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“Para ser investigador em Portugal é preciso ser maluco ou ter pais com dinheiro”

Biólogo César Garcia reside em Santarém e tem a sua base de trabalho no Jardim Botânico de Lisboa

César Garcia é investigador na área da biologia, especializado em ecologia. Natural de Santarém, onde continua a residir por amor à sua terra, o biólogo trabalha num minúsculo gabinete no Jardim Botânico de Lisboa onde vai alargando o conhecimento da flora de Portugal e de África que ainda não constam da informação científica. Nascido em 2 de Outubro de 1974, César Garcia ficou conhecido quando descobriu há dois anos em Caldas da Rainha uma planta que se pensava estar extinta. Licenciou-se em Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa em 1999. É doutorado em Floresta Portuguesa e está actualmente a fazer um pós-doutoramento em biodiversidade da floresta virgem de S. Tomé e Príncipe. Nesta entrevista o cientista fala das dificuldades de se ser investigador em Portugal, da região e do concelho de Santarém onde diz que foi feita uma má requalificação dos jardins da cidade. António Palmeiro

Ficou conhecido por ter descoberto uma planta (Fissidens exilis) considerada extinta em Portugal.Estamos habituados a fazer isso. Temos um projecto patrocinado pela EDP, o BrioAtlas, que visa fazer um livro vermelho de um grupo de plantas que são pouco conhecidas e que são indicadores da qualidade ambiental. O que não acontece muitas vezes é descrever espécies novas para a ciência. Chegar a um local e ver que uma espécie nunca tinha sido vista nem descrita é mais difícil, mas também já aconteceu.Qual foi o momento mais marcante na sua carreira de investigador?Foi a descrição de uma espécie nova que encontrei em Barrancos e à qual dei o nome de “Zygodon catarinoi” em homenagem a um professor que tive, que se chama Catarino. E neste momento estou a descrever para a ciência mais duas espécies novas de S. Tomé e Príncipe. O clima está mesmo a mudar radicalmente?As previsões são de que a temperatura está a aumentar. Se a temperatura está a aumentar os padrões actuais de distribuição das espécies vão alterar-se. Há uma tendência de as espécies migrarem. As que potencialmente estão no sul vão para norte.Normalmente não se fala muito nestas questões.Fala-se, mas as pessoas não ligam muito, só ligam quando são tocadas. É fácil ser investigador em Portugal?Muito difícil. Porque a actividade funciona com verbas tipo subsídio para se fazer um trabalho. Findo esse trabalho, acabou. Nem eu nem ninguém tem um vínculo laboral como investigador. Neste momento trabalho no Jardim Botânico de Lisboa com uma bolsa de investigação de pós-doutoramento concedida pela Fundação da Ciência e Tecnologia. E quando acabar a bolsa?Tenho que concorrer a outro trabalho, que vai a um painel de avaliadores. Não há um quadro de pessoal e nem sequer temos direito a subsídio de desemprego. Para ser investigador em Portugal é preciso ser maluco ou ter pais com dinheiro. Essa precariedade não o afecta no seu trabalho?Claro que afecta e muito. É uma situação terrível para mim e para os meus colegas e para as pessoas que nos formam, porque vêem que formar dá trabalho e depois corre-se o risco das pessoas irem para os Estados Unidos da América, por exemplo.Nunca pensou também ir para o estrangeiro trabalhar na sua área?Não, porque gosto muito da minha terra e não tenho espírito de emigrante. Sou muito ligado às raízes. Não quer dizer que não aconteça um dia a hipótese de emigrar, mas nunca pensei nem penso nisso. A saída de investigadores para outros países em que medida é que afecta o país?Não é só em Biologia, é também na Física, na Química e noutras áreas. Isso é mau para a própria sustentabilidade das universidades portuguesas, porque deixa de haver massa crítica, pessoas com experiência para ensinar os outros. Um bom professor tem que ter sempre um assistente que tenha experiência com ele. Se os que são bons se vão embora começam a surgir os que estão mais abaixo e