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“Santarém está desencantada e desiludida”

“Santarém está desencantada e desiludida”

Em vésperas de mais uma Feira Nacional de Agricultura, o advogado, activista político e dinamizador cultural Madeira Lopes fala da cidade onde nasceu e fez vida

É um dos nomes incontornáveis da advocacia escalabitana mas também da militância cívica, política e cultural. João Luís Madeira Lopes, 68 anos, não dá tréguas ao comodismo e à indiferença. É membro activo da CDU, guitarrista do Grupo de Fado e Canto de Coimbra do Centro Cultural Regional de Santarém, está ligado à comissão de comemorações populares do 25 de Abril. Diz que entrou na política para ajudar a informar as pessoas e agitar consciências, definindo-se como um “animador cultural”. Critica o caminho que Santarém levou nas últimas décadas e assume que Moita Flores não lhe vai deixar saudades.

Que retrato faz da cidade de Santarém na actualidade?Penso que a cidade de Santarém está desencantada e desiludida. Porque acreditou muito num Messias, o dr. Francisco Moita Flores, que arrebatou votos em todas as áreas políticas aproveitando-se do desencanto que causou a gestão do PS durante décadas. Havia uma grande tristeza e desencanto pela gestão do PS e foi fácil a uma pessoa como Francisco Moita Flores, com o prestígio que tinha das telenovelas e dos livros publicados, agregar apoios que levaram à eleição no primeiro mandato e à reeleição para um segundo mandato.No segundo mandato aproveitando também algumas divisões internas nos partidos da oposição.Exactamente. Para ganhar votos apresentou algum trabalho feito, cativou as pessoas com as festas, com o fogo artifício e com os artistas. E o povo gosta realmente de gozar a vida e de brincar. É verdade que deixou obras feitas, mas para os outros pagarem. Essa é que é a realidade! A maior parte das obras feitas, como o Jardim da Liberdade, a aquisição da antiga EPC ou do presídio podem ser importantes para a cidade mas o município não tinha capacidade financeira para as concretizar. O concelho está hipotecado durante muitos anos.Em relação ao negócio de aquisição do antigo quartel da Cavalaria, que são 16 milhões de euros a pagar em nove anos, acha que não devia ter sido feito nesta altura?Acho que devia ter sido feito, não sei é se não haveria condições de fazer o negócio de outro modo. Porque quem vier a seguir vai receber um presente envenenado. Vai limitar-se a pagar dívidas, que são mais que muitas. Um dos propósitos do actual presidente da Câmara de Santarém era o reforço da capitalidade regional de Santarém. Foi conseguido?Santarém passou a estar no mapa com as várias iniciativas feitas, mas a custo do erário municipal. As comemorações nacionais do 10 de Junho, o concerto de José Carreras, tudo isso são coisas que custaram muito dinheiro.O 10 de Junho foi um evento com retorno?Tenho muitas dúvidas. Acho que não teve grande retorno. Teve grandes encargos.Há quem diga que Moita Flores gastou demasiadas energias em conflitos com entidades como o CNEMA ou a Águas do Ribatejo.Também penso que sim. Já para não falar a nível pessoal. Quem vai às assembleias municipais pode ver isso. Uma pessoa para afirmar a sua autoridade e a sua diferença política não precisa de tratar as pessoas da oposição do modo como tratou ao longo destes anos. Não havia necessidade.Moita Flores não lhe vai deixar saudades.A mim não. E penso que nos últimos tempos a sua popularidade tem caído muito.“Câmara de Santarém entregou a Feira do Ribatejo de mão beijada”É escalabitano de gema. Que memórias mais remotas guarda da Feira do Ribatejo?Penso que era mais intimista. As coisas estavam todas mais perto umas das outras e a cidade vivia mais a feira. Agora, com a distância e com o espaço mais dilatado, é diferente. A pessoa assistia às picarias e ia beber um copo. O festival internacional de folclore realizava-se durante a feira, agora está separado. Mas não estou contra a mudança da feira lá para baixo, pois no antigo campo da feira não podia crescer. Lembro-me ainda das feiras no campo fora de vila, antes da Feira do Ribatejo. De assistir às picarias e às entradas de toiros. Era rapaz para se aventurar à frente dos toiros?Isso não. Em miúdo brincava às touradas, mas actualmente é muito raro ir a uma corrida de toiros.