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Uma comunista convicta desiludida com alguns camaradas

Uma comunista convicta desiludida com alguns camaradas

Joana Serrano é presidente da Junta de Freguesia de Alpiarça mas não descarta um dia ser presidente da câmara

É mulher, é jovem e é comunista com muito orgulho. Joana Serrano está no primeiro mandato como presidente da Junta de Freguesia de Alpiarça, a única do concelho, o que lhe dá projecção política e responsabilidades acrescidas. Objectiva no discurso, confessa a desilusão com alguns camaradas, diz que a união no PCP já conheceu melhores dias e admite que ser presidente de câmara seria “um desafio interessante”. Em vésperas da segunda edição do Festival do Melão de Alpiarça, uma entrevista onde esta licenciada em marketing abre o jogo e exalta a liberdade de expressão.

Sente responsabilidades acrescidas por ser presidente da única junta de freguesia do concelho?Claro que sinto. É uma grande responsabilidade por vários motivos. Primeiro porque sou mulher. Apesar da mentalidade estar a mudar ainda é complicado, porque isto é um mundo de homens. Às vezes estou numa reunião com 20 pessoas e sou a única mulher.E isso acontece frequentemente?Acontece. A maior parte das pessoas com que convivo diariamente em reuniões ou eventos são homens. E não é muito fácil num mundo de homens uma mulher impor-se. Depois, porque sou mais nova que a maioria deles e também pela minha maneira de ser. Não tenho muita firmeza com as pessoas, o que pode levar a que pensem que tenho falta de capacidade de liderança. Às vezes ponho a emoção à frente da razão. E como lido com muitas pessoas que têm problemas, pessoas que passam fome, isso para mim é uma dificuldade acrescida.Essa falta de firmeza refere-se às questões do dia a dia ou ao combate político?Ao combate político nem tanto. Tenho os meus ideais, gosto de ser respeitada e aí acho que sou firme. Agora nesta problemática social do dia a dia, quando me aparecem pessoas a falar dos problemas delas não consigo ser firme. Sou muito emotiva e embrenho-me nos problemas das pessoas. Infelizmente não posso mudar o mundo.Como vê o arrastar do processo de luta contra a pobreza em Alpiarça, que não sai do papel?Isso é péssimo, tal como outros projectos que existem em Portugal que têm pernas para andar e não andam devido à burocracia, por desentendimentos, por rivalidades. Este é um projecto muito específico e, para ser sincera, não o conheço a cem por cento. Mas sinto que é teórico, como tantas outras coisas, e que posto em prática ajudaria muitas mais pessoas. É a política que não deixa funcionar as coisas?São politiquices. Não sei se é a política, mas é muita burocracia, muito desentendimento. Como pode haver pessoas com vencimentos absurdos num projecto de combate à pobreza? Alpiarça é um meio com muita clivagem política. Sente isso na pele?Sinto. Mas convivo bem com isso. As críticas que me têm feito são construtivas e eu tento defender-me. Não tenho pesos na consciência. Tudo o que temos feito é muito claro e objectivo. Nesse caso ser mulher e ser jovem é capaz de ser uma vantagem. Não há mais condescendência por parte dos opositores?Não. A oposição faz o papel dela, não é porque eu sou jovem ou sou mulher. Eu fiz o mesmo quando estive na oposição no anterior mandato. Uma pessoa quando assume um cargo é para estar perante pessoas que nos pedem contas. E nós temos de as prestar.Há muitos “ódios” de estimação mal enterrados na política em Alpiarça que fazem que esse permanente clima de guerrilha se mantenha.Não sei se são ódios. Cada um tem a sua mentalidade. Às vezes há questões mal resolvidas. Esta terra tem uma história de comunismo, de pessoas que lutaram muito, que sofreram muito para conseguir a liberdade e talvez não