uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante
Voltamos a ir para o trabalho de farnel aviado

Voltamos a ir para o trabalho de farnel aviado

Nova exposição abre sábado no Museu Etnográfico de Glória do Ribatejo

Longe vão os tempos em que os camponeses partiam a pé para os campos com um avio para quinze dias longe de casa. No saco levavam pão, batatas, azeite e bacalhau. Hoje em dia, a marmita está de regresso ao quotidiano de muita gente que devido à crise deixou de ir todos os dias almoçar ao restaurante e mesmo ao café dos minipratos.

Há cada vez mais pessoas a levarem o almoço para o trabalho como era hábito até aos anos setenta do século passado. É um regresso ao passado imposto pela crise. Em vez de panelas embrulhadas em jornais para a comida não arrefecer, levam-se agora recipientes térmicos ou caixas de plástico que se aquecem no microondas disponibilizado pela empresa ou comprado entre todos. No sábado, 25 de Agosto, a exposição “O trabalho de farnel aviado”, no Museu Etnográfico da Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos vai permitir perceber as diferenças entre o que se passava antigamente e o que se passa agora. Nas décadas de 20, 30 e 40, os trabalhadores da Glória do Ribatejo partiam durante 15 ou mais dias para trabalharem nos campos. As mulheres levavam o avio à cabeça ou na ilharga. Os homens colocavam a comida nos alforges que carregavam depois ao ombro. O farnel consistia em pão, batata, azeite e bacalhau. Às vezes, os trabalhadores conseguiam comprar um pouco de peixe ou carne aos almocreves. No campo, preparavam as refeições numa panela que prendiam a algumas estacas, sobre o lume. Eurico Leitão, 59 anos, morador em Samora Correia, ainda se lembra de ir quando ainda era uma criança trabalhar para os campos da sua terra, na aldeia de Albergaria de Almoster. Levava apenas farnel para um dia. A comida era à base de azeite, ovo e feijão. A refeição ia numa panela embrulhada em panos para a conservar quente até ao almoço. Só aos fins-de-semana é que comia um bocado de carne. Tornou-se agente da PSP em Lisboa até aos 56 anos, altura em que se reformou. Durante a sua vida profissional, almoçou sempre nas cantinas da PSP. Nos últimos anos pagava dois euros por uma refeição com qualidade. Hoje, com 59 anos, estava longe de imaginar que regressaria ao trabalho e ao farnel. Tem dois filhos desempregados e um neto a viverem consigo e o seu rendimento e da esposa não chega para pagar todas as despesas. É motorista numa empresa de transportes e passou a levar todos os dias a marmita para o emprego. “Há pouco tempo ainda conseguia gastar cinco ou seis euros por uma refeição, mas agora passou a ser impossível. Com a gasolina e portagens que gasto a ir para Lisboa tenho de poupar nalgum lado”, explica. Leva o que sobra do jantar e aquece no microondas da empresa.Marta Santos, de 27 anos, vai todos os dias da Póvoa de Santa Iria para Samora Correia, onde trabalha. No ano passado ia quase sempre ao restaurante, mas deixou de o fazer. “Os preços subiram, gasto mais gasóleo e vi-me mesmo obrigada a começar a trazer o tupperware com a refeição que cozinho no dia anterior”, explica. A empresa também já está preparada com microondas e frigorífico que passou a ser usado por muito mais gente. Se existe uma nova classe de portugueses a aderirem à marmita, existem muitos outros que nunca a largaram. Maria Luísa Martins, 62 anos, jardineira, sai todos os dias de madrugada da sua casa para trabalhar nalguns jardins da região. Na lancheira traz quase sempre a mesma comida: batatas, couves e frango por ser a carne mais barata. Não se lembra da última vez em que entrou num restaurante, mesmo antes da actual crise económica estalar. Não tem microondas para aquecer a comida e é num recanto do jardim que come a comida fria, preparada no dia anterior. “Trabalhei nos campos e depois passei para os jardins. Ganho praticamente o ordenado mínimo e toda a vida andei sempre com a lancheira atrás. Já estou habituada”, conclui.Exposição na Glória do Ribatejo evoca trabalho no campo entre década de 30 e 70A exposição “O trabalho de farnel aviado”, organizado pela Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural de Glória do Ribatejo (ADPEC), que vai estar patente no Museu Etnográfico da Glória, retrata a ida dos trabalhadores glorianos para os campos agrícolas da região entre a década de 30 e os anos 70. Eram os capatazes que contratavam os trabalhadores. O contrato verbal de trabalho entre o homem e o capataz chamava-se “molhadura” e consistia no pagamento de um copo de vinho. As mulheres recebiam linhas de várias cores para bordarem. Para irem para os campos, às vezes percorriam 15 ou 40 quilómetros a pé. Levavam farnel para 15 dias de trabalho e dormiam num quartel isolado de outros grupos para evitarem influências do exterior. Trabalhavam do nascer ao pôr do sol e à noite ainda restavam forças para bordarem ou improvisarem um pequeno baile. Já na década de 60, com a melhoria das redes viárias, os trabalhadores passaram a ir diariamente em camionetas trazidas pelos capatazes para os campos, regressando à noite. Na década de 70 aparece a cultura do tomate que mobiliza cada vez mais pessoas. A exposição termina com rastos de uma ruralidade que está a desaparecer e que representa idosos com 70 e 80 anos que ainda estão ligados à terra. A exposição contou com a contribuição de cerca de 50 pessoas que cederam objectos e fotografias. Vai estar patente no museu durante cerca de um ano.
Voltamos a ir para o trabalho de farnel aviado

Mais Notícias

    A carregar...