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A experiência de vida é mais que um curso superior

A experiência de vida é mais que um curso superior

José Batista, fundador da Moderna Oureense, continua a trabalhar aos 81 anos para não pensar na velhice

José Batista não teve uma infância fácil. Começou a trabalhar aos 14 anos como aprendiz numa oficina e foi singrando na vida. Com mais dois sócios montou uma oficina que hoje é uma referência no concelho de Ourém e que completa 50 anos de existência esta sexta-feira, 18 de Janeiro. A empresa Moderna Oureense é hoje de um dos filhos, mas José Batista continua a trabalhar como gerente para não pensar nas dores e na velhice. Nesta entrevista conta como foi a infância, como era o concelho e como é hoje. Só vai a Santarém se tiver mesmo necessidade e não se importava que Ourém passasse para o distrito de Leiria, com o qual a população tem mais afinidade. Foi bombeiro 45 anos e chegou a comandante tendo sido agraciado pela Liga dos Bombeiros Portugueses. Por tudo o que já fez por Ourém, a câmara também lhe atribuiu a medalha de ouro de mérito municipal.

Começou a trabalhar muito cedo e quase a fazer 82 anos ainda continua. Não se sente cansado de trabalhar?Se nos pomos a pensar na doença, nas dores, na morte é pior. Por isso, se andar entretido a trabalhar não tenho tempo para pensar nisso. Se não pensarmos na velhice temos mais força para agarrar a vida. Se vou para o banco do jardim fico velho num instante. Não deve ter passado uma infância fácil.Antigamente andávamos pelas aldeias e só se via carroças e burros. Hoje cada família tem dois e três carros. Hoje a vida está pior do que se calhar há uns 20 anos, mas é bom que se saiba que há 60 ou 70 anos era muito pior. No meu tempo de criança não se comia como hoje, por exemplo. Passou fome?Fome não passei porque os meus avós maternos tinham uma padaria e o pão não faltava lá em casa. Mas comia-se muito mal. Sobretudo na altura da Segunda Guerra Mundial, era eu pequeno, em que tinha que ir para as bichas do racionamento. Podia haver dinheiro mas não havia comida para comprar. Entristecia-me estar nas bichas porque ao fim de uma hora, quando chegava a minha vez, já não havia nada para comprar ou só conseguia levar 100 gramas de arroz. Começou a trabalhar com que idade?Os meus pais eram pessoas pobres, trabalhavam no campo. Quando saía da escola ia ajudá-los nas tarefas agrícolas. Isso até me fez bem porque aprendi muita coisa e deu-me experiência de vida. Os jovens hoje não sabem o que é trabalhar no campo. Fiz a quarta classe, não havia dinheiro para mais. Aos 14 anos os meus pais foram pedir para ir para uma oficina para aprender mecânica. Passei por três oficinas sempre com o mesmo patrão. Tinha 30 anos quando pensei estabelecer-me por conta própria. Não tem pena de não ter tirado um curso?Hoje a quarta classe não vale nada. Mas o que aprendi ao longo da vida é mais do que um curso superior. A prática ainda é um grande curso. Lembra-se de qual foi o primeiro trabalho que fez quando começou a aprender mecânica? Foi na firma Vieira Graça e Lopes. Fui ajudar um dos patrões a tirar um motor de um camião Autocar, uma marca que já não existe. O meu trabalho era dar as chaves. Na altura não havia guinchos eléctricos. O motor era preso com correntes a uma tranca e era tirado a força de braços. Quando me estabeleci, em 1963, não havia as ferramentas e aparelhos que há hoje. Às vezes tínhamos que pedir ferramentas emprestadas. Em Ourém não havia um torno mecânico e quando era preciso reparar ou fazer algumas peças tínhamos que ir a Tomar. Nessa altura ter um carro era um luxo.Já havia bastantes carros. Mas quem os tinha ainda eram os mais ricos. Como o concelho era grande havia trabalho para as oficinas irem vivendo. Como eram as estradas?Eram estradas estreitas, más. Ir a Leiria demorava-se mais de uma hora, hoje faz-se o caminho em 15 minutos.Qual foi o seu primeiro carro?Foi um Morris 8. Era um carro que tinha uma bomba eléctrica e um dia estava a repará-lo em casa e tirei o tubo da gasolina. Um dos meus filhos deu à chave, a bomba começou a trabalhar e entornou a gasolina toda para o chão. É capaz de arranjar um Mercedes dos novos? Se fosse só mecânica não tinha grandes problemas, mas quanto ao resto… Hoje os carros têm muito de electrónica