aceitem bem que outras pessoas que nunca estiveram ligadas a essa história venham hoje para a rua falar sobre democracia, justiça ou liberdade. A luta continuaOs seus pais são pessoas ligadas à política. Foi com naturalidade que entrou nesse mundo?Foi. Comecei por volta dos meus 15 ou 16 anos. Inscrevi-me na JCP (Juventude Comunista Portuguesa) em Lisboa, comecei a participar em iniciativas, na construção da Festa do Avante, numa associação anti-racista ligada ao PCP. Os seus pais tiveram influência na escolha?Os meus pais não tiveram muita influência. O meu pai não estava cá, estava em Moçambique. E ele sim, era um comunista que vivia mesmo para a política. A minha mãe começou mais tarde, até começou mais tarde do que eu. Esteve sempre ligada ao PCP, mas tinha a vida dela e aqui em Alpiarça é que começou verdadeiramente o trabalho político. Eu fui andando e tive a surpresa de me convidarem para ser candidata a este cargo.Nunca teve dúvidas relativamente à sua doutrina ideológica?Não. Vai ser sempre esta a minha ideologia, é com ela que me identifico. Agora, um partido é feito por pessoas e essas pessoas podem cometer erros, como eu cometo diariamente. Às vezes o nosso desencanto pode ser com algumas pessoas, mas com a ideologia não.Lembra-se da queda do muro de Berlim?Lembro-me perfeitamente e achei estranhíssimo.Era uma criança nessa altura. Mais tarde deve ter reflectido sobre o assunto. Isso não a fez vacilar?Cada país é um caso. Vivi sempre muito dentro desta ideologia, reflicto sobre ela, leio sobre ela e também sobre outras, mas é com esta que me identifico. Claro que temos algumas desilusões...Leu “O Capital”, de Karl Marx?Tenho-o na minha biblioteca e leio-o.A luta de classes continua a fazer sentido?Sem dúvida. Todos os problemas de hoje são os de há cem anos. Não temos classe média, temos gente muito rica e gente muito pobre e é claro que temos de lutar.O Partido Comunista é muitas vezes acusado de ter uma mensagem parada no tempo. O discurso do Partido Comunista não pode estar desactualizado quando os problemas são os mesmos de há muitos anos atrás.Daí a chamada “cassete”...Não gosto nada dessa expressão (risos). Temos aquelas convicções e é por elas que temos de nos bater. O discurso é aquele porque os problemas também são aqueles. Não é uma cassete, é um discurso actual sobre os problemas actuais que infelizmente se vão repetindo.Pede conselhos ao seu pai, que foi presidente da Assembleia de Freguesia de Alpiarça, ou prefere não falar de política em família?Peço. Falo muito com o meu pai e com a minha mãe. O meu pai é um bom crítico, é muito ponderado, e a minha mãe também é uma excelente crítica. Neste momento é o meu grande apoio para o cargo que desempenho, para a minha vida pessoal. A minha mãe é uma pessoa que admiro muito porque não vai contra os seus princípios, aconteça o que acontecer.Como viu a saída dela do gabinete de apoio ao presidente da Câmara de Alpiarça?Aceitei bem. A minha mãe quando toma uma decisão é porque já reflectiu muito sobre ela. E quando me revelou que ia sair eu disse que a apoiava, tal como a apoiei quando aceitou. Se saiu é porque não estava bem. Custou-lhe ver o seu pai como colaborador do antigo presidente da Câmara de Alpiarça Rosa do Céu (PS)?Sinceramente não. Não conheço bem o antigo presidente da câmara mas conheço o meu pai. Achei que o meu pai não se iria dar bem naquele cargo e foi de facto o que aconteceu.Rosa do Céu deixou a Câmara de Alpiarça antes do final de mandato para ser presidente da Entidade Regional de Turismo. Como comenta essa atitude?São opções.Uma pessoa quando é eleita pelo povo para um mandato de quatro anos não deveria respeitar esse compromisso?Eu penso assim. Mas se a opção dele foi essa, quem sou eu para falar sobre isso. Respeito a decisão