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A professora que nunca desistiu de ensinar

A professora que nunca desistiu de ensinar

À beira dos 90 anos, Aurora Castelo continua a dar aulas em Rio Maior

Aurora Castelo foi professora do ensino oficial em Rio Maior durante quase quatro décadas. Em 1986 reformou-se mas não deixou de ensinar. Actualmente dá aulas de bordados particulares e na Universidade Sénior da cidade. Está prestes a comemorar 90 anos mas não pensa em parar. Vai ter o seu nome numa rua da cidade, embora contra a sua vontade.

Em Novembro foi homenageada pela Câmara Municipal de Rio Maior. Em Janeiro vai dar o seu nome a uma rua dessa cidade. O feito de Aurora Castelo foi ter sido professora de lavores e de trabalhos manuais no ensino oficial durante quase 40 anos e, após a reforma em 1986, não ter desistido de ensinar. Até hoje, à beira dos 90 anos que se completam a 28 de Dezembro próximo.Mulher de antes quebrar que torcer, com lucidez e genica foram do comum para uma pessoa da sua idade, Aurora Castelo continua a receber as suas alunas de lavores numa dependência alugada na Rua Mouzinho Albuquerque e ainda dá aulas na Universidade Sénior de Rio Maior. Na tarde gélida em que a visitamos, tem três pupilas a fazerem-lhe companhia, todas entretidas com os seus bordados. São mulheres que já ultrapassaram a fasquia do meio século de vida, algumas já aposentadas, que aproveitam para exercitar a arte do bordado e conviver com Aurora Castelo, senhora de palavra sempre pronta e sem papas na língua quando se trata de dar opinião.De bata branca, dedal no dedo do meio da mão direita, sentada numa cadeira com uma peça de bordado no colo, Aurora Castelo protesta quando lhe falamos das homenagens de que é alvo. “Não gosto de ter o meu nome numa rua. Vão pô-lo mas eu não quero. Não é minha vontade, não gosto dessas coisas. Deram-me há pouco tempo uma medalha e sabe Deus o que me custou…”, diz, revelando que não sabe onde fica a “sua” rua.A professora Aurora Castelo continua no activo mas não é para matar saudades dos tempos da escola que foi a sua vida durante décadas. Simplesmente não consegue ficar parada a ver os dias a passar, como a água de um rio em direcção à foz. Ainda borda para fora e por vezes faz serão até às três ou quatro da manhã. “Agora já não é preciso dormir muito. Nunca perdi uma noite num baile”, afirma quando lhe perguntamos se não se cansa.“Se fosse eu que mandasse, acabava com as discotecas”Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, dizia o poeta. E Aurora Castelo sabe-o bem. Nunca lhe faltaram alunas, mas hoje as raparigas novas já não aparecem a querer aprender a bordar, como acontecia há 30 anos. “Foi desde que apareceram as discotecas. Se fosse eu que mandasse, acabava com as discotecas e a Internet”, sentencia de dedo espetado.Tem dois filhos, um homem e uma mulher que lhe deram oito netos. Vive em casa da filha. Já tem uma bisneta com sete anos que a trata por “velhota” e que por vezes lhe faz perguntas difíceis, como tentar saber de onde vêm os bebés. Diz que não sente saudades da juventude, muito por culpa do pai, militar que impunha em casa uma disciplina que chegava ao ponto de lhe cortar o cabelo curto. “Era uma disciplina militar em casa e eu queria era sair. Morava em Lisboa e só conheci o jardim zoológico, que é onde está hoje a Gulbenkian, porque o meu marido lá me levou. O meu pai dizia que a mulher era para estar em casa”, conta.O pai não a queria deixar namorar, mas o seu espírito rebelde e independente falou mais alto. Até porque aos 20 anos já trabalhava em bordados e já ganhava o seu dinheiro. Acabou por casar aos 23 anos, com Júlio Pereira de Almeida, falecido há quase vinte anos. Deu o nó pelo civil em Lisboa, onde residia, e o pai não assistiu. O marido era seu primo direito, natural de Rio Maior onde foi contabilista, professor e presidente da assembleia municipal. Foi ele o responsável por ter vindo parar à cidade, então vila. Curiosamente, também tem o nome numa rua da cidade.Uma professora que não gostava de estudarA professora Aurora Castelo fez toda a aprendizagem escolar em Lisboa. Na Escola Industrial de António Arroio concluiu em 1940 o curso de Lavores Femininos, com a classificação final de 16,5 valores, como atesta o amarelecido diploma que fez questão de nos mostrar. Já professora há muitos anos, frequentou na Telescola o Curso de Formação e Actualização de Futuros Professores do Ciclo Preparatório do Ensino Secundário, tendo sido considerada apta em Setembro de 1968.A sua carreira docente começou em 1948, tendo sido uma das fundadoras da Escola Comercial de Rio Maior leccionando a cadeira de Lavores Femininos. Na vila não havia até então ensino público a partir da escola primária. De 1968 a 1986 (ano em que se reformou da função pública) foi professora de Trabalhos Manuais na Escola Preparatória de Latino Coelho, na mesma cidade.Como professora, diz que nunca teve de usar a violência para lidar com os alunos. “Nunca bati em ninguém. Havia mais respeito pelos professores”. Considera que os jovens de hoje são mais indisciplinados: “Se fosse professora hoje já tinha sido castigada de certeza. Porque não ia admitir que algum aluno me ofendesse ou me batesse”.Depois da reforma não calçou as pantufas. Foi formadora em acções promovidas pela Câmara de Rio Maior e juntas de freguesia de Asseiceira e Benedita. Há muitas décadas que dá aulas particulares de bordados e dá aulas da mesma arte na Universidade Sénior de Rio Maior.Aurora Castelo diz que sempre preferiu a prática à teoria e nos seus tempos de estudante não se dava bem com disciplinas como a Matemática ou o Português e tinha dificuldade em memorizar os ensinamentos. “Gostava era de trabalho de mãos”, afirma. Ainda pensou em ir para a Escola de Belas Artes, mas como tinha muita física e química desistiu da ideia.“Era a primeira a entrar na sala e nunca fiz greve”Aurora Castelo era uma professora que dava o exemplo e que sabia dar-se ao respeito Foi professora ao longo de muitos anos. Que diferenças foi notando entre as várias gerações de alunos?O ensino de agora é muito pior. Só trabalham com computadores e essas maquinetas. Eu não trabalhei com nada disso. Também mudou muito o respeito pelo professor. Eu mantive sempre o mesmo hábito, era a primeira pessoa a entrar na sala e nunca fiz greve. Quando tocava a campainha para os alunos entrarem para a sala já eu lá estava. Não gostou de ver os professores em greve, no dia 24 de Novembro?Não! A minha neta é professora, faz greve e fico sempre revoltada. Não se constrói nada com as greves, em qualquer dos graus de ensino. Onde reside essa mudança de alunos e de professores?A preparação dos alunos também conta, mas não só. Tive colegas que valha-me Deus! Foi muito mau terem sido professores…Gostava muito de ensinar?Não fui eu quem pediu a reforma, apenas recebi um papel a dizer que tinha de me reformar. Ainda dei aulas quatro anos em que julguei que tinha de repor o dinheiro como aconteceu a colegas meus. Mas lá pensaram que eu era velhota e que não valia a pena. Os pais são os principais responsáveis pelo que os jovens são hoje?Alguns são, depende da formação que tiverem os pais e a que deram aos filhos. Nas aldeias, os trabalhadores rurais não tiveram escola, como o meu pai que foi para a tropa sem saber ler nem escrever. Tirou a quarta classe na tropa e morreu como capitão. Os meus pais eram moleiros e foi o que ele aprendeu. Como ia descalço para a escola, deixou de ir à escola.A sua família era muito rígida?O meu pai era à antiga. Não me deixava cortar o cabelo ou usar mangas curtas. As saias tinham de ser usadas até ao tornozelo e usar botas abotoadas.Custa-lhe ver hoje na rua jovens mais despidas ou rapazes e raparigas muito agarrados?Já vi coisas na rua que valha-me Deus. E não tiveram vergonha nenhuma, acabaram de fazer o trabalho na mesa dos jardins da praça da República! O jardineiro a ver e eu ainda mais encavacada que ele. Como reage em relação aos homossexuais?Já não digo nada. Tenho netos que usam brinquinho na orelha e estou sempre a chamar-lhes maricas! Era defensora de uma disciplina férrea nas aulas?Apenas castigava, nunca bati em ninguém. Ou então dizia que quem se portasse mal ia para a rua com participação da escola. Que os alunos eram mais obedientes aos professores nessa altura não haja dúvida.Leccionou durante 38 anos, entre 1948 e 1986. Do que sente mais saudades?Tenho um aluno meu, que mora ao cimo da rua, que me pega ao colo cada vez que me vê e diz “ó velhota!”. Mas tenho saudades.Foi professora de figuras de Rio Maior.Fui professora do ex-presidente da câmara Silvino Sequeira. Da actual presidente Isaura Morais sei que andou na escola antiga, mas não andou comigo.Acompanhou ao longo dos anos a realidade política de Rio Maior?Não, de política não percebo nada.O que diz de ter uma mulher na presidência da câmara?Olhe: o meu marido dizia que havia muitos homens que deviam ter a capacidade de muitas mulheres. Não é feminista?Acho que não, tudo no seu lugar. O homem tem de cumprir, como a mulher tem de cumprir. Mas os homens devem auxiliar nas tarefas de casa, como passar a ferro, isto se gostam. Eu acho que é mais tarefa de mulher, não de homem.É nesta casa que dá as suas aulas de costura?Tem sido assim desde há três anos quando me prometeram arranjar um espaço. Há funcionários na câmara a quem arranjam logo uma sala para os homens estarem a jogar às cartas. A Universidade da Terceira Idade está a pagar três mil euros pelo aluguer de uma casa quando há espaços municipais.Natural de Praia do Ribatejo adoptou Rio Maior como sua terraAurora Blandina Almeida Castelo nasceu no dia 28 de Dezembro de 1920 na Praia do Ribatejo, concelho de Vila Nova da Barquinha. O pai era militar numa unidade de Tancos, mas era oriundo da zona de Loures. A mãe era de Rio Maior. Devido à profissão do pai passou por outras localidades, como Entroncamento, Moscavide e Lisboa, onde viveu a maior parte da sua vida até casar.As circunstâncias da vida fizeram com que nunca tivesse memórias nem uma relação próxima com a terra à beira do Tejo que a viu nascer. É Rio Maior que considera a sua terra. Há uns tempos passou pela Praia do Ribatejo numa excursão e diz que foi “uma enorme surpresa”, pois não tinha ideia de como seria.Um dia pôs a filha de um ministro na ordemHá quem diga que se aprendia mais até à quarta classe de antigamente do que hoje até ao nono ano. Há alguma verdade nisto?Eu digo que sim. Andei não sei quanto tempo a ensinar a tabuada ao meu bisneto, que está no segundo ano do ciclo. É inegável. Não quer dizer que em disciplinas como o inglês e o francês não tenham evoluído. Digo isso pela minha bisneta de sete anos que já faz uma relação entre a ciência, o português e o ser humano diferente da do meu tempo, pelas perguntas que faz. De resto, a maior parte não sabe onde ficam os rios ou sequer quem foram os reis de Portugal.Concorda com as aulas de educação sexual nas escolas?Dentro de certa idade concordo. Deve-se procurar uma idade ideal que não seja a de crianças pequeninas e de acordo com a educação dos pais. Eu sou contra a criança que está em casa com o pai e com a mãe e que tomam banhos juntos. Não concordo! Como tem visto o encerramento de escolas neste e noutros concelhos por falta de alunos?Antigamente era aquela separação nas escolas entre rapazes e raparigas. Não sou contra estarem misturados. O que se passa é que a educação deles tem de ser outra. Mas também há professores e professores. Eu tive um colega que se despia na aula de ciências, era maluco! Não sou antiquada, é o que penso. Viveu muitos episódios marcantes na escola?Fui escalada para dar aulas em Lisboa durante dois anos. Era professora no primeiro e no segundo ano quando o Veiga Simão era ministro da Educação. Ele tinha três filhas que frequentavam a escola. Eram autênticos rapazes, vestiam-se como rapazes, não pegavam numa agulha nem queriam fazer nada. Chego à primeira aula dos alunos do primeiro ano. Uma dessas raparigas vê-me chegar e diz: «Olha, uma professora nova! O que é que tu queres?». Olhei para a miúda, perguntei-lhe se estava habituada a tratar os professores por tu e avisei-a que comigo não podia fazer isso. Estavam habituados a vir fumar para a rua. Nunca mais tive qualquer aluno dessa escola que me faltasse ao respeito, desde os mais novos aos dos 11.º e 12.º anos. Foram dois anos exemplares na Escola Luís de Camões, no Areeiro.
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