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Memórias de Mário Viegas contadas pela cúmplice de uma vida

Memórias de Mário Viegas contadas pela cúmplice de uma vida

Hélia Viegas fala da sua relação com o irmão e relata episódios que viveram até a morte os separar

Hélia Viegas foi a grande cúmplice na vida do irmão, o talentoso actor Mário Viegas, falecido faz dia 1 de Abril 15 anos. Nesta entrevista, conta como era o relacionamento em família e como esta reagiu à doença que acabaria por o vitimar. Licenciada em farmácia e em enfermagem, Hélia Viegas, 64 anos, tem em mãos a tarefa de ordenar e dar a conhecer à comunidade o espólio que ilustra a vida e obra da família, onde não falta gente ilustre. Para além disso, dedica-se à sofrologia, sendo pioneira dessa actividade terapêutica na região.

A memória de Mário Viegas tem sido bem cultivada em Santarém?Julgo que sim. O meu irmão partiu há 15 anos e sempre que há oportunidade as pessoas da cidade ligadas ao Centro Cultural, ao teatro, à câmara, prestam-lhe essa homenagem justa. Está na memória das pessoas, seja em Santarém ou noutro lado qualquer. Gostam de falar dele, de histórias que têm com ele. E Santarém não foge a essa situação. Mário Viegas vai ter uma escultura evocativa no Jardim da Liberdade, em Santarém. O presidente Moita Flores falou-me disso no ano passado, num almoço do 25 de Abril em Grândola. E já fui chamada à câmara para conhecer a maqueta da escultura. Gostei muito do trabalho.Sendo o seu irmão um crítico do sistema, ser homenageado pelo poder político não deixa de ser irónico. Acha que ele ia gostar?Provavelmente acharia que era desnecessário. Mas gostaria, mesmo que visse isso como um exagero.Mário Viegas era uma pessoa sensível às críticas? Ligava muito às críticas. Via-as como um incentivo e prémio pelo seu trabalho. E a crítica, quando honesta e sincera, ajudava-o a crescer. Era muito importante para ele ouvir a opinião de duas ou três pessoas, sobretudo quando fazia uma estreia. Só não lidava bem com a má crítica gratuita, como ninguém lida. Como irmã mais velha, sente que exerceu alguma influência sobre o seu irmão que o levasse a seguir a vida artística?Nenhuma. Penso que o meu irmão entrou com um determinado programa para cumprir na sua vida. Era uma programação que tinha que terminar. Desde pequenino ficou direccionado para o teatro. Como irmã mais velha - a nossa diferença é de 22 meses - é natural que tenha tido nas brincadeiras alguma interferência. Mas não sinto que tivesse um ascendente sobre ele. Eu tinha um grande imaginário, acho que continuo a ter, e ele encontrou em mim uma pessoa que estava pronta para o seu imaginário.Havia uma empatia natural.A nossa relação foi sempre empática. Ele participava nas minhas brincadeiras e eu participava nas dele. Nascemos os dois assim. Éramos muito parecidos nessa parte criativa, eu de uma forma e ele de outra.Já se adivinhava em criança que estava ali um potencial génio?Não gosto da palavra génio, porque dentro da família nunca pensámos nessa situação, víamo-lo mais como uma pessoa excepcional. Pensei isso sempre, desde pequenina. E os meus pais foram achando isso também. Eu dizia mata e ele dizia esfola. Ele era a única pessoa que me entendia em toda aquela criatividade. E eu com ele idem. Ajudei-o imenso nos teatros pois gostava muito de trabalhos manuais, de desenho, de pintar, de fazer fatos para os fantoches, cenários, recortes, composições.Eram irreverentes e rebeldes em jovens?Éramos, cada um à sua maneira.A senhora serenou e ele manteve-se rebelde.Acho que nunca serenei muito. Houve sempre uma parte contestatária. Fomos sempre muito críticos. E a família onde estávamos inseridos percebeu sempre o espírito crítico que tínhamos em relação à forma como se vivia neste país. Mas tenho uma característica que penso que me acompanhará sempre: sou pela harmonia das coisas. As discussões, as brigas, a agressividade põem-me desequilibrada. É uma doença.Prefere evitar o confronto?Quando enfrento o confronto sou uma pessoa péssima, porque não o sei gerir. Por não gostar do confronto é que nunca se deixou levar pelo canto da sereia da política?Talvez. Tive alguns convites, lembro-me disso. Mas sempre fui uma pessoa ligada ao ideal republicano e a uma atitude socialista. Não me vejo noutra posição. Agora aquilo que aprendi com a Igreja Católica percebi que era igual ao futebol, à política. Há uma sensação de que ao obedecer às regras estou a impor a mim mesma algo que vai contra a minha própria natureza e muitas vezes contra os meus valores. E portanto prefiro não estar.Não gosta de vínculos?Tem a ver com os meus valores pessoais. E sendo assim é melhor não estar porque sei que tenho dificuldade em gerir essas situações de conflito.Como reagiram os seus pais à decisão do seu irmão em ser actor?Lidaram bem. Já