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Após trinta anos na política activa o professor voltou a dar aulas

Após trinta anos na política activa o professor voltou a dar aulas

Prestes a completar setenta anos e após três décadas dedicado à política, Mário Albuquerque decidiu mudar de vida. O ano passado deixou a Assembleia da República pelo seu pé, como havia feito com a presidência da Câmara de Ourém, depois de ter sido também governador civil de Santarém. Mesmo assim não lhe falta que fazer. O professor voltou a dar aulas, agora numa universidade sénior, e é presidente de uma instituição particular de solidariedade social. Este devoto de Nossa Senhora de Fátima e do Benfica confessa que lhe custou ver o PS ganhar o município e diz ter algumas saudades da política activa.

Tem saudades da política activa?Claro que tenho. Tenho saudades do convívio com as populações, dos conhecimentos que vamos adquirindo com gente boa, da solidariedade que se gera com toda essa gente. São coisas que não se apagam facilmente da memória.Nunca pensou regressar?Não. Eu próprio me auto-excluo de qualquer participação política.Nem na vida interna do PSD?Nem isso. Aqui em Ourém podia participar mas gerou-se alguma confusão, algumas clivagens e eu não estou disponível para isso. Neste momento só estou disponível para pacificar, para concertar, para ser uma referência de estabilidade. Mas como há gente que não quer, eu não estou disponível.Não estranhou ficar de repente com a agenda tão livre?Estranhei um bocadinho mas logo me adaptei. Logo arranjei outros compromissos. Estou perfeitamente bem comigo e bem com toda a gente. E com o partido também. Fartou-se da Assembleia da República?Saí pela mesma razão que invoquei quando saí da câmara. Entendi que já era tempo de dar lugar a outros. Também saí antes do tempo. Faltavam ainda uns quatro meses para acabar o mandato. Foi no final de Abril de 2009. Gosto de sair pelo meu pé e pela porta grande. Não sou daqueles que se agarram aos cargos como a lapa se agarra à rocha.É uma pessoa de ideias fixas?Tenho algumas ideias fixas. Mas antes de tomar uma decisão amadureço-a muito bem. Foi professor primário durante muitos anos até chegar à política. Não lhe custou abandonar a sua profissão?Custou. Sou uma pessoa realizada tanto a nível profissional como a nível político. E tanto uma coisa como outra me custaram a abandonar. Mas há opções que têm de ser feitas.Era severo com os seus alunos?Tinha excelentes relações com as crianças. Sou uma pessoa muito afectiva, embora não pareça. E quando se é assim é fácil lidar com as pessoas e sobretudo com as crianças. Nunca tive problema nenhum. Obtive sempre excelentes resultados com elas e ainda hoje alunos meus falam comigo sobre esses tempos. Em que fase da sua vida começou a ganhar consciência política?Foi só em 1974. Até aí dedicava-me por inteiro à profissão. Era de famílias muito modestas e precisava de ganhar a vida.O que faziam os seus pais? A minha mãe era trabalhadora rural e o meu pai teve uma doença aos trinta e poucos anos, ficou inutilizado e tinha uma pequena pensão. Era disso que vivíamos.Mesmo assim teve possibilidade de estudar.O meu pai, com essa pensãozita, na altura 700 escudos mensais, pôs-me a estudar.Acabou por ser um privilegiado numa altura em que só muito poucos tinham acesso a um curso superior.Muita gente não tirava cursos nem estudava sequer. Mas o meu pai, que era uma pessoa com uma certa abertura e uma certa formação, entendeu que eu devia tirar um curso se tivesse capacidade para isso. Fiz o magistério primário em Leiria e ainda cheguei a frequentar Direito em Lisboa, mas não acabei. O advogado perdeu-se pelo caminho... Na casa dos seus pais não se falava de política?Não. Nos tempos do Estado Novo não era nenhum revolucionário, mas também não era uma pessoa