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O neto de varinos que quis viajar pelo mundo nos aviões

O neto de varinos que quis viajar pelo mundo nos aviões

José Ceitil, natural de Vila Franca de Xira, foi comissário de bordo na TAP durante 36 anos

José Ceitil, neto de varinos, menino da borda d’água, foi trabalhar aos 15 anos para a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira como desenhador. Recusou um trabalho de secretária das 9h00 às 17h00 e arriscou viajar pelo mundo e fazer disso profissão. Nasceu em Vila Franca de Xira do seu coração. Compara-se à Shakira no bairrismo que tem pela terra natal e que lamenta que esteja “moribunda” e sem a pujança cultural de outrora.

Um dia o menino neto de varinos, a criança que brincava à borda d’água, nascido na casa de esquina da rua 1º de Dezembro, que dá para a Praça de Toiros, em Vila Franca de Xira, decidiu que não queria ser desenhador na câmara municipal. Sonhou com um trabalho a viajar pelo mundo como tripulante de aviões. José Ceitil, 64 anos, fugiu sempre do trabalho sedentário das 9h00 às 17h00.Estava a acabar a Força Aérea, onde se alistou como voluntário, quando um camarada mais velho lhe falou na TAP e no maravilhoso ofício de ser comissário de bordo, de ser bem pago para viajar e ver o patrão e os colegas de trabalho a mudar todos os dias. Nascia assim um galã de uniforme azul e boné, que procurava esquecer propositadamente. Continuou a viver em Vila Franca mesmo depois de ter ingressado na TAP. É um regionalista convicto, “saloio”, arrisca dizer comparando-se com humor à Shakira que traz sempre a Colômbia no peito. “Andei pelo mundo inteiro mas levei sempre um bocadinho desta terra em mim”, revela o homem que antes de voar pelo mundo rumou a Londres para aprender Inglês e ganhar asas.Em Londres, à época, os PIG’s (Portugueses, Italianos e Gregos) só podiam fazer trabalhos domésticos. “Os portugueses faziam trabalhos que eles não queriam fazer. Como nós fazemos agora com os brasileiros ou com os imigrantes de leste”, diz com frontalidade.Foi empregado de mesa no Green Park Hotel, porteiro de uma discoteca e chefe de uma brigada de limpeza num colégio. Regressou quando a mãe recebeu em casa a carta da TAP. Estava preparado para o teste de inglês com a língua do país de sua majestade ainda fresca. Trabalhou na empresa 36 anos. Teve o melhor emprego do mundo que recomenda a toda a gente. Não conseguiu convencer as suas filhas, hoje com 34 e 31, a seguir a mesma área. O trabalho obrigadava-o a ficar distante durante cinco dias mas considera que nunca foi um pai ausente “Se calhar passava mais tempo com elas do que os pais das crianças que andavam com elas na escola. Os pais que trabalham das 9h00 às 17h00 mas que depois chegam a casa chateados e põem-se a ler o jornal”. Só saiu de Vila Franca de Xira em 2004 para ir morar para as Cardosas. Actualmente passa grande parte do tempo em Carcavelos, onde vive com a companheira. A sua cidade do mundo é Nova Iorque, uma cidade que tem um bocadinho de todos os lugares do mundo. “Sinto-me lá bem a passear sozinho”, descreve. Quando aterrava em Newark procurava refúgio na comunidade portuguesa que inspirou um dos seus livros. Escreveu também o ensaio “Ser Feliz” e o livro “Os Belenenses- 90 anos de história”. Um mecânico que conheceu foi também musa para a sua obra literária. “Vidas Simples Pensamentos Elevados” é um dos seus livros. Recusa o rótulo de escritor e recusa ser comparado aos grandes do movimento neo-realista. O peso dramático da corrente nunca o influenciou.Já esteve perto da morte mas ultrapassou o problema sem deixar de trabalhar. Tinha apenas o cuidado de escolher destinos que lhe garantissem o tratamento de hemodiálise. É transplantado e diz que não tem por hábito “dar confiança às doenças”.Foi apaixonado pela profissão apesar das saudades da. Só abandonou os aviões quando começou a sentir o peso do saco com rodas que transportava nas viagens. Decidiu então que deveria deixar a actividade que o realizou e guardar na mala das memórias recordações de 36 anos a trabalhar nas nuvens. Recordações da ponte aérea nos tempos da descolonizaçãoNa altura da descolonização em Angola José Ceitil, então comissário de bordo na TAP, apanhou um dos maiores sustos da sua carreira. A ponte aérea, o trabalho nos aviões para assegurar o regresso dos