Havia épocas em que a Pide poderia prender a torto e direito, mas em regra tinha critérios selectivos. Fui preso com outros 40. E a mala?A mala ficou no carro. Só lá fomos buscá-lo depois de sairmos da prisão. Costumo dizer a brincar que tenho menos um dia de liberdade que os portugueses da minha idade. Só saímos à uma hora da manhã do dia 27 de Abril. E porquê?Porque em Caxias, no dia 25 de Abril, não se sabe nada. Sabe-se que está a acontecer alguma coisa porque não há recreio, os guardas prisionais estão nervosos e perturbados. Víamos a GNR reforçada com capacetes, ouvíamos uma música militar muito estranha, mas durante todo o dia não soubemos o que era. Na noite de 25 chega uma mensagem que não é perceptível. Por cima das celas havia um terraço de pedra e percebemos que estavam a montar estruturas metálicas. Metralhadoras. Nessa noite não dormimos e barricámos as celas. Encostámos as camas e os armários. Era o risco que se corria das represálias. Durante o dia 25 e até às 7h00 do dia 26 a Pide controla a cadeia com o seu poder no capitão da GNR. Foi um dos mais graves descuidos do plano de operações do Otelo Saraiva de Carvalho. Era uma missão que estava atribuída a um regimento que não a conseguiu cumprir. No dia 26 já sabemos o que é porque os marinheiros explicam-nos o que se passa. Fazia ideia de que estava a menos de um mês de uma revolução?Nós éramos combatentes políticos. Se havia um golpe ou um movimento militar em preparação eram os militares que tinham que tratar. Mesmo que soubéssemos falar disso seria um erro de todo o tamanho. Era estar a avisar a polícia. Três ou quatro dias antes de ser preso um oficial miliciano levou-me numa folhinha os tópicos fundamentais do programa do movimento das forças armadas, era o programa ainda não emendado pelo Spínola. Eu leio: eleições para uma assembleia constituinte, formação de governo provisório, liberdade disto e daquilo. O que é que ele me vinha dizer? Que tinha havido o golpe falhado de 16 de Março nas Caldas, mas que isto não tinha parado. Pergunta-me se fiquei convencido de que aquilo ia acontecer? Não. Fiquei a perceber que era sério. Muitos de nós, ligados ao partido comunista, tínhamos esta regra sagrada: cada um faz o que tem a fazer.Como foram esses 20 dias na prisão?Há uma diferença entre repressão selectiva e repressão ocasional, ou seja, eu não estava denunciado. Lembro-me do primeiro interrogatório para preencher os papéis na Pide em Caxias. Foi uma coisa democrática. Só teve um incidente. O inspector achou que eu deveria ter escrito nos antecedentes criminais que tinha sido candidato da CDE [Comissão Democrática Eleitoral] em Outubro de 1973. Nunca fui torturado. A Pide não devia ter dúvidas de que eu era do Partido Comunista, mas eu não estava denunciado por ninguém e isso tinha muito peso. O facto de não estarmos denunciados fazia com que respondêssemos torto e tratássemos mal os guardas. Em 40 pessoas presas, que incluía jovens e raparigas, pouco experientes, toda a gente se manteve impecavelmente na versão de que estávamos reunidos para formar uma cooperativa. Sente que os políticos de hoje fazem jus àquela que foi a vossa luta?Seria muito fácil uma pessoa da minha geração fazer um juízo muito crítico e devastador. Eu não o faço. Os tempos da ditadura não são comparáveis com os tempos da democracia. Os critérios passam a ser menos exigentes e depois há a evolução natural das sociedades capitalistas que conduzem a uma certa superficialidade. Há coisas em relação às quais só tomei consciência por puro acaso. A senhora do café da minha rua, na Amadora, de me ver na televisão tinha toda a obrigação de saber que eu era comunista. A Dona Perpétua do café fazia-me perguntas quando o governo era PS ou PSD como se eu tivesse alguma coisa que ver com aquilo. O senhor do talho deixava um bilhete e dizer ‘isto é carne para a mulher do senhor ministro’. Foi assim que descobri que há portugueses para quem os políticos são todos iguais. O senhor saudoso da Comuna de ParisO encontro com Vítor Dias está marcado para o final de tarde na cafetaria do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Está fechado para férias. Passamos ao Aracuá. Nos vinte metros que distam um