tínhamos dezenas de espectáculos de fantoches em cima, porque começámos aos 7 ou 8 anos a fazer espectáculos nas festas de amigos. A minha mãe deu um teatro de fantoches ao meu irmão e eu tinha um trabalho intenso de fazer a preparação dos cenários. Ele fechava-se no quarto a ler e a inventar o texto e eu fazia a parte toda de adereços.A parte operária era consigo.A parte trabalhadora, de retaguarda. E era muito cúmplice quer em relação ao meu irmão quer em relação ao meu pai na farmácia. Mas, como dizia, para os meus pais não foi surpresa o meu irmão querer ser actor profissional. Ele apresentou essa situação aos meus pais quando tinha 19 ou 20 anos. Disse que ia para o conservatório e o meu pai não se admirou nada, pelo percurso que tinha desde miúdo. Depois há um dia que chega a casa e disse que se tinha profissionalizado e entrado em Cascais e que tinha deixado de estudar História, curso em que estava no terceiro ano na Faculdade de Letras. Foi natural, e para mim naturalíssimo. “Ele programou meticulosamente os três últimos anos de vida”Como era o seu irmão em termos de trato pessoal? Por vezes parecia uma pessoa um bocado ríspida…Era uma pessoa espectacular, com uma auto-disciplina rigorosa que exigia muito de si. Na família era uma pessoa observadora, calada, com muita graça. Tinha uma linha satírica e de crítica social que já vinha do meu pai e do meu bisavô Francisco José Pereira. Nasceu com eles. Em casa era uma pessoa normal, que gostava de estar em família, sobretudo nos últimos 20 anos.Mário Viegas tinha consciência da doença que acabou por o vitimar?Teve. Perfeitamente.E como lidou com essa situação?Ensinou-me mais uma vez muito. Houve um dia em que um dos actores que trabalhava com ele, já falecido, me chama e diz que o meu irmão precisava de falar comigo. Já tinha reservado um quarto no Hotel Borges, em Lisboa, onde o meu irmão vivia, e pediu-me para não dizer nada aos meus pais. E nessa noite o meu irmão disse-me o que se estava a passar e que ia confirmar o resultado do exame no dia seguinte e queria que eu estivesse com ele. Isso foi quando?Em Junho de 1993. Quando soube o resultado ficou internado no Hospital de Santa Maria e eu passei a estar com ele, com a proibição completa de dizer alguma coisa em casa. Foram dos tempos mais difíceis da minha vida. O marido que eu tive tinha saído de casa dois meses antes dessa notícia. A minha filha tinha ido para Trás-os-Montes para a universidade, eu estava na farmácia e tinha a loja dos brinquedos. Tinha a família aqui em casa e levava a vida a ir para Lisboa sem poder explicar aos meus pais o que lá ia fazer. Era eu que tratava dele em secretismo, pois quando saiu do hotel foi viver para a minha casa em Lisboa. Continuei a fazer esse tal serviço de bastidores até ao fim. Os seus pais nunca suspeitaram de nada?Nunca. Só souberam quando o meu irmão lhes decidiu contar. Foi no Natal de 1993 que disse aos meus pais. Foi uma situação muito difícil. E foi aí que os meus pais perceberam que eu andava já há seis meses a tratar do meu irmão. Ele programou meticulosamente os três últimos anos de vida. Foi uma coisa impressionante. Para os seus pais deve ter sido um choque tremendo.Foi um choque muito grande. Os meus pais temiam essa situação porque conheciam a homossexualidade do meu irmão. Como é que eles lidavam com a homossexualidade do seu irmão, numa altura em que muitos preconceitos ainda não tinham sido derrubados?Lidava-se com discrição e com respeito. Nunca soube a quem é que o meu irmão esteve ligado e os meus pais também não. Não tinha nada a ver com actores da companhia dele. O meu irmão sempre foi muito discreto nos relacionamentos que teve, nunca impôs absolutamente nada à família nem presenças de ninguém.A farmácia e a sofrologiaHélia Viegas admite que sempre teve mais jeito para as artes do que para o negócio, mas acabou por ser ela a seguir a tradição familiar e emparceirar com o pai, o farmacêutico Francisco Pereira Viegas, na gestão das duas farmácias que tinha em Santarém. “Nunca fui negociante. Se por acaso fiz algum negócio na vida deve ter sido a favor dos outros e não a meu favor”. Preferia trabalhar na área laboratorial ou estar ao balcão, no contacto com o público. “Tudo o que é manual ligado às artes e o que seja trabalho de laboratório ligado à farmácia gosto”, diz. É uma artesã? “Exactamente. Talvez a palavra seja essa”, responde.Há uns anos vendeu a farmácia que ainda pertencia à família e hoje dedica-se à sofrologia em Santarém, onde tem consultório e é pioneira na actividade. “Trata-se de uma técnica psiquiátrica própria que nasceu em 1960 como ciência e que tem a ver com uma forma de estar na vida, de se encarar a saúde, o nosso comportamento”, descodifica, garantindo que tem reflexos positivos para o sono, para o estudo, para se tomar menos medicamentos, para os efeitos do envelhecimento.