civis, era duro. “Uma vez fomos buscar buscar mulheres e crianças que não eram da MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola]. Foi uma operação muito complicada. Não havia segurança. Os homens que entraram pelo avião dentro estavam embriagados. Ficámos dentro do avião mais de 24 horas só com água. Obrigaram o comandante a descolar à noite quase sem luz. O Boing levava 108 passageiros e trouxemos 230”, conta. De uma outra vez o avião onde seguia foi metralhado. “Deixaram-nos carregar as pessoas e começámos a ouvir tiros”. Em Luanda um petardo atingiu o avião onde estava. “Furou um pneu. Se desse cabo de um depósito íamos pelo ar”.José Ceitil considera que foi exemplar a capacidade de resposta de Portugal para transportar as pessoas à “metrópole”. “Foi um dos grandes feitos da capacidade lusa de resolver os problemas. É dado como exemplo a forma como foram integrados. Um país pobre como era o nosso conseguiu integrar sem grandes traumas mais de 500 mil pessoas. Chegaram cá com a roupa que tinham no corpo. Isso foi objecto de estudo. Foi notável o esforço”, analisa. “Os ideais de esquerda não têm que ser idiotas”José Ceitil aderiu ao MRPP em 1970 mas afastou-se do partido sete anos depoisAlverca quer ser a capital da aeronaútica. Têm um projecto de cluster aeronáutico. O que lhe parece a ideia?Acho muito bem. Tudo o que vier para o concelho é óptimo. Foi uma pena ter saído o Museu do Ar. Por que é que acha que Alverca perdeu uma estrutura deste tipo?Não acho. Vendi o meu “achómetro” há muito tempo. Porquê?Gosto de falar sobre aquilo que sei e não gosto de “achar”. Não gosto de dar palpites. Acho um disparate toda esta verborreia de toda a gente a dar opinião sobre tudo.Mas falta massa crítica em Portugal.Há um excesso de pessoas que “acham”. Faltam pessoas que sabem do que falam.Os políticos, por exemplo, têm que decidir sobre questões que não dominam.Os políticos vivem disso e não lhes gabo a sorte. Têm uma missão difícil. Felizmente que há partidos e vai sempre haver gente que tem que pensar nessas coisas. Foi na altura que tinha o “achómetro” a funcionar em pleno que aderiu ao MRPP? (risos)Aderi ao MRPP em 1970 na fundação. Nessa altura não “achava”. Tinha a certeza de que queria mudar o mundo. Quando é que desistiu dessa ideia?Sete anos depois em 1977. O grande líder Arnaldo Matos, tal como muitos políticos que estão no poder, ficou completamente paranóico. Tomou uma série de medidas que levou ao meu afastamento e penso que à esmagadora maioria dos militantes de Vila Franca de Xira que eram muitos. Nessa altura desistimos todos. Continua a ser de esquerda.Sou de esquerda mas não tenho nada a ver com aquelas utopias cujo modelo era a China que deu no que deu. Libertei-me disso. A esquerda é defensora dos direitos dos trabalhadores mas no seu caso trabalhou numa empresa sólida.Trabalhei na melhor empresa do país. Não tenho nada a apontar. A única vez que não me pagaram o ordenado – a mim e aos outros todos – foi no tempo do engenheiro Santos Martins. Naquela altura os membros do conselho eram nomeados pelos partidos. Só agora decidiram pôr pessoas que sabem de aviação e não boys dos partidos. O engenheiro alugou equipamento e não pagou ordenados. Fomos ao edifício 25. Ele estava no avião para Paris. Invadimos a pista e fomos buscá-los ao avião. Era sindicalista?Nessa altura não. Sou filiado no sindicato desde 1970, altura em que entrei na TAP, mas só fui dirigente sindical em 1997. Fomos lá buscá-lo. Não o deixámos embarcar. Duas horas depois havia dinheiro no banco. Infelizmente os assuntos não são tão fáceis de resolver. Às vezes mesmo com esforço dos trabalhadores…Percebo o desespero de quem vê a empresa a cair mas faz-me confusão que as pessoas continuem a achar que nada mudou. Continuam a reivindicar as mesmas coisas que reinvindicavam há 30 anos. Esta coisa da defesa dos direitos adquiridos não faz sentido. Faz sentido se a empresa tiver condições para pagar. Há muito a ideia de que os trabalhadores exigem direitos sem a noção correcta dos seus deveres.Somos uns seres estranhos. Achamos que nós é que sabemos como é que as coisas devem ser feitas. Está tudo bem desde que não toque no nosso quintal. Medidas para os outros sim mas quando nos tocam já é diferente. Faz parte da natureza humana. Há uma cultura de direitos e muito poucos deveres. Se