e isso para mim já é complicado. Tinha horário de trabalho?Tinha, tinha… Era começar à segunda-feira às oito horas da manhã e acabar ao domingo à hora de almoço. Era trabalhar dia e noite. Era difícil e ainda bem que as coisas mudaram para melhor, mas passou-se ao extremo de hoje as pessoas serem muito cumpridoras do horário de saída do trabalho. Ainda tem amigos do tempo de escola, de infância? Já tenho poucos. Mas ainda há alguns do tempo em que fui fazer a inspecção para a tropa. Acabei por ficar na reserva e não cumprir o serviço militar. De vez em quando ainda me junto com os colegas da altura. Concelho de Ourém também cresceu por causa de FátimaQuando nasceu as aparições de Fátima tinham sido há 14 anos. Isso teve influência na sua vida?Sou católico. Acredito que Nossa Senhora tenha aparecido aos pastorinhos. Agora não quer dizer que não tenham dado uma pinturazinha à história para a tornar mais colorida. Já fez promessas a Nossa Senhora?Foi coisa que nunca fiz. Não sou contra quem as faça. Sou mais de ir ao santuário e pôr uma moeda ou uma nota na caixa de esmolas. Não gosto de prometer coisas que depois possa não ter condições para cumprir. Mas já as fizeram por mim.E cumpriram?Em miúdo estive doente e a minha madrinha fez uma promessa para que eu ficasse bom. Tinha prometido ir de joelhos comigo ao colo. Passaram anos e já eu era casado e pai de filhos quando ela foi ao santuário fazer o percurso de joelhos mas como já não me podia levar ao colo tive que ir ao lado dela a andar.O que é que Ourém beneficiou com o fenómeno de Fátima?O concelho de Ourém também cresceu por causa de Fátima e ficou conhecido a nível mundial. Quando era pequeno Ourém parecia uma aldeia. Com o crescimento passou de vila a cidade, mas continuo a achar que podíamos ter uma grande e boa vila em vez de uma pequena cidade. A passagem a cidade não trouxe grandes benefícios às pessoas. “Se quiserem passar o concelho para o distrito de Leiria voto a favor”O que é que falta em Ourém?Trabalho, que é cada vez menos, porque os políticos preocupam-se cada vez mais com eles e menos com o povo. Os nossos jovens estão a abandonar o concelho para irem para outros países à procura de emprego. Não há empresas para desenvolver o concelho. Antigamente havia muitas fábricas de transformação de madeiras, serrações, mas tudo isso foi acabando. Era melhor se Ourém pertencesse ao distrito de Leiria? Leiria é onde habitualmente as pessoas do concelho fazem a vida. Ourém é o concelho mais longe de Santarém. Se quiserem passar o concelho para o distrito de Leiria voto a favor. Antigamente, quando ia para Lisboa ainda tinha que passar por Santarém, mas agora, como passamos ao lado, com a auto-estrada, não há nada que me cative a ir à capital de distrito. A capital de distrito não lhe diz nada?Não desgosto da cidade, porque também é a capital do nosso distrito. Mas não tenho lá nada para fazer. Não tenho lá família que me faça fazer a viagem. O que preciso tenho em Ourém ou em Leiria. Mas foi algumas vezes a Santarém?Poucas. A primeira foi para tratar do passaporte para ir ao estrangeiro. Mas para o renovar já não fazia a viagem porque havia uma pessoa que ia com regularidade à capital de distrito tratar de assuntos de pessoas que lhe pediam. Tínhamos que lhe pagar, mas sempre se poupava tempo. “As próximas eleições vão ser muito renhidas”Ficou satisfeito que nas últimas eleições o PS tenha ganho a câmara ao PSD? Fiquei. Mas estou com receio que nas próximas eleições haja um volteface e o PSD reconquiste a câmara. O PSD tem muito conhecimento do concelho e já anda a fazer campanha. E quem está à frente de uma câmara acaba por ser alvo de crítica, de antipatias. Calculo que as próximas eleições vão ser muito renhidas. Alguma vez foi ao gabinete do presidente da câmara fazer algum pedido?Não! Sou contra pedidos e cunhas. No novo edifício da câmara ainda não entrei, nem com o anterior presidente nem com o actual.Foi vogal da Assembleia de Freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias num mandato na década de 80. Nunca mais teve cargos políticos. Não gostou?Gosto da política. Mas fiquei farto. Era muito trabalhoso. E depois também não queria mais cargos políticos, para não misturar trabalho com política. Parece que não gosta é dos políticos. Sou amigo de todos, seja de que