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“Passei 20 anos da minha vida na prisão de Alcoentre”

“Passei 20 anos da minha vida na prisão de Alcoentre”

Paulo de Melo, agente de execução, 53 anos, Santarém

Paulo de Melo, 53 anos, é solicitador há 25 anos e agente de execução há oito. Passou 20 anos na prisão de Alcoentre onde o pai era orientador social. Já no exercício da sua profissão teve uma pistola apontada à cabeça mas nem isso o fez desistir. É casado e tem duas filhas. Diz a brincar que o cão é a pessoa que gosta mais dele lá em casa tal é a intensidade do trabalho.

Já tive uma pistola apontada à cabeça. Foi a situação mais complicada em oito anos como agente de execução. Disse que tinha sido criado em Alcoentre e que não tinha medo de pistolas. Saí porta fora, liguei para o 112 e pouco tempo depois estava lá a polícia. Não tive medo como hoje não tenho. Hoje as pessoas já nos começam a ver com um certo sentido de agente. Já tive que concretizar uma execução contra um amigo com penhora de casa, ordenados e carro. Custa muito. Em Lisboa, onde as pessoas não se conhecem, é mais fácil. Quando o toiro sai tem que se ver para que lado é que ele marra. É essa a filosofia que uso na abordagem. É o princípio ribatejano num certo sentido tauromáquico. Pelas primeiras palavras ao telefone percebo se a pessoa vai ser hostil ou se está a receber bem a ideia. Às vezes é preciso dar meia volta e voltar noutro dia. A idade também nos ajuda.Passei 20 anos da minha vida na prisão de Alcoentre [Azambuja]. O meu pai estava lá como orientador social. Eu, o meu irmão e a minha irmã fizemos lá bons amigos. Nunca tivemos problemas. Depois de saírem as pessoas passavam por lá para dar um abraço e dizer que a vida estava a correr bem. Lembro-me que um homem, que saiu no 25 de Abril, deixava uma saca de castanhas à nossa porta sempre que o Benfica jogava com o Sporting. Isso só deixou de acontecer quando ele morreu. Tenho pena que se fale dos reclusos esquecendo que são pessoas que tiveram problemas. Com nove anos sabia abrir um carro. Aprendi com os pintas de Lisboa. Chamavam-lhe os ratos dos automóveis. Hoje em dia já não o sei fazer (risos). Aquela era uma cadeia agrícola. Cumpria a pena o fulano que a meio de uma discussão e com um pouco de álcool tinha dado com um sacho na cabeça do outro mas que até era um bom pai de família e trabalhador. O crime de estupro, que desapareceu, era o maior. Pendia sobre alguém que tinha ligação com menor e que não queria casar. Havia muitos rapazes presos. O cheque sem provisão também era comum. Hoje os crimes são diferentes e mais ligados às drogas e à violência.Entrava e saía da cadeia conforme me apetecia. Os presos mostravam-nos os canivetes que faziam com colheres e garfos e que usavam por uma questão de defesa. Em Alcoentre havia cinema, revista, bilhar, ping pong, tiro ao alvo e jogos de cartas. Criaram condições que não eram usuais no meio rural. A cadeia era um pólo económico da terra. Quando tinha 12 anos o meu pai [José Luís Nazareth Barbosa] disse-me que se quisesse podia fumar mas não me pagaria o tabaco. Foi isto que os meus pais me incutiram. A minha liberdade acaba onde começa a dos outros. De vez em quando perguntava-me em que ano andava. Eu é que me matriculava. Não era um pai ausente. Tinha muita coisa para fazer. Havia dias em que não o via. Chegava a sair às 7h30 para a cadeia das Caldas da Rainha, onde esteve como director, e chegava às 21h30. Nos momentos importantes estava lá. Quando somos solteiros temos 24 horas para nós e quando casamos passam a ser 12. Basta olhar para mim para perceber que depois de me casar não voltei a praticar desporto. Quando comecei a trabalhar fazia todos os dias duas horas de desporto. Desde o ténis à bicicleta. Nunca gostei da competição. Saber que quando jogo contra outra pessoa um de nós vai ter que ganhar não me agrada. É violento. No fim de um jogo de futebol se me perguntar o resultado não sei. Sei se me deu ou não prazer jogar. Já pensei em mudar de vida mas não sei fazer outra coisa. Há dias um colega confidenciou-me que tinha sonhado que estava à porta da câmara dos solicitadores para cancelar a matrícula (risos). Por vezes há saturação porque a profissão é absorvente e de grande responsabilidade. Já tive semanas em que não vi mulher e filhas. Há vinte anos que faço questão de não entrar no escritório antes das 9h30. Também faço questão de não sair antes das 21h00. Como trabalho ao sábado e ao domingo não faço rigorosamente nada. Quando é preciso fazer um cozinhado mais complicado faço mas não lavo a loiça. Pode ser uma cataplana ou paelha. Pego no que está no frigorífico e faço uma miscelânea. Gosto de juntar uns amigos, fazer uma refeição e ver futebol.Digo a brincar que o meu cão é a única pessoa que gosta de mim em casa. Chegue tarde ou cedo fica sempre satisfeito. Por causa do stress o médico aconselhou-me a ter um escape. Comecei a ir passear o cão. Outra coisa que fiz foi deixar de ver televisão. Já chegam os problemas que tenho no escritório. Há um excesso de más notícias. O escritório fecha durante um mês mas só tiro quinze dias de férias. Nos outros quinze aproveito para reorganizar procedimentos. Se a família ganha vamos para o Algarve. Se eu ganho vamos para Peniche onde se passam as melhores férias do mundo. O proprietário do restaurante onde ia fazer a festa do meu casamento enganou-se no dia. Descobri isso porque tinha saído para ler o jornal a meio da manhã e lembrei-me de perguntar se estava tudo bem. O senhor ficou de trinta cores quando percebeu que o casamento era no sábado e não no domingo. Aquilo é que foi fazer bolos e ligar para os empregados. A ementa manteve-se mas tudo teve que ser descongelado. Arroz de tamboril e medalhões de vitela com ameixa. Almoçámos às quatro da tarde. Eu que não queria fotografias tive que arranjar um fotógrafo para fazer tempo até ao almoço.Ana Santiago
“Passei 20 anos da minha vida na prisão de Alcoentre”

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