É um aficionado não praticante?É mais ou menos isso. Não assinei o abaixo-assinado a favor das touradas nem assinei os que são contra as touradas. Penso que é uma tradição que se deve manter, embora me custe ver os toiros a sangrar.Como vê o facto de a Câmara de Santarém praticamente não ser tida nem achada na organização da Feira de Agricultura/Feira do Ribatejo, apesar de ser a segunda maior accionista do CNEMA?Tanto eu pessoalmente como a força política onde me integro sempre estivemos contra a entrega de mão beijada deste património que era a Feira da Agricultura a entidades privadas, como a CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal) e outras. O património era da câmara, que ficou com uma percentagem muito pequena do capital do CNEMA (Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas). Quando havia falta de dinheiro era a câmara que injectava capital ou que era fiadora junto do Governo central para arranjar financiamento. E ficou com uma posição minoritária, o que foi mau. Houve uma postura negocial demasiado branda por parte da autarquia?Os erros principais foram cometidos no início. Porque com aquele capital reduzido logo de princípio a câmara perdeu votos na estrutura accionista que nunca mais recuperou.“Ser filiado num partido é um espartilho demasiado apertado”É advogado, activista político, guitarrista de fado de Coimbra e dirigente associativo. Nunca pensou em deixar algumas das actividades pelo caminho em nome do direito à preguiça?Acho que tenho uma postura de animador cultural. Comecei na política antes do 25 de Abril já com essa perspectiva da pedagogia, de tentar informar quem tinha os olhos fechados. Acabei por ficar na política um bocadinho contrariado, porque não me acho um político. Acho que sou mais uma pessoa que gosta de colaborar na cultura e de informar as pessoas à minha volta.O único partido em que se filiou foi o extinto MDP/CDE. O PCP nunca o convidou a fazer-se militante?Tentou algumas vezes mas não aceitei. Ser filiado é um espartilho demasiado apertado para a minha maneira de ser. Gosto de ter alguma dose de liberdade. Estou bem assim como independente. Dentro da estrutura da CDU tenho muito respeito pelo PCP, que foi um grande lutador e continua a ter posições muito acertadas, mas também tenho noção que sou um dos maiores críticos internamente. Sempre que discordo das atitudes exageradas ou mais radicais do PCP não tenho pejo em afirmar a minha divergência. E penso que ao longo dos anos tenho conseguido inflectir ou rectificar posições que julgo incorrectas.No caso da expulsão de militante do PCP da ex-deputada e ex-vereadora Luísa Mesquita de que lado esteve?Penso que a dra. Luísa Mesquita tomou atitudes para provocar a reacção que houve por parte do PCP.E gostou de ver os presidentes de junta da CDU seguirem-lhe os passos e abandonar a coligação?Claro que não. Admito que foi uma questão de solidariedade. Era uma mulher com prestígio, que tinha trabalho feito, e entenderam que ela como vereadora na câmara poderia auxiliar as suas freguesias. Pela primeira vez desde que há poder local democrático, a CDU não tem representação na Câmara de Santarém. Foi um rude golpe na vossa força política?Eu diria que foi um rude golpe para o concelho. A população ficou bastante prejudicada por não ter a voz da CDU no executivo. Era uma voz importante, os vereadores que tivemos lá eram pessoas que estudavam os dossiês, faziam propostas correctas. Era uma espécie de conselho fiscal para a boa gestão do município. E isso perdeu-se. O que espera das próximas eleições autárquicas?Sou uma pessoa optimista e espero que a população volte a votar na CDU como votou noutros tempos, para que pelo menos eleja um vereador para o executivo camarário.A CDU em Santarém tem apresentado praticamente os mesmos rostos nos últimos dez anos. Não tem havido grande renovação de quadros.A renovação é a possível. A dificuldade não é só na CDU, é também noutros partidos. Sem Moita Flores vai ser mais fácil recuperar o vosso eleitorado?Penso que sim. Foi o número dois da lista da CDU por Santarém às eleições legislativas de 2011. Vai continuar a ser candidato sempre