local do outro é cumprimentado cordialmente por quatro anciãos. Arrasta dois sacos. Um tem fruta que apanhou do quintal da mãe. Uma senhora de 92 anos que visita regularmente quando faz o percurso Amadora - Vila Franca de Xira. Viaja de comboio. Não tem carro. Nem carta de condução. Uma questão de falta de força de vontade. Vive numa casa térrea “velha” no concelho da Amadora que comprou na década de 80 a bom preço. Recusou empenhar-se para comprar um apartamento. Dois cafés e um wisky com duas pedras de gelo. Levanta-se um vento que quase leva as mesas da esplanada em frente ao Vila Franca Centro. Vítor Dias espanta-se com o clima da terra onde nasceu. Vive em Venteira, na Amadora, e nem o vento por lá sopra tão forte. Faz questão de pagar a conta. Deixa gorjeta. É um gesto habitual. Um homem pára o carro a meio da Alves Redol para devolver uma caneta. Um outro, que fala sozinho, pede-lhe 55 cêntimos para o café. Vítor Dias está a um mês de completar 65 anos, 30 dos quais como funcionário do Partido Comunista Português. Integrou o comité central de 1979 a 2005 e a comissão política de 1991 a 2005. É filho de Vila Franca de Xira. De um funcionário público e de uma senhora doméstica com jeito para a costura, familiar de avieiros, que arranjava combinações de flanela e fatos de maçado para operários. É casado e tem dois filhos. Foi na cidade à beira Tejo que se juntou à secção cultural da União Desportiva Vila-franquense e folheou os livros proibidos. Frequentou o espaço do Ginásio, na Noel Perdigão. Jogou ping-pong e quarenta anos depois ainda guardava nas mãos as marcas dos jogos de bilhar e matraquilhos. Durante dois anos foi funcionário dos serviços municipalizados de águas onde o pai era chefe. Até ingressa em 1965 no curso de Direito em Lisboa, que nunca chegou a terminar. Está à beira de se aventurar em novos projectos de assessoria, mas por agora é o blog que lhe ocupa o tempo. Foi activista na secção cultural da colectividade em Vila Franca de Xira e mantém hoje o mesmo espírito no blog que é considerado um dos mais ricos da rede (http://tempodascerejas.blogspot.com/), um blog de esquerda em homenagem à Comuna de Paris. Downloads para os saudosos e baú de relíquias onde se encontram preciosidades.Outros frequentadores da blogosfera, mesmo de outras ideologias, tecem-lhe elogios. Um homem inteligente. Intrinsecamente humilde. Do princípio ao fim das conversas. E as conversas são como as cerejas…A festa taurina é alvo de grandes “incompreensões”Que memórias tem da Vila Franca de Xira da sua infância?A minha memória é muito marcada pela festa taurina. Aquilo que as pessoas chamam identidade, mas que é alvo de grandes incompreensões. Quanto a mim dizem-se muitos disparates sobre isso. Uma vez utilizei numa crónica a expressão tercio de bandarilhas. Nem queira saber a quantidade de camaradas que se espantaram. Sou contemporâneo e amigo do José Júlio e do Mário Coelho. Ia às corridas com o meu pai. Depois durante 30 anos desinteressei-me desse fenómeno. Corre-se o risco de um certo tipo de extremismo capaz de gerar um grande conflito com um grande número de cidadãos. Há quem diga: ‘acabem-se as touradas em barrancos’. E eu só lhes digo: vão fazer uma reunião com as pessoas à Moita, por exemplo, e vejam o que lhes acontece!E em Vila Franca?Aqui em Vila Franca também. Aliás, a seguir ao 25 de Abril acho que tiveram por cá umas agitações revolucionárias nesse sentido. Felizmente que se emendou a mão. Teria sido obviamente um desastre. Neste aspecto sou tradicionalista. Estou de acordo com o formato actual da tauromaquia em Portugal. Acha normal que um ex-presidente da Câmara da CDU como o Daniel Branco não acompanhe o que se passa em Vila Franca de Xira?Não me faz nenhuma impressão. Sei que o Daniel Branco trabalha muito no concelho onde vive agora e que presta muito apoio às estruturas centrais de autarquias do PCP. Até lhe digo mais. Não sei se quem teve responsabilidades tão importantes aqui devesse continuar. Acho que também os comunistas devem perceber que têm o seu tempo. Não somos imunes, corremos todos os riscos inerentes à natureza humana. O excessivo prolongamento no exercício de funções de uma força política só pode prejudicar. Fez