menos experientes. Quando é que descobriu que queria ser biólogo?Foi quando andava no liceu Sá da Bandeira em Santarém. Foi a professora Amélia que me incentivou e quando cheguei ao primeiro ano da faculdade gostei muito, sempre gostei da botânica. Há ainda muitas plantas por baptizar?Em Portugal vão aparecendo algumas, poucas. Em África é que há muito por descobrir. Para se chegar à conclusão que determinada planta não foi ainda identificada para a ciência deve haver um grande trabalho de pesquisa…Estou agora a trabalhar numas de São Tomé e Príncipe e tive que ir ao herbário de Londres (Inglaterra) e ver os espécimes tipo, ou seja, o que serviu de base para descrever aquela espécie. Por exemplo, uma couve existente em Portugal tem um exemplar tipo que serviu de base à descrição da espécie. Já estive em Paris, Helsínquia, já corri vários herbários à procura das espécies para saber que não estou a cometer o erro de estar a descrever uma planta que já foi descrita para a ciência. O dinheiro da bolsa chega para as viagens?A Fundação para a Ciência e Tecnologia dá uma verba anual que dá uma ou duas viagens, mas se for para a Austrália nem dá para metade. Mas sou também investigador da Universidade Autónoma de Madrid (Espanha) e quando estou lá a fundação dá uma verba a mais para poder suportar a minha estadia. Nesta actividade é preciso ter olho de lince.É preciso sobretudo ter muita experiência de campo. Passo mais tempo no gabinete, mas quando vou ao campo é durante bastante tempo. Em África chego a estar um mês e meio a recolher plantas. Que efeito prático é que estas descobertas têm para o cidadão comum?Começa pelo facto de serem indicadores ambientais que servem de base a decisões, por exemplo, se deve ou não construir-se uma barragem em determinado local. E há espécies que têm importância comunitária porque sustentam o ecossistema. Se se quebra uma barreira esse ecossistema vai ao ar.Às vezes não há um fundamentalismo nestas coisas do ambiente?Há. Costumo dizer que sou ecólogo, não sou ecologista. Quando fico chateado com algumas coisas procuro ter razões científicas para as sustentar e não vou em alarmismos de ouvido. Os autarcas são dos que mais falam em fundamentalismo relativamente aos impedimentos de construção no meio rural. Sou a favor da Reserva Ecológica e Reserva Agrícola Nacional. O problema é que na definição das áreas de reserva faltou trabalho de campo, os técnicos não foram ao terreno. E se calhar estão a cometer-se injustiças. Pode haver sítios onde se podia muito bem construir e outros onde se está a construir e não devia. Os ecologistas às vezes prestam um mau serviço à causa quando entram por mediatismos exacerbados?Sim, mas a questão é que na maior parte das vezes têm razão. ESCOLAS DE SANTARÉM NÃO PARTICIPARAM EM PROJECTO NACIONALFoi o coordenador científico do projecto “Um bosque perto de si”. Foi um projecto muito interessante porque envolveu mais de cem escolas do país e mais de quatro mil alunos. O objectivo era os miúdos irem para o campo. Fizeram uma caracterização biológica dos locais. Conseguiu-se perceber quais eram as variáveis ambientais que condicionavam as espécies portuguesas. Porque é que no Minho, por exemplo, existe uma espécie de carvalho junto ao oceano e para o interior já temos outra. Agora estamos já a trabalhar na fase dois deste projecto.Conseguiu cativar as escolas da região e de Santarém para participarem? Não sei o que se passou, mas nenhuma escola do distrito de Santarém se inscreveu. Cheguei a convidar pessoalmente a escola Sá da Bandeira em Santarém, mas esta também não participou. As escolas de mais perto que aderiram foram do concelho de Vila Franca de Xira.Sente que os portugueses estão mais sensibilizados para a defesa do meio ambiente?Sinceramente noto, sobretudo quando ando no campo, que as pessoas estão mais sensibilizadas. Acho que a maioria das pessoas gosta de conhecer as questões relacionadas com a natureza e o ambiente. “Acho mal quererem acabar com as touradas”Há muita flora ameaçada? Existem