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“Faço um esforço para não mostrar que ainda sou um menino”

Júlio Pomar e o livro de poesia infantil ilustrado em 1949 e reeditado em 2010

Júlio Pomar tinha 23 anos quando em 1949 ilustrou um livro de poesia de Sidónio Muralha com música de Francine Benoit. O livro “Bichos, Bichinhos e Bicharocos”, reeditado em 2010 pela editora Althum, foi apresentado no sábado à tarde no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Aos 85 anos o pintor de cabelo e barba brancos confessa que faz um esforço para não mostrar que ainda é um menino.

Diz que não há grande diferença entre livros para crianças e livros para adultos. Como explica isso?Se nós pensarmos na apetência, na gula com que o adulto ou a criança que gostam de livros pegam num livro percebemos que a atitude de espera, de entrega é no fundo muito semelhante. Entre o apetite da criança e o apetite do adulto a única diferença é que o adulto, infelizmente, tem tendência a perder esse apetite…Quando desenha para crianças entrega-se da mesma forma?A entrega tem que ser total. Qualquer condicionamento é uma limitação à comunicação. Neste livro qual foi a história (ver caixa) que lhe deu mais prazer ilustrar?Acho que foi a história dos grilos e também a história dos macacos. Grilos e macacos são bichos que têm uma certa afinidade comigo. Porquê?No fundo porque nós nos identificamos com eles. São bichos que para nós são a personificação de uma certa alegria, de uma certa maneira de receber o mundo, o tempo e as estações. Exaltou hoje as pessoas a correrem riscos. Falava das pessoas e também dos jovens? Os jovens de hoje em dia são pouco aventureiros?Isso é em parte responsabilidade da sociedade que os cria. É uma diminuição da capacidade. Institivamente a criança quer descobrir coisas. No fundo, muitas vezes, a educação reduz-se a um fechar de portas à imaginação. Soeiro Pereira Gomes escreveu, aqui bem perto, sobre os homens que nunca foram meninos. No seu caso, conseguiu ser menino?(Silêncio demorado) Tenho a impressão de que me esforço para não mostrar que ainda sou um menino…E quais são as memórias mais ricas dessa infância?Era o que via da minha janela. Um quarto andar da Rua das Janelas Verdes. Tinha o Tejo todo defronte e o movimento do porto que era muito rico. Recordo-me da luz, do sol a entrar pela janela, dos vapores quando chegavam. Recordo sobretudo a luz.Um livro sem referênciaà editora“Quando este livro foi pensado pelo Sidónio Muralha as circunstâncias que se viviam em Portugal eram completamente diferentes. Por que não há menção de editor na primeira edição?”. Júlio Pomar lançou a pergunta na tarde em que foi apresentada a reedição da obra “Bichos, Bichinhos e Bicharocos”, sábado, 30 de Abril, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. “Esquisito? Bizarro? Esquecimento? Naquele tempo nem tudo se dizia”, lembra o mestre sobre a realidade de 1949. “Felizmente vivemos num tempo muito diferente. Vivemos num tempo em que não temos que ocultar coisas simples como o editor de um livro”, esclareceu Júlio Pomar lembrando que não seria o único livro editado nestas condições. Júlio Pomar assumiu-se durante a sessão como um operário da arte de fazer “riscos” e lembrou que corrê-los é prova de que se existe. “Meus amigos, meus senhores: corram riscos”, exaltou.O pintor e escultor Júlio Pomar nasceu em Lisboa a 10 de Janeiro de 1926. Frequentou a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa de Lisboa e do Porto. Foi influenciado pela obra de grandes muralistas mexicanos, como Orozco ou Diego Rivera, mas não tardou a absorver culturas distintas. Da pintura à escultura, passando pelas ilustrações, foi consagrado há muito como um dos nomes maiores da arte europeia. Foi um dos principais cultores do Neo-Realismo na pintura portuguesa, de 1945 a 1957, seguindo por outros caminhos, em épocas posteriores. Uma das obras famosas da fase neo-realista é “O Almoço do Trolha”.A joaninha voa mas o pai não tem dinheiro para ter ido a LisboaA joaninha bonita, que mora a meio do caminho da rua das violetas e tem um vestido de chita “todo ele encarnadinho e cheio de bolinhas pretas”, responde assim quando alguém lhe diz para voar lembrando que o pai foi a Lisboa comprar um brinquedo: «Se és amigo verdadeiro/ não me digas voa, voa/ - voar sim, mas para onde? -/o meu pai não tem dinheiro/ para ter ido a Lisboa…»O livro “Bichos, Bichinhos e Bicharocos”, escreve João Lobo Antunes no prefácio, é um livro maravilhoso escrito a seis mãos sobre oito bichos e uma estrelinha “que é uma espécie de bichinho no céu, porque tem luz própria e cintilante”. Dos bichos, três são insectos inteligentes, um faz de conta, outro (a) vaidosa, usa vestido de senhora crescida para voar e o terceiro numa gaiola canta feliz porque não paga renda, nem a alface. Há ainda um papagaio que faz um grande banzé com os seus discursos, um pato marreco que diz papá e mamã e um cão diferente de todos porque é um brinquedo de corda. O livro fala ainda dos problemas que um espelho causa no seio de uma família de macacos e da partida que uma formiga prega a um sapo vaidoso. O livro contém ainda uma doce e inocente gralha. “Gralha, que é por sinal um pássaro muito barulhento, quer também dizer erro tipográfico. Uma dessas gralhas entrou no índice do nosso livro e só assim se explica que a palavra cãozinho apareça escrita com s, quando na verdade, deverá escrever-se com z. O cãozinho, que ficou muito triste quando viu a gralha, pede a todos os seus amiguinhos o favor de corrigirem o seu nome”.Os poemas são de Sidónio Muralha. As músicas de Francine Benoit. As partituras de estão lá, ao lado das histórias, para quem domina a arte. Os desenhos de Júlio Pomar ilustram o livro. “Diria que são ilustrações para crianças feitas por uma criança crescida que, no coração, nunca deixou de o ser. Alguém disse que nós não deixamos de brincar porque somos velhos, mas sim que nos tornamos velhos porque deixamos de brincar”, continua João Lobo Antunes. Maria Barroso, que esteve presente na cerimónia ao lado de António Redol - filho do escritor neo-realista que foi amigo de Júlio Pomar - leu alguns poemas do livro, tal como o actor Vítor de Sousa.

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