acomodada. Na altura fui director do Notícias de Ourém e cheguei a ser chateado pela censura, algumas vezes por causa de artigos meus. Era o famoso lápis azul. Muitas vezes o jornal estava para sair e lá vinha uma ordem de Santarém a dizer que não podia sair. Deixei de ser director no final de 1975. Aquele impacto revolucionário caiu-me todo em cima.Mas Ourém era uma zona onde a esquerda tinha pouca implantação.Isso é o que lhe parece. Na altura toda a gente era de esquerda, porque era bonito ser de esquerda. Havia aí uns revolucionários apaixonados que dava a impressão que tinham um grande passado político. E eu, um desgraçado que trabalhei sempre de borla, ainda fui apelidado de fascista por ser director do jornal.Uma referência do PSD que começou a carreira política como candidato do PSMário Albuquerque é uma das referências do PSD a nível regional, tendo sido presidente de câmara, deputado à Assembleia da República e governador civil de Santarém. Mas muita gente não saberá que o antigo professor começou a carreira política como número dois da lista do Partido Socialista à Câmara Municipal de Ourém nas primeiras eleições autárquicas, realizadas em 1976. Na altura, Mário Albuquerque não tinha filiação partidária. Acabou por não ser eleito nesse sufrágio – os socialistas só elegeram um vereador – mas o bichinho da política ficou. Em 1978 filiou-se finalmente no PSD, partido com o qual se identificara mais, e no ano seguinte foi cabeça de lista dos social-democratas à Câmara de Ourém. Para grande surpresa até do próprio, acabou por ser eleito presidente, beneficiando da cisão no CDS, que dominava politicamente o concelho. “Não estava preparado para ser presidente”, confessou.A divisão dos votos entre os vários partidos produziu efeitos curiosos. O PSD, que governava a câmara, tinha apenas 2 elementos na vereação, Mário Albuquerque o seu número dois, contra 5 eleitos da oposição (2 do CDS, 2 do extinto PDC e 1 do PS). Apesar disso, conseguiu manter a governabilidade durante os três anos de mandato. “Era boa gente, não havia politiquice”. Acabaria no entanto por perder a câmara nas eleições de 1982 para o CDS, que entretanto ultrapassara as divisões. Mesmo assim somara mais votos que nas anteriores eleições.Volta à carga em 1985 e acaba por ganhar a câmara novamente sem maioria absoluta. Só em 1989 consegue finalmente alcançar a maioria absoluta na vereação, que reforça em 1993. Até que em 1995, “quando estava no auge”, decide abandonar a presidência da câmara “por vontade própria” para aceitar o desafio de ser deputado na Assembleia da República. “Entendi que era chegada a hora de ir embora, que havia algum desgaste, que já faltava alguma pujança e alguma frescura”. Não se quis eternizar no cargo, dizendo que foi “por uma questão de seriedade” que deu esse passo. “Saí pela porta grande”, afirma.Em 1995 houve dois acontecimentos que foram determinantes para lhe “quebrar o entusiasmo”: ter-se sentado pela primeira e única vez no banco dos réus por causa de uma obra municipal em Fátima e a morte do seu chefe de gabinete na auto-estrada, quando estava ao serviço da autarquia. “Fui a tribunal por causa de umas formalidades que não foram cumpridas numa obra em Fátima, que não foi levada ao Tribunal de Contas. Isso traumatizou-me bastante, tal como a morte do professor Diamantino, que era o meu chefe de gabinete”.Da sua extensa carreira política, o cargo que mais gostou de desempenhar foi o de presidente da Câmara Municipal de Ourém, “pela afectividade com a população” e pela “obra feita”. A entrevista decorre no jardim construído no centro da cidade inaugurado em 1982, no seu primeiro mandato. Mas nessa altura, as prioridades da autarquia incidiam sobretudo em satisfazer as necessidades básicas das populações - “As pessoas queriam era estradas, luz e água”. E não havia fundos comunitários.Um devoto de Fátima com paixão pelo BenficaContinua a sofrer pelo Benfica?Sim, sou um apaixonado pelo Benfica. De vez em quando ainda vou ao Estádio da Luz. E não vou mais vezes porque a minha disponibilidade não permite. Porque às vezes também vou ver o Fátima e os horários são incompatíveis. O Fátima está na segunda liga e tem jogos em todo o país. E eu acompanho sempre. Ao domingo estou sempre no futebol.