muitas espécies ameaçadas e em risco de extinção, pela acção do homem, pelos fogos…No Ribatejo qual é a zona com a flora mais rica?A zona do Vale de Santarém é riquíssima e se não tivesse lá um eucaliptal tinha potencial para ter o dobro das espécies que tem. E no país qual é a sua zona preferida?A Serra da Estrela é a “jóia da coroa”. E é o local mais importante, na minha opinião, em termos futuros porque é o de maior altitude. Com as alterações climáticas as espécies vão migrar. Algumas espécies em Portugal só vão resistir ali e outras vão-se extinguir. Vai haver uma competição ecológica. À primeira vista dava um mergulho no Tejo?Aprendi a nadar no Tejo. Não tenho dados sobre a qualidade da água, mas acho que não me metia lá dentro. O Ribatejo é uma zona de tradições tauromáquicas. Gosta de touradas?Não. Nunca vou ver corridas de toiros. Gosto de largadas de toiros. Como é que vê este movimento que pretende abolir as touradas em Portugal?Acho mal. Tem que haver espaço para tudo e forma de conciliar as posições de quem é contra e a favor. Porque é que se tem que espetar o toiro? Não se pode arranjar outro sistema? Pedreiras no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros são uma “calamidade”Os parques naturais são verdadeiramente protegidos pelo Estado?É impossível proteger um parque natural em toda a sua dimensão. O problema é que existe um défice muito grande de guardas e vigilantes e técnicos para os parques naturais existentes, além das verbas reduzidas. E há problemas graves relacionados com a falta de pessoas a viverem nestas áreas, até ao nível por exemplo dos incêndios. Mas se deixarem a natureza quieta nas suas funções a coisa funciona. No Verão é recorrente ouvirem-se críticas à falta de limpeza dos parques.Neste período fico muito chateado com os jornalistas quando começam a falar na limpeza das matas. Quem conhece as nossas montanhas, os nossos parques, sabe que é impossível limpá-los todos. Limpar é também destruir a diversidade ecológica. Então o que é que se devia fazer?Acabar com as assimetrias entre o mundo rural e o mundo urbano. O mundo rural está a ficar deserto, não há pastores, não há lenhadores e isso é que está a provocar um desequilíbrio. Porque o que acontece é que há na opinião pública uma grande confusão entre o que é floresta e uma mata de produção. Um eucaliptal é uma mata de produção que é muitas vezes apontada como negativa para o país…O eucalipto tem o papel que tem e também é importante, o problema é que há um exagero grande com enormes matas contínuas. Como é que classifica o estado do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros.O problema do parque é as pedreiras. Uma pessoa que passe de avião por cima daquele parque natural vê que aquilo é uma calamidade. Defende que acabem com as pedreiras no parque?Tem que haver sustentabilidade. Podem existir pedreiras, mas as pessoas que têm as pedreiras têm que cumprir normas ambientais. Há organismos muito pequeninos que são indicadores climáticos e de outras situações e as espécies que estão nas rochas vão para os troncos das árvores. A poeira é tão grande nos troncos que cria condições ecológicas para as espécies que estão nas rochas migrarem para a madeira. Isto revela bem as poeiras que andam no ar no parque, o que também não é bom para a saúde. Enquanto biólogo como é que classifica o distrito de Santarém?Há de tudo. Há sítios muito bons e sítios muito maus. Na zona de Alcanhões há bosques belíssimos, com espécies como o carvalho português. Há alguns locais com azinheira e montado. O que é muito bom. Mas por exemplo nas margens do Tejo começaram a aparecer espécies exóticas como o “Acer negundo” porque quem faz os jardins nas casas não sabe o que está a fazer e coloca estas espécies que depois vão para os esgotos e consequentemente para os rios. O que acontece é que estas espécies não têm competidores naturais e desenvolvem-se rapidamente. E a vegetação das barreiras de Santarém?Há um excesso de infestantes nas barreiras, mas também estão a