bem que isso vai um pouco contra os ideais de esquerda…Os ideais de esquerda não têm que ser necessariamente idiotas. Vou contar-lhe uma coisa: 1974, colete encarnado, reunião do MRPP em Vila Franca de Xira. A mãe das minhas filhas ofereceu-se para ir para uma banca vender livros que se ia montar perto da câmara. Umas camaradas opuseram-se que a Maria Amélia fosse para lá porque era bonita demais. Pintava os lábios e naquela altura os camaradas tinham que ter mau ar. As ideias idiotas mesmo vindo dos meus não deixam de ser idiotas. Não está ligado a um partido.Desde essa altura não. Já fui convidado para vários. Nenhum actualmente preenche as suas medidas. A lógica partidária faz-me urticária. Llimita a capacidade de se pensar com a própria cabeça. Os engolir sapos é uma prática que não faz sentido e choca com a liberdade. Vila Franca de Xira vai viver uma situação difícil nas próximas eleições. O PS vai perder?Acho que sim apesar de ter a certeza de que nada vai mudar.Maria da Luz Rosinha teve uma boa liderança?Foi uma boa presidente. Neste momento não é. Ficamos por aqui.Acha que a certa altura os políticos ficam impermeáveis à crítica?Acho. Os políticos sentem-se perseguidos por todo o lado e não confiam em ninguém. Não são capazes de delegar. A mudar o concelho muda para que cor?PSD. A diferença de votos foi substancial nas últimas eleições autárquicas.O antigo comissário de bordo dedica-se à agriculturaJosé Ceitil, 64 anos, natural de Vila Franca de Xira, foi comissário de bordo da TAP durante 36 anos e dedica-se hoje, nas horas vagas à agricutura, na propriedade que tem nas Cardosas, nos arredores da cidade. Chegou a fazer vindima mas desistiu da ideia porque o vinho produzido ficava-lhe ao preço do campanhe. Tem jardim, horta e árvores de fruto biológicas. Não faz alfaces porque dão muito trabalho. Tem um compromisso com agricultura: “não as trato mal e elas não me dão muito trabalho”.Nasceu a 30 de Março de 1947 na casa de esquina na rua 1º de Dezembro, em Vila Franca de Xira, que dá para o largo da Praça de Toiros, onde vivia toda a família. É neto de varinos. O avô, “Gonçalo Coxo”, vendia peixe. A avó Júlia cuidava dos filhos e dava explicações de catequese. O pai tinha uma oficina de torneiro mecânico. Morreu quando José Ceitil tinha 12 anos. Não havia dinheiro para a universidade. O irmão mais velho, que já faleceu, foi trabalhar para a Mague e a mãe, doméstica, teve que alugar a oficina da família.José Ceitil tirou o curso industrial de formação de serralheiro que de nada lhe serviu. Era pouco habidoso de mãos. Aos 15 anos foi trabalhar como desenhador para a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira mas depressa percebeu que queria correr mundo. Saiu aos 17 e depois de acabar a tropa quando viajou para Londres onde esteve nove meses. Foi um activo elemento da famosa secção cultural do União Desportiva Vilafranquense. Por essa altura leu “A Mãe” de Máximo Gorki. Foi recentemente director do Jornal do União Desportiva Vilafranquense, clube a que continua ligado como dirigente e onde jogou futebol. Vê com preocupação que antigos dirigentes do clube estejam na barra dos tribunais porque acredita que à frente de uma associação se tenta fazer o melhor.Vila Franca de Xira está “moribunda”Como olha hoje para Vila Franca de Xira?Vila Franca de Xira está moribunda. Costumo fazer caminhadas à noite e um dos meus amigos diz que já não vê ninguém e as que as pessoas que vê já não conhece. As pesoas não saem à rua. Mas é um problema de Vila Franca ou serão os novos hábitos?Também mas não só. Podemos olhar por exemplo para Oeiras. O Isaltino Morais já fez muitos disparates mas apoia as actividades culturais. Oeiras é um bom exemplo do que poderia ser o concelho. Aqui não acontece nada. Há a programação do museu do neo-realismo...O museu tem a conferência aos sábados à tarde sempre com as mesmas pessoas a assistir na plateia. Em Oeiras até os grafittis que é considerado actividade marginal são apoiados pela câmara. E em termos de ordenamento? Há quem diga que a linha de caminho de ferro é uma limitação.Oeiras também tem e não foi por isso que deixou de desenvolver-se. Finalmente parece que a zona do cais vai ser requalificada. Desde que me lembro que esta é uma promessa da altura das eleições.
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