sentido a mudança de cor aqui?Foi uma evolução negativa. Aconteceu noutros lados também. Em todos os partidos deve existir esta mania de encontrar a explicação para as derrotas. Para iluminar a precaridade das explicações sobre as causas das derrotas costumo perguntar se há quem tenha alguma ligação directa aos cérebros dos eleitores. Foi numa época em que perdemos algumas câmaras. Penso que foi, escrevi sobre isso, por causa de uma aspiração de mudança. Pode parecer uma habilidade estilista num comunicado de partido, mas não é tanto.Acompanha o que se passa em Vila Franca de Xira? Como olha para o desempenho de Maria da Luz Rosinha e de outros autarcas da terra?Não conheço bem, mas como sou especialista em propaganda, antes da actual presidente ganhar da primeira vez disse logo em desabafo: cuidado, uma candidata que é conhecida publicamente como rosinha? Está tudo dito. Quantos candidatos há no país que sejam conhecidos assim? Como é que o PCP se deixou ultrapassar pelo Bloco de Esquerda?Costumo dizer que não sou daqueles comunistas que previram que o bloco de esquerda fosse um fenómeno passageiro. Aquele projecto nasceu com a ideia de crescer à custa do PCP. Digam o que disserem era isso. Já considero reconfortante que isso não tenha acontecido. Depois há um mistério maior. O voto no bloco é um voto cómodo. Não compromete. Porque é que o PCP não se virou mais para a defesa de outros temas?A verdade é que o bloco, por exemplo, apresentou uma embalagem nova – na altura figuras mais novas (actualmente os dirigentes do PCP são mais novos do que as figuras centrais do bloco) - mas aproveita oitenta por cento do discurso do PCP.Tem no seu blog uma imagem de uma mulher do Bangladesh queimada com ácido lançado pelo marido. No sábado a presidente de câmara de Rio Maior apresentou queixa por violência doméstica.Acho que é um acto de coragem grande e simbólica porque serve de exemplo. Um dos problemas maiores é o problema da violência que se cala. Não podemos sociologicamente ignorar que muitos dos silêncios estão relacionados com situações de dependência económica e de dificuldade de fazer essas rupturas. É um problema terrível. É uma realidade de todos os estratos, mais do que se pensa. Qualquer um de nós pode facilmente conhecer casos. Mas a minha esperança é de que a violência doméstica seja menor do que há trinta anos. O PCP não deveria bater-se mais publicamente por estas questões?É muito difícil acompanhar tudo o que um partido faz ou diz. Fala-se muito do aborto. O PCP apresentou um projecto há vinte anos! E quantas vezes a Odete Santos não falou sobre violência? A única área em que estamos em desvantagem é em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas mesmo assim votámos favoravelmente. O que é um acto de coragem do partido comunista. A generalidade do povo comunista não concorda com isto.Nesta altura de crise em que pequenas e médias empresas tentam lutar pela sobrevivência faz sentido também que os sindicatos continuem irredutíveis na defesa de alguns direitos?Sempre defendemos os direitos dos trabalhadores, mas a nossa política inclui claramente uma atenção ao problema das micro, pequenas e médias empresas. Os trabalhadores arriscam-se, a pretexto de uma crise que não foram eles que provocaram, a perderem direitos conquistados no princípio do século, designadamente a seguir à segunda guerra mundial. Terminada a crise conjuntural se eles perderem esses direitos esses direitos não voltarão. No fundo é essa a batalha que se está a travar. Portugal tem uma bomba que é um milhão de precários. São as pessoas a recibo verde, os contratos a prazo. Estamos a criar uma exclusão social desta malta que ganha 500 e 600 euros já com 30 anos. A maior parte não desconta os 25 por cento para a segurança social. Eu costumo dizer: nem podem! Se descontarem não têm para comer. Tem um blog com o nome de uma cançoneta de amor – O tempo das cerejas – ainda que também associada à Comuna de Paris. É um romântico?Poderia ter escolhido o nome apenas pela ligação à Comuna de Paris… [silêncio] Com as condicionantes da idade - estou a um mês dos 65 anos – acho que sou romântico quanto baste.
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