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Memórias do dia em que o ciclone levou o pouco que tinham os habitantes de Vila Franca de Xira

Memórias do dia em que o ciclone levou o pouco que tinham os habitantes de Vila Franca de Xira

António Francisco Silva é uma das testemunhas da destruição que assolou o concelho em 1941

Passaram 71 anos mas as memórias do dia em que o concelho de Vila Franca de Xira foi atingido pelo devastador ciclone são feridas que nunca saram para António Francisco da Silva. Uma das poucas testemunhas do fatídico dia 15 de Fevereiro, ainda vivas, conta o que viu e como se vivia naquela época.

António Francisco da Silva estava a trabalhar nas obras do cais de Vila Franca de Xira quando começou a soprar um vento forte. O prenúncio de uma desgraça fez António e os restantes trabalhadores fugirem para se refugiarem numas casas que existiam por perto. Uma mulher não conseguiu fugir a tempo e foi projectada contra uma parede. António Francisco Silva escapou ao ciclone de 15 de Fevereiro de 1941 que deixou um rasto de destruição no concelho. Aos 91 anos as memórias daquele dia estão tão vivas como se tivessem sido ontem. A testemunha do ciclone, das poucas que ainda estão vivas, recorda o desalento que foi ver a destruição. Parte da vila de Alhandra e dos seus mouchões desapareceu. O rio subiu três metros e dezenas de casas em Vila Franca ficaram completamente destruídas. Morreram mais de duas dezenas de pessoas. O concelho era pobre e o ciclone levou o pouco que a maioria da população foi amealhando com muitas horas de trabalho e sacrifícios. Era uma época em que se trabalhava de sol a sol, em que imperava a fome. Entre o meio-dia e a uma da tarde todo o distrito de Lisboa esteve sobre a influência do ciclone. Registaram-se rajadas a uma velocidade de 200 quilómetros por hora. O abastecimento eléctrico do concelho foi interrompido e a maioria das casas ficou sem telhado. Centenas de barracas e arrecadações foram pelos ares. Ao todo, no distrito, morreram mais de 200 pessoas. Na lezíria grande de Vila Franca todos os valados e diques de segurança ficaram destruídos com a subida repentina das águas. O Tejo galgou as margens e inundou uma parte considerável de Vila Franca de Xira. Um barco que se encontrava atracado no cais de Vila Franca carregado com sacas de farinha afundou-se e a carga já não chegou ao destino que era Salvaterra de Magos. Em Alhandra assistia-se ao pânico, à devastação. Uma dezena de pessoas morreu na localidade. Houve muitos feridos graves. Soeiro Pereira Gomes, o escritor de “Esteiros”, lançou-se ao Tejo numa barca com três trabalhadores para salvar do Mouchão de Alhandra 20 pessoas que lá se encontravam encurraladas. Também Joaquim Baptista Pereira, que se tornaria uma lenda da natação portuguesa, fez vários salvamentos a nado. Os estragos demoraram meses a reparar. O Estado liderado por Salazar prometeu ajudar as populações, mas pouco ou nada foi feito. António sente-se um homem de sorte. Escapou sem um arranhão. No meio da tristeza sentiu felicidade ao ver que a sua casa tinha resistido. O ciclone, recorda, levou o pouco que havia no concelho. Naquele tempo a vida em Vila Franca era dura. “Porrada e fome”, diz António Silva, que começou a trabalhar aos sete anos. “Os rapazes e raparigas iam para os campos, trabalhar com as éguas. Estavam os bois à frente a lavrar a terra e nós atrás a tapar as sementes. Era uma vida tão dura que nem é bom lembrar. Os encarregados batiam nos rapazes por tudo e por nada”, desabafa.Em 1941 Vila Franca não tinha “nem metade” das casas que tem hoje. “Só depois da revolução do 25 de Abril de 1974 é que o concelho começou a desenvolver-se”. Chegaram as indústrias, mais emprego e em melhores condições, a prosperidade. Hoje, lamenta a testemunha do fatídico dia do ciclone, são outros ventos da desgraça que estão a destruir a terra. É a crise, a falta de oportunidades, a política. “Hoje não tem nada, não dá trabalho a ninguém”, lamenta António Silva, que sempre trabalhou na agricultura da região. António só se ausentou de Vila Franca para trabalhar durante seis meses na construção de uma auto-estrada entre o Camboja e o Vietname. Trabalhou até aos 87 anos. Hoje passa o tempo a passear a pé pela cidade e a falar com os amigos. Olha para as ruas e os prédios e vê quase sempre o estado da cidade na altura do ciclone. As memórias são uma ferida difícil de curar, mas António Francisco da Silva vai tentando não pensar nelas.
Memórias do dia em que o ciclone levou o pouco que tinham os habitantes de Vila Franca de Xira

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