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Epístola aos abídisenses

-Olhe, faça favor! Pregue-me aqui um valente pontapé que eu fui um dos que votei em si ! Vá, chegue-lhe com força!

Duas palavras que para prosa (má) basta a destes tempos. A primeira para agradecer ao Dr. José Miguel Noras ter-me convidado para participar em poema na homenagem a José Saramago, com outros dezasseis poetas, todos melhores que eu, na, até agora, pouco menos que obscura e inexistente cidade de Abídis e Veríssimo Serrão. Até agora, já que um autarca famoso e escritor excelso em estilo etílico, até há poucos dias presidente da Câmara de Santarém, a cidade em questão, a deixou, tal como prometera, colocada e em destaque no mapa deste glorioso país das dívidas. Louvado seja, que entre outras muitas promessas e derivados, como despoluir o Alviela, transformar as águas de Santarém em passagem para a Ásia, e tornar Bernardo Santareno mais conhecido que Brecht em Amiais de Baixo, conseguiu esse difícil desiderato. E não foi fácil. É que Santarém era na verdade um caso sério de invisibilidade ao ponto, por exemplo, de qualquer sujeito vindo de Moura, a grande urbe, errar a praça do Seminário, e ir ter a cascos de rolha, perto do mar, além da Porcalhota. Outros famosos (é certo que não tanto) tinham já tentado resgatar esta cidade das trevas sem êxito. Lembremos um Camões (a do «sempre enobrecido Scabelicastro»); um Garrett (o das Viagens); um Herculano cuja estátua, coitado, foi posta defronte dos urinóis; ou um José Saramago (mero prémio Nobel), e tudo em vão. Nenhuma destas insignes sombras tinha, em seus escritos ou presença, conseguido dar visibilidade a esta cidade. Pior só as do Calvino. Foi então que ele chegou, este exímio autarca e escritor de tomos (e bem tomados alguns, em título e estilo), e de uma penada, duzentas festas na cabeça do concelho (credo!), e quinhentas aparições no plasma (mais que S.José e Nossa Senhora), Zás! Santarém renasceu das cinzas e os seus anónimos e obscuros habitantes viram pela primeira vez a luz, e o Quim Barreiros. Isto é claro à custa de cem milhões de dívida em euros e al contado. Coisa mínima que agora vós, ó Abídisenses felizes, tereis que remir em serviços e impostos pelas gerações futuras, mas que é isso comparado com a glória de não mais as trevas e o anonimato vos cobrirem?! Por que esperais então? Ide aí às estátuas, aos livros, à música, aos jornais, aos teatros, aos quadros, dos famosos inúteis do passado, e substituí as suas ruas, estantes, palcos, e arquivos, pela memória deste grandecíssimo autarca e escritor de mão-cheia da «Fúria das Vinhas» (título que não lembrava ao Steinbeck), e dizei como o torto do Camões ao velhadas do Restelo : «Ó glória de mandar, ó vã cobiça, dessa vaidade a quem chamámos Fama». Os outros, os ingratos que ainda não reconhecerão tanto bem, que se reúnam no Planalto todo empedrado e sem flores (mais flores pra quê?), a bater com a cabeça naquele monumento jocoso ao forcado, mandem vir de novo esse famoso polícia da liberdade e autarca de marca, ponham-se a jeito, e pedi-lhe:-Olhe, faça favor! Pregue-me aqui um valente pontapé que eu fui um dos que votei em si ! Vá, chegue-lhe com força!Se mesmo assim o remorso vos perseguir até ao túmulo, mandai inscrever nele em epígrafe: «Que a terra me seja leve como os miolos». E descansai em paz.Mário Rui Silvestre

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