cumprir um papel que é de sustentação da encosta. “Moita Flores mentiu às pessoas”Costuma participar nas festas populares que o actual presidente da Câmara de Santarém começou a promover?Não! O senhor Moita Flores desiludiu-me muito e quero que ele se vá embora. Ele mentiu às pessoas de Santarém. Disse que ia acabar com a dívida da câmara em poucos dias e além de não acabar com ela ainda a aumentou em muitos milhares. Leva assim tão a sério as promessas dos políticos?Uma pessoa quando escolhe um político tem que ser pelo seu currículo, a capacidade e acho que ele mentiu às pessoas. Como biólogo o que acha da requalificação dos jardins de Santarém?Aquilo foi feito por amadores. Não sei quem foi nem quero saber, mas estragaram os jardins da cidade. Porque foram gastos balúrdios e apesar de serem dinheiros da União Europeia esses dinheiros também são nossos. Na altura fiz as contas e as obras do Jardim da República ficaram a 150 euros o metro quadrado. Em miúdo brinquei naquele jardim e não gosto do que foi feito… São gostos. Com o dinheiro que foi gasto podiam ter colocado árvores maiores porque o jardim agora está solarengo. A rocha que puseram no chão não é adequada e não vai durar mais de 20 anos. Detesto aquilo. E o jardim das Portas do Sol?Tirar o lago foi uma má ideia na minha opinião. Depois voltamos à questão das árvores. Se podem lá colocar árvores com cinco metros porque é que metem umas apenas com um metro. Já no jardim que para mim continuará sempre a ser de Sá da Bandeira, não concordo que se chame Jardim da Liberdade, está bem feito. Tem medronheiro, azinheiras, carvalho português. Um jardim deve ser um corredor ecológico. Tem que ter espécies de árvores onde por exemplo as aves podem alimentar-se ou dormir. Os espaços verdes das cidades não têm que ser exóticos. Esses são jardins de plástico. Participa na vida da cidade, da comunidade?Tento. Uma vez escrevi para o vosso jornal indignado com o facto de terem feito uma festa Rave no convento de S. Francisco. Há pouco tempo fizeram também uma passagem de modelos e protestei na câmara municipal. Não se deve fazer coisas destas num monumento nacional que é sepultura de um rei português (D. Fernando) que devia lá estar há muitos anos, porque o convento está cheio de túneis, não se sabe a sustentabilidade do edifício, não se têm conhecimentos técnicos e não se conhecem os impactos que estas iniciativas têm no monumento. É uma pessoa interessada pelo património?Sou e faço parte da associação de defesa do património de Santarém. Foi um entusiasta da candidatura de Santarém a património mundial?Fui, mas tinha consciência que era difícil. Os monumentos portugueses, não é só em Santarém, estão muito mal cuidados. Tem que se investir mais por exemplo no Convento de Cristo, em Tomar. Não é só ter os monumentos. Interessa-se pela política?Agora comecei a interessar-se, filiei-me no PS em Santarém há um ano. Sempre votei maioritariamente no Partido Socialista e convidaram-me para entrar e fui. Nunca calhou antes. O PS em Santarém tem capacidade de se regenerar depois de perder a câmara nas últimas duas eleições?Claro que tem! Há pessoas com capacidade. Penso que há condições para reconquistar a câmara com a figura que o partido escolher, mas gostava que fosse uma pessoa de Santarém.Chegou a votar em Moita Flores?Votei sim e chateei-me à séria. Não tenho problema nenhum em dizer isto. Não é nada de pessoal. Acho que ele até é um bom estratega. Se o convidarem para integrar uma lista às eleições autárquicas vai aceitar?Nunca pensei nisso. Quando me filiei no PS disse que estava pronto para ajudar num programa e para trabalhar. Não sou dos que pensam que deve ser sempre um partido a estar lá sempre. Quem faz ou deixa de fazer não é o mais importante. O que interessa é fazerem-se coisas em Santarém. Mas tem que ser com pessoas sérias que dizem que fazem e fazem. As pessoas devem pensar e tratar bem a cidade. E não fazer show-offs como foi o Dia de Portugal.

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