partidos forem. Apesar de ser simpatizante do PS cumprimento os do PSD, do CDS-PP ou de qualquer outro partido. Não tenho rancor aos políticos.Fez parte da comissão instaladora do Centro de Saúde de Ourém. Costuma lá ir?Não sou muito de andar no médico, mas quando estou doente é ao centro de saúde que vou. Só se eles não me derem uma solução é que procuro um médico do privado.O vereador que não queria pagar a reparação do carro“Andámos seis anos para conseguir construir a oficina onde ainda está hoje porque um vereador do tempo da outra senhora pensava que lhe arranjávamos o carro de borla e não gostou quando lhe apresentámos a conta. Embirrou connosco e não deixava construir a oficina. Graças a Deus que já está no outro mundo e que a terra lhe seja leve. Só depois da revolução do 25 de Abril (1974) é que conseguimos licença para fazer as obras. Este local era uma quinta e fomos os primeiros a conseguir comprar um lote de terreno para construir as instalações”. Quando era bombeiro chegou a ser dado como morto num incêndioJosé Batista tinha 22 anos quando foi incorporado como aspirante nos Bombeiros Voluntários de Ourém. Na altura entrou para a corporação porque “não havia mais nada onde os jovens se pudessem ocupar para além do futebol”, recorda. Como não tinha grande jeito para jogar à bola optou por ajudar a salvar os outros. Passou por vários cargos e postos na corporação chegando a comandante em 1995. Três anos depois passou ao quadro honorário. Durante o tempo em que foi bombeiro passou por várias situações, umas gratificantes, como aquela em que com um colega teve de fazer um parto dentro de uma ambulância, outras bastante difíceis como a de um incêndio em que chegou a ser dado como morto. “Pensava que ia morrer. Tive que fazer um buraco no chão, deitar-me e respirar com o nariz na terra. Na altura já era casado e já tinham ido dizer à minha mulher que tinha morrido. Felizmente salvei-me”, recorda. Dos 45 anos em que pertenceu ao quadro activo da corporação confessa que aprendeu muita coisa útil para a vida, como a de ser mandado e mandar nos outros. “Fiz muitas amizades e ainda sou estimado por muita gente dos bombeiros de Ourém e de outras corporações”, realça. A sua entrega foi reconhecida. Recebeu o crachá de ouro da Liga dos Bombeiros Portugueses, entidade que o agraciou também com a medalha de ouro de serviços distintos. A Moderna Oureense é uma referência empresarial A Moderna Oureense, uma oficina de reparação automóvel, nasceu do sonho de três jovens que se encontraram na então grande oficina Garagem Avenida: José Batista, Abel Homem e Armando Pereira. Mais tarde ficaram só dois sócios e hoje a empresa é do filho de José Batista. Durante doze anos a Moderna Oureense funcionou em instalações arrendadas até que foram construídas instalações próprias no local onde hoje continua. Por causa de ter sido fundada por três jovens começou a ser apelidada de “trempe”. Em 1966 a empresa passa a ser agente de serviço oficial Mercedes-Benz, que representa até hoje. Chegou a acumular com oficina de outras marcas, como a Morris-MG-Wolseley e Toyota. Além de oficina Mercedes é também actualmente oficina especializada Bosch. Ao longo dos anos alcançou várias distinções. Em 2008 a empresa obteve o segundo lugar no European CSI Award, na área de satisfação dos clientes, atribuído pelo Grupo Daimler. A empresa distingue-se pela constante actualização de equipamentos e ferramentas e pela formação constante dos colaboradores. Emprega actualmente 15 pessoas. Desde Abril de 2006 que é uma oficina com certificação de qualidade. Tem entre os seus clientes empresas, particulares, taxistas, oficinas independentes e tem uma área de influência que vai para além do concelho de Ourém.O empresário agraciado com a medalha de ouro de mérito municipalJosé Batista Vieira Enriques nasceu a 11 de Setembro de 1931 na Corredoura, às portas de Ourém. Começou a trabalhar como aprendiz numa oficina e em 1963 estabeleceu-se por conta própria com mais dois sócios abrindo uma oficina, a Moderna Oureense, que hoje é do filho Carlos Batista que é também dono da Tecnorém. Já não é dono da empresa mas a caminho dos 82 anos continua a trabalhar na oficina como gerente. Apesar da vida muito ocupada que sempre teve, de trabalhar sem se aperceber que já era noite, José Batista ