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Afincado Serafim das Neves

A defesa das nossas tradições é algo que me encanta. E não me refiro apenas ao folclore e às touradas. Vê por exemplo, o carinho e o esforço que dedicamos a perpetuar as bichas, a que ninguém já chama bichas. À porta da empresa Águas de Santarém a tradição ainda é o que era. Uma fila de quilómetro. Um dia destes à porta da Segurança Social foi um reboliço com o povo da fila a chamar a polícia porque os funcionários fecharam a porta. Eu bem sei que agora não é preciso haver filas porque há as senhas numeradas. Mas o hábito da fila mantém-se. Formam-se filas por tudo e por nada. São as chamadas filas espontâneas. É como no rugby. Um destes dias estava eu nos Correios e uma senhora colocou-se atrás de mim depois de me perguntar se eu era o 325. Ainda lhe disse que era Manuel, Manuel Serra d’Aire. Ela já não ligou. Espreitou a minha senha e colou-se às minhas costas. Pelos vistos era a 326. A solidão também se mitiga assim. Numa fila há calor humano. Há contacto com outras realidades. Numa fila aprende-se muito sobre o outro. Sobre os outros. E treina-se o olfacto também.Os telemóveis dão-nos informação fragmentada. Temos apenas a voz de uma das partes. Temos que tentar imaginar o que a outra parte está a dizer. É um bom exercício criativo mas não nos dá informação fiável. Na fila ouve-se tudo. Fala um, fala outro, falamos todos se a ocasião se proporciona. E há ambiente propício ao protesto. Quem está isolado com uma senha na mão, aguenta sem protestar. Quem está na molhada das senhas ou na fila espontânea sente-se protegido. Apupa o funcionário do atendimento; apouca o primeiro-ministro; fala abertamente do último livro do Moita Flores que viu no supermercado a espreitar por cima dos nabos na secção da hortaliça. Ontem vi em Abrantes um grupo de cidadãos à porta de uma casinha com um letreiro a dizer pay-shop. Não estavam em fila mas numa rodinha. A mesa-redonda do povo, pensei eu com os meus botões. Estive vai, não vai para me juntar ao grupo. Só não o fiz porque não sei falar estrangeiro. Sabia lá eu o que fazer numa shop do pay, ou pay shop ou lá o que é. Ora aqui está outra coisa de que os portugueses gostam muito. Nomes em estrangeiro. Às vezes olho à volta e parece que estou em Londres. É tudo em inglish. Até os nomes portugueses. Manuel’s. Maria’s. Tânia’s. Estamos uns cosmopolitas do camandro. O café da aldeia do meu cunhado já não se chama “Febras”. Mudou para “Febra’s”. Ao lado ficam as fêveras brasileiras da “House of Fun”, seja lá o que isso for.Deixei para o fim um assunto ainda mais interessante que o das bichas, das filas e dos nomes com sabor a estrangeiro. O das camionetas de carreira. Gosto muito daqueles casinhotos à beira da estrada onde se presume que passem camionetas de passageiros. Acho que se trata de desporto aventura. A gente vai para lá e espera. Tanto podemos esperar uma hora como uma manhã ou ou dia. Se formos ao fim-de-semana acabamos por dormir lá duas noites. O engraçado do jogo das casinhas do machimbimbo são as pistas. “Amo-te Gordita”; “Festa nas Marrascas com o Conjunto três mais um”; “Panascoso foi ao vinho”; “Ganda Pacote”. Serão horários em código? Destinos camuflados? Informações sobre alterações de carreiras em linguagem rural? Ouve-se a chuva a bater no vidro e passam velhotes em velhas vespas com oleados enfiados pela cabeça e senhoras com capacetes meia-lua sentadas no banco de trás. Sabes se ainda há camionetas, Serafim??Saudações rodoviáriasManuel Serra d’Aire

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