de cada pessoa.Gostava de ser presidente de câmara?Talvez fosse um desafio interessante, tal como está a ser este. Gosto de coisas que mexam com pessoas, que tenham a ver com o dia a dia, tomar decisões. E se aqui já vivo muito isso, numa câmara municipal vivia muito mais. Uma comunista que é católica e tem féJoana Serrano nasceu a 4 de Novembro de 1979 em Alpiarça onde viveu até aos cinco anos, altura em que foi morar para Lisboa com a mãe. Viveu na capital até aos 18 anos mas nunca esqueceu a sua terra natal. “Detestava viver em Lisboa. Vinha a Alpiarça todos os fins-de-semana. Esta vila sempre foi e continua a ser uma paixão para mim”, revela. Tem dois filhos, uma menina com seis anos e um menino com ano e meio. Quando o filho mais novo nasceu não teve tempo para gozar a licença de maternidade. Joana Serrano tomou posse como presidente da Junta de Freguesia de Alpiarça no início de Novembro de 2009 e o filho nasceu dez dias depois. Tem duas irmãs. Uma com 12 anos e outra com quatro.Licenciada em Comunicação Empresarial, a autarca trabalhou na área de Marketing e Relações Pública na Rutis - Associação Rede de Universidades da Terceira Idade - antes de ingressar na junta.Começou no mundo da política aos 15 anos quando se inscreveu na Juventude Comunista Portuguesa (JCP). É uma benfiquista “tranquila”. Em criança ia ver os jogos ao estádio da Luz com o pai mas agora já não liga tanto ao futebol.Joana Serrano confessa que não tem muito tempo livre e que nem sempre é fácil conciliar a vida autárquica com a vida familiar. Mas tenta, “sempre que pode”, tirar um tempo para si. Nessas alturas aproveita para viajar ou simplesmente ler um bom livro. Gosta de leituras espirituais. Diz que tem a ver com a sua maneira de ser. Neste momento está a ler “Profecia Celestina”. No dia seguinte a esta entrevista Joana Serrano foi pela primeira vez a um festival de Verão ver a banda britânica Portishead.Assume-se católica embora não seja praticante. Ser católica casa bem com os dogmas comunistas? “Se calhar não casa bem mas acredito que devemos ser sempre crentes em algo. Cada um tem o seu Deus. Não acredito numa imagem mas sou crente em muitas coisas e pratico a minha fé de outras formas que não ir à igreja”, realça.O melão é de Alpiarça e não de AlmeirimPorquê um festival de melão e não continuar com a Feira do Vinho?A câmara municipal decidiu acabar com a Feira do Vinho e acho que bem. Não foi bem acabar, acharam por bem suspender devido à situação financeira do município. Se não há condições financeiras não se fazem festas. O Festival do Melão faz parte do plano de actividades da junta de freguesia e tem uma dimensão completamente diferente. O investimento da primeira edição foram 5 mil euros. O da Feira do Vinho era muito maior.Porquê um Festival do Melão?Para promover o melão de Alpiarça, uma coisa completamente esquecida porque as pessoas identificam o melão como sendo de Almeirim. Quisemos trazer isto de volta a Alpiarça, por uma questão de justiça.Diz que querem com este festival devolver o melão às suas verdadeiras “raízes”. É bairrista?Um bocadinho. Alpiarça é a minha terra e vivo os problemas dos nossos produtores, sinto um pouco o que eles sentem. Trabalham o ano inteiro para a terra, para eles e acho que é injusto que as pessoas depois conheçam o melão como sendo de Almeirim, onde não se produz esta fruta que é tão nossa. Aliás, a primeira pessoa a desenvolver sementes de melão era de Alpiarça.Na sua óptica é muito importante esse rigor acerca da origem do produto?Acho que sim. As origens são muito importantes. Não é por ter vivido muitos anos em Lisboa que vou dizer que sou de lá. Eu sou de Alpiarça, nasci cá, as minhas origens são importantes para mim.Diz que alguns produtores não reconhecem a importância deste festival. Porquê?As pessoas muitas vezes não têm a noção da importância da publicidade para a divulgação de um produto. São pessoas que sempre trabalharam no campo, com escolaridade baixa e têm dificuldade em perceber o alcance do festival na promoção do melão. Se um produto não for conhecido não pode ser muito vendido. E o melão, se tiver uma boa promoção, uma boa imagem de marca, acaba por escoar muito mais facilmente. “O meu partido é o da liberdade de expressão”Qual a sua opinião sobre o facto de dois deputados municipais da CDU exercerem ao mesmo tempo funções no gabinete de apoio ao presidente da Câmara de Alpiarça?Não concordo. Acho que acima de qualquer lei está a nossa moral, a nossa ética. Pessoas que estão diariamente envolvidas em decisões importantes para o nosso concelho não devem estar numa assembleia municipal que é um órgão fiscalizador.Já manifestou essa posição aos seus camaradas?Nunca ninguém me perguntou a opinião e eu também não a dei.O PCP é tido como um partido organizado, com debate interno, onde essas questões não são deixadas ao acaso...É verdade, estive em reuniões onde isto foi discutido mas nunca me manifestei muito sobre esta decisão que a CDU tomou.A CDU ou o PCP?O PCP. Nunca falei muito sobre isto. Acho que é a primeira vez que estou a falar. Mas vocês perguntam-me e eu estou a ser sincera.O PCP está numa luta interna de poder em Alpiarça?(pausa) Não é o dia mais certo para responder a essa pergunta.Admite que algum dia possa vir a desiludir-se com alguns camaradas?Sim. Admito desiludir-me com certos comunistas. Já quanto à luta interna pelo poder, é muito difícil responder a essa pergunta. Principalmente porque só estou aqui há um ano e meio. Talvez daqui a mais um tempo possa falar mais abertamente sobre isso. Mas admito que há desilusões, mas não é pelo facto de serem comunistas.Quando falamos em comunistas é porque pertencem à organização a que também está ligada.São pessoas que estão directamente ligadas a mim, ao meu trabalho, ao trabalho da CDU e do PCP, é verdade. São pessoas que estão no nosso trabalho colectivo, no nosso trabalho diário. Sim, tenho tido alguma desilusões. Porquê?Tínhamos uma esperança muito grande, trabalhamos todos em conjunto para conseguirmos estar à frente da junta de freguesia e da câmara municipal e as pessoas perderam um pouco esse espírito de união. Está desiludida com o presidente da câmara?Não. De forma alguma. Não estou nada desiludida com o presidente da câmara.Essa imagem que está a passar no seu discurso não pode ser prejudicial ao partido? O meu partido é o da liberdade de expressão. E sinto-me no direito de me exprimir à vontade, daí estar a ser sincera e dizer o que penso. Se tiver problemas, penso que o problema não será meu. A disciplina partidária obriga habitualmente a uma série de práticas e omissões?Mas como acredito que podemos falar abertamente sobre qualquer assunto, e faz parte da minha maneira de ser, não ia estar aqui agora a dizer outra coisa que fosse contra aquilo que penso. Daí também a minha desilusão com algumas pessoas. Contra a extinção do concelhoComo vê a eventual extinção do concelho de Alpiarça e possível fusão com Almeirim?Eu emigrava (risos)...Não concorda com essa possibilidade?Não é uma questão de concordar. Primeiro ainda não existe uma definição concreta para dizer se concordo ou não. Não se sabe o que se vai passar. Mas se isso realmente acontecer vai ser muito complicado. Sempre houve rivalidade entre Almeirim e Alpiarça e se Alpiarça voltar a pertencer ao concelho de Almeirim acho que me vou revoltar. Atenção que não tenho nada contra Almeirim. Os meus filhos nasceram lá, o pai deles é de lá, fui sempre muito bem recebida. Mas a minha terra é a minha terra...
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