É o seu passatempo preferido?Sim. Também leio, vejo cinema na televisão, mas gosto muito do futebol. E vejo também aqueles programas de análise política. Sou um apaixonado, não perco um, seja em que canal for. E os de análise sobre futebol também, o que me faz enervar um bocado às vezes, com algumas posições que por ali passam. Mas enfim, é a vida…É uma visita regular do santuário de Fátima?Sim, vou lá todos os domingos por uma questão de fé. A pé fui quando era miúdo, umas duas ou três vezes. Mas deixei de ir por entender que não é por aí que se manifesta a minha convicção religiosa. Costuma fazer promessas a Nossa Senhora?Também faço.Já fez alguma por causa do futebol?Isso não. Fiz uma há pouco tempo porque fui operado. Foi uma intervenção melindrosa. Tirei um rim, já depois de sair do Parlamento, e fiz uma promessa. Felizmente as coisas correram muito bem e hoje estou perfeitamente recuperado.Agenda continua bem preenchidaMário Albuquerque nasceu em Alburitel, Ourém, em 19 de Novembro de 1940. Casado, tem dois filhos e dois netos. Em 2009 deixou a política activa, mas a sua agenda continua bem preenchida. É professor de História de Portugal e de Cidadania em regime de voluntariado na Universidade Sénior de Ourém e presidente da direcção do Centro de Recuperação Infantil de Ourém (CRIO). Actividades que lhe preenchem os dias, a par da gestão das propriedades da esposa na zona de Mouriscas, Abrantes.Na Universidade Sénior teve oportunidade de voltar a ser professor, profissão que desempenhou durante dez anos antes de ser delegado escolar no concelho de Ourém e sub-director escolar em Santarém. Dos tempos de professor primário guarda saudades do convívio com os alunos. Apesar do ar austero e reservado, Mário Albuquerque garante que não era severo com os petizes e que as reguadas não eram prática corrente. Hoje os alunos são da sua geração ou até mais novos e as exigências são também diferentes. “Aprendemos uns com os outros”, diz bem disposto.Oriundo de uma família humilde – a mãe era agricultora e o pai cedo ficou inválido -, Mário Albuquerque mesmo assim teve possibilidade de estudar. Primeiro em Ourém, onde tirou o antigo quinto ano. Depois em Leiria, onde fez o sétimo ano e o magistério primário que o habilitou a ser professor. Problema de saúde deixou-o mais humanizadoEm 2009, pouco tempo após abandonar a Assembleia da República, Mário Albuquerque foi submetido a uma intervenção cirúrgica para extracção de um rim, na sequência de um tumor que lhe foi detectado. A experiência vivida deixou-o mais humanizado e mais sensível às pequenas coisas da vida. Hoje leva uma vida normalíssima e nem na alimentação tem restrições. “Custou muito ver o PSD perder a Câmara de Ourém”Custou-lhe ver a Câmara Municipal de Ourém cair nas mãos do PS?Claro que sim. O concelho de Ourém deve muito ao PSD. Em 1974 estava na cauda do progresso a nível do distrito e conseguimos trazê-lo quase para o pódio durante este tempo todo. Custou muito, depois deste trabalho que realizámos, que de um momento para o outro houvesse esta viragem. Quinze dias antes, para as legislativas, o PSD tinha ganho em Ourém com uma diferença de 5 mil votos. Como é que em 15 dias se perdem 5 mil votos?O que falhou?Houve vários factores, como o desgaste do PSD, porque o poder desgasta sempre. As divergências dentro do partido, a campanha bastante agressiva que o PS fez e a boa imagem do presidente da câmara, tudo isso junto trouxe estas arrelias para o PSD.Há uma década esse era um cenário impensável. Sim. O PS andou sempre muito atrás de nós. Aliás, era o terceiro partido do concelho durante muitos anos. Mas a vida política é isto. As alternativas constroem-se desta forma. Quando menos se espera as coisas acontecem e é bom para as pessoas não se acomodarem.