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O neto do médico dos pobres do Cartaxo que morreu sem um tostão

O neto do médico dos pobres do Cartaxo que morreu sem um tostão

Actor António Montez revisitou a terra natal depois de quarenta anos de ausência

Podia ter sido médico se tivesse seguido as pegadas do avô. Mas decidiu-se pelo teatro e nessa tarde o cabelo voltou a crescer-lhe. António Montez, actor e encenador, natural do Cartaxo, é neto do “pai dos pobres” que morreu teso que nem um carapau. Regressou na noite de domingo ao sítio do velhinho Cine-Ribatejo, agora centro cultural, onde encenou “A Preguiça” ao lado de Raul Solnado, para revisitar a terra natal. Quarenta anos depois.

O actor António Montez chega ao espaço da cafetaria do Centro Cultural do Cartaxo pelo elevador. Acena ao público, distribuído por mesas, em ambiente informal, e alisa com a palma da mão o cabelo já grisalho. Regressa ao Cartaxo, onde nasceu há 69 anos, depois de uma ausência de quarenta. Na revisitação é acompanhado pelo conterrâneo José Raposo. Foi ali, ainda existia o velhinho Cine-Teatro Ribatejo, que em 1969 apresentou “A Preguiça”, ao lado de Raul Solnado. No final, ainda que António Montez acreditasse passar despercebido, alguém surpreendeu o cartaxeiro com um ramo de flores. É noite de domingo. António Montez levanta o guardanapo para espreitar os pastéis de bacalhau que a organização distribui aos convidados, mas prefere o vinho tinto. Por esta hora já passou o vídeo de Frederico Curado com alguns dos melhores momentos do actor em vários géneros. “Tive a sorte de nunca ter sido o jovem galã”, reconhece com humor. Uma hora depois uma voz feminina levantar-se-á da plateia para dizer que não foi galã, mas teria perfil para o ser, mesmo agora, aos 69 anos. Também poderia ter sido médico se tivesse seguido as pegadas do avô, Júlio Montez, baptizado pelo povo como “pai dos pobres”. Mas decidiu-se pelo teatro. Na mesma tarde o cabelo voltou a crescer-lhe no sítio de onde uma coroa redonda se tinha desprendido. A medicina ficou para trás apesar das boas notas do jovem. O actor de voz rouca e forte, inconfundível, deu provas em todos os géneros. Do teatro ao cinema. Da animação às dobragens. Foi figura conhecida na televisão e participou em novelas como “Vila Faia”, “Chuva na Areia” e “Cinzas”.Foi no Cartaxo que nasceu o menino António Montez, a 25 de Maio de 1941, e lá viveu até aos oito anos. Para prosseguir os estudos, a família escolheu Lisboa em vez de Santarém. O pai morreu sem o conhecer. O avô, médico, partiu quando António Montez tinha dois anos, mas ainda assim o actor tem na memória os seus bigodes e as suas brincadeiras. Cinco anos depois da morte do médico Júlio Montez a vila prestou-lhe um tributo. Ergueu um mausoléu no cemitério. “Ao pai dos pobres o Cartaxo agradece”, lê-se na inscrição. “O único médico do concelho do Cartaxo morreu teso que nem um carapau”, testemunha o neto. Aos dez anos, a pedido da avó, o menino percorreu as ruas da vila, porta a porta, na tentativa de cobrar dívidas antigas. Sem sucesso. “Muitas vezes o que recebi foi um manguito”, desabafa. “Senti-me em casa”O dia do funeral do avô, que teve direito a nome de rua na terra, foi um momento solene no concelho. O Cartaxo parou. O comércio fechou portas e prestou homenagem ao “pai dos pobres”. O cortejo fúnebre já tinha chegado ao cemitério e ainda se avistava uma multidão no largo da câmara.Era o único médico do concelho. O número de telefone o 77. Não recusava um serviço. Fosse às três ou às cinco da manhã. A avó vestia as calças ao avô ainda na cama. Depois a camisa e quando já estava de pé colocava-lhe a gravata e o alfinete. Cada gesto estava estudado. Levava sempre um lenço perfumado para os piores cenários que poderia encontrar no meio do campo. O actor é produto de duas mulheres – a mãe e a avó. O professor José António Poeira, do Cartaxo, a referência masculina mais forte que lhe ficou. Paragem obrigatória sempre que visitava a terra natal. No 25 de Abril de 1974, Montez, o neto, estava em palco. O beijo na testa a Irene Cruz tornou-se no primeiro beijo cinematográfico livre de censura e improvisado em palco. Depois de uma ausência de quarenta anos, António Montez, pai de três filhos, companheiro de Ermelinda Duarte, não levou do Cartaxo um ramo de flores. Recebeu a vizinha Sara do Manuel da esquina com um sorriso melancólico, recordou a figura do António Inverno, da tia velhota e a loja do José Maria Nicolau. Levou palavras, abraços, olhares de saudade. “Eu achava que ia sentir-me em casa aqui, mas senti-me muito mais em casa do que pensava”.João Baião é próximo convidado de José RaposoJoão Baião é o próximo convidado de José Raposo nas conversas do Centro Cultural do Cartaxo. É uma figura conhecida do grande público pelo percurso televisivo, mas foi no teatro que iniciou a sua carreira. A próxima sessão de “José Raposo convida”, a nova rubrica do Centro Cultural, está marcada para domingo, 31 de Outubro, às 21h30. A iniciativa está aberta a maiores de seis anos. As entradas são livres.
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