“São técnicas respiratórias, são técnicas de posicionamento mas chama-se de facto relaxamento dinâmico”. Basicamente trata-se de garantir “como se suplanta a dor através do corpo. Como é que a mente consegue através do relaxamento e do conhecimento do corpo encarar a vida de uma outra forma que não seja drama”.Hélia Viegas está também ligada à preparação para o parto e ao parto humanizado. Faz parte da direcção da HUMPAR, uma associação civil que tem como principal objectivo a humanização do parto em Portugal, através da divulgação de informação que promova alterações e melhorias no atendimento às grávidas e suas famílias durante a gestação, parto e pós parto. Uma actividade em que o seu diploma em enfermagem, tirado em 1980, oito anos depois de concluir Farmácia, tem muita utilidade. “Sempre fiz isto ao longo da minha vida depois de ter tido a minha filha. Por isso sou enfermeira”.Uma família de gente ilustreHélia Viegas nasceu a 17 de Fevereiro de 1947, tendo completado 64 anos no dia anterior a esta entrevista. Recebe-nos na sala da sua vivenda no bairro de São Bento, ligada pelo interior à moradia vizinha que foi dos seus pais e onde está grande parte do espólio familiar que uma equipa de cinco pessoas se encontra a analisar. A intenção é reunir parte desse acervo, o que tem mais relevância, e expô-lo, juntamente com as “preciosidades” que Mário Viegas deixou à irmã e à sobrinha, como “dossiês, cadernos e espólios ligados a Fernando Pessoa, a Marcelino Mesquita”, que estão guardados no cofre de um banco.A família de Hélia Viegas está recheada de gente ilustre de ambos os lados. Começando pelos pais. Francisco Viegas, farmacêutico renomado em Santarém já falecido, foi o primeiro presidente do município escalabitano no pós-25 de Abril. A mãe, Mariana, que se encontra num lar na zona de Cascais, foi professora na cidade durante muitos anos. Oriunda da Amadora, integrou a primeira equipa feminina de hóquei em patins de que há memória em Portugal, fundou a primeira publicação juvenil de banda desenhada dedicada ao público feminino – “A Formiga” -, suplemento do jornal “O Mosquito” que fez furor no nosso país há meia dúzia de décadas criado pelo irmão António, um talento na escrita e no desenho e pioneiro do jornalismo juvenil em Portugal. Outro tio materno, Álvaro Lopes, foi jogador internacional de hóquei em patins.O bisavô Francisco Lopes Pereira (1864 – 1935) foi o primeiro presidente da Câmara do Cartaxo após a implantação da República. Senador e deputado distinguiu-se como defensor dos interesses da região. Maria Manuel Simão, diplomada em História, está a reunir toda a informação existente no espólio familiar para dar a conhecer, possivelmente em forma de livro, essa figura republicana marcante das primeiras décadas do século XX.Se houver alguns apoios, o sonho é expor todas essas histórias de vida na chamada “casa do centro” onde o pai teve um centro de distribuição de medicamentos. O objectivo, diz Hélia Viegas, é colocar esse acervo “ao serviço da cidade de Santarém” criando uma espécie de museu activo. Uma mulher que não gosta de amarrasHélia Viegas nunca foi uma pessoa muito politizada nem teve vínculo a partidos, embora na sua juventude tenha integrado um grupo em Santarém chamado Bar 4 que suscitou as atenções da polícia política de Salazar. Mário Viegas, Jorge Custódio e Miguel Calado eram outros dos jovens que integravam um colectivo que dinamizava actividades culturais e que questionava o regime da época. Estava-se a meio da mítica década de 60.“Foi uma coisa importantíssima para o meu desenvolvimento social e, entre aspas, político. Gostava muito de desenvolver projectos sobre história, de ensinar coisas aos nossos colegas, de fazer exposições, o meu irmão já dizia poemas nessa altura. Era extraordinário as coisas que fazíamos juntos. Éramos para aí uns 10, no máximo 15. Projectávamos muitas coisas interessantes para fazer”, recorda.Foi nessa altura que descobriu que não havia liberdade de expressão. Ela que vinha de uma família que cultivava o livre pensamento e a consciência crítica. “Fiquei a perceber que era proibido fazer e pensar como estávamos a pensar. E integrou-se em mim uma frustração. Fiquei com essa raiva comigo. Fomos chamados à Pide, o meu pai foi connosco porque éramos menores”. Esteve também ligada à Igreja Católica entre os 15 e os 23 anos, altura em que se desligou “para sempre”. Porque se sentia amarrada pelas restrições que eram impostas, por “tudo o que a Igreja Católica continua a não fazer na prática”. E como ficou Deus no meio disso tudo? “Fica muito bem. Acredito profundamente, mas não inserida numa sociedade que nos conduz para determinadas práticas rituais”.
Memórias de Mário Viegas contadas pela cúmplice de uma vida

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