que a coligação o solicite ou foi a última experiência?Não faria votos em nenhum sentido, mas o meu desejo é ir-me desligando da política à medida que os anos vão passando e dedicar-me mais à cultura.Os problemas da justiçaSer pobre dificulta o acesso à justiça?Sim, evidentemente. Mas o problema da nossa justiça não é ser pobre ou ser rico. A justiça tem muitas carências a vários níveis.Há processos que se eternizam nos tribunais. De quem é a culpa, dos expedientes dos advogados ou da lentidão dos juízes?Penso que é de tudo um pouco, mas também dos diplomas que temos. Se os advogados fazem recursos é porque a lei o permite. Por exemplo: recebi uma sentença do Supremo Tribunal Administrativo ao fim de quatro anos; estou à espera de um julgamento no Tribunal de Almeirim de um processo que começou há dez anos. Os actos de má gestão dos políticos deviam ser julgados em tribunal?Acho que sim, que devia haver um controlo relativamente aos actos de má gestão que prejudicassem o erário público e em que houvesse manobras de má fé. Se há um orçamento, as pessoas devem-se conter porque aquilo não é uma coisa pessoal. Num organismo público devem respeitar-se as regras orçamentais e não se deve gastar mais do que se tem. Mas o poder central é que dá o exemplo.Na política como animador culturalJoão Luís Madeira Lopes, casado e com dois filhos, nasceu em Santarém em 17 de Novembro de 1943, onde tem feito vida como advogado há quatro décadas. Madeira Lopes começou cedo uma intensa vida de activismo político. Ainda antes do 25 de Abril passou pela CDE e pelo MDP-CDE e mais tarde passou a integrar a Associação de Intervenção Democrática, que faz parte da Coligação Democrática Unitária (CDU) liderada pelo PCP. Foi em vários mandatos eleito da Assembleia Municipal de Santarém e vereador em dois mandatos na câmara municipal. Pertenceu à delegação de Santarém e ao conselho distrital da ordem dos Advogados e é membro do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Em termos associativos, Madeira Lopes está ligado ao Centro Cultural Regional de Santarém, onde se integra o Grupo de Canto e Guitarra de Coimbra em que é guitarrista, e à Comissão das Comemorações Populares do 25 Abril de Santarém. No início dos anos 70 foi presidente do Cine-Clube de Santarém, sucedendo ao carismático Manuel Alves Castela que mais tarde regressaria ao cargo. Recentemente foi eleito para a direcção da Associação José Afonso, que tem sede em Setúbal e um núcleo em Santarém.Começou a tocar guitarra quando era aluno do Liceu de Santarém, onde era habitual usar-se capa e batina durante todo o ano. Teve como mestre um senhor chamado Alexandre Tavares. Nunca aprendeu a ler uma pauta, tocando de ouvido. Mais tarde, acabou por formar-se em Direito na cidade do Mondego onde apurou o gosto pela canção de Coimbra que nunca mais perdeuDiz que começou na política, ainda no tempo da ditadura salazarista, com uma postura de animador cultural, contribuindo para o esclarecimento da população. O Cine-Clube de Santarém fomentava o debate e agitava consciências e a PIDE, polícia política do antigo regime, andava de olho neles. Chegou a estar detido 24 horas nas instalações do Governo Civil de Santarém por andar com o irmão e mais dois ou três jovens a distribuir panfletos nas caixas de correio dando conta da invasão policial à Universidade de Lisboa. Veio um inspector do Entroncamento para os interrogar e chegou à conclusão que não eram elementos perigosos.Por essa altura ajudou a dinamizar a formação de uma lista oposicionista às eleições de 1969 para a Assembleia Nacional, que era uma mistura de pessoas de Lisboa com outras do Ribatejo. Da capital vieram, entre outros, Maria Barroso, esposa de Mário Soares, e António Reis, a que se juntaram figuras da região como o médico de Santarém José Fidalgo Marques Pereira e o advogado de Tomar Antunes da Silva. Não chegaram a ir a votos, pois sabiam de antemão que as eleições estavam viciadas. A intenção era agitar consciências através de acções de campanha. O mesmo sucedeu nas eleições de 1973, aí já com Madeira Lopes na lista de candidatos que não chegou a ir às urnas.
“Santarém está desencantada e desiludida”

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