“O PSD está muito dividido em Ourém”O PSD tem agora uma travessia do deserto para fazer em Ourém.Tudo depende de como o PSD se organizar. O PSD está muito dividido em Ourém. Há clivagens muito fortes, há gente que entende que se deve sobrepor a outros. E isso não é assim. Quem decide são os militantes e há que aceitar a decisão dos militantes. Quando as pessoas não se entendem gera-se confusão. Essas clivagens não são boas e acabam por se reflectir na imagem do partido. Como é que um partido pode ir para a rua apresentar propostas ao eleitorado se ele próprio está dividido por dentro.Como avalia o desempenho do actual presidente da câmara, o socialista Paulo Fonseca?Não tenho opinião por enquanto. O primeiro ano do mandato é para tomar conta dos dossiês, para poder saber como é a organização interna da própria câmara. Neste momento não tenho nota positiva ou negativa a dar.Que expectativas tem em relação a Paulo Fonseca como autarca?Não tenho nem boas nem más. Vamos ver o que vai dar. A simpatia é uma coisa e a capacidade é outra. São coisas completamente diferentes. O balanço far-se-á na altura própria. O Partido Socialista tem um caderno de encargos bastante volumoso e ambicioso. Estamos todos à espera para, quando chegar a altura, ver até que ponto foi cumprido.Curiosamente, o actual presidente da Câmara de Ourém também foi seu sucessor no Governo Civil de Santarém. Os governos civis continuam a fazer sentido?O papel de governador civil faz sentido se for desempenhado como eu desempenhei. Porque se é para estar lá no gabinete a fazer política partidária não fazem sentido. Agora, se o governador civil sair para a rua, como eu fazia, e correr os concelhos todos, procurar fazer um levantamento dos problemas e trazer as pessoas da administração central até aos concelhos para resolver os problemas, aí pode valorizar o papel de estrutura intermédia entre o Governo e a administração local. Mas não sei como está a funcionar agora, porque não tenho acompanhado.No actual contexto económico e político continua a fazer sentido falar da criação do concelho de Fátima?Fátima é uma terra que está a projectar-se de forma imparável e é uma realidade com uma dimensão de tal ordem que algum dia isso terá que acontecer.A criação do pelouro de Fátima pelo actual executivo da Câmara de Ourém foi uma boa medida?Se for traduzido em obra e procurar tratar da melhor maneira os problemas de Fátima, se calhar é. Mas não é por aí que os problemas de Fátima se resolvem melhor.O nível da classe política tem vindo a decair, como dizem alguns analistas?Não se pode generalizar. Há pessoas sem condições e há gente muito boa. Sempre foi assim. O director de jornal que conheceu a censuraUma faceta curiosa da vida de Mário Albuquerque deu-se quando foi director do jornal Notícias de Ourém, cargo que assumiu antes do 25 de Abril e nos anos quentes pós-revolução. No tempo do Estado Novo o jornal não escapou à censura. No período conturbado depois do golpe dos capitães de Abril, chamaram-lhe fascista. Depois da intolerância da ditadura veio a intolerância revolucionária, protagonizada por gente a quem nunca tinha conhecido ideais subversivos. “Trabalhava de borla e ainda me chamavam fascista”, diz a rir-se. No final de 1975 deixou as lides jornalísticas e pouco depois entrou na política activa que só largou em 2009.
Após trinta anos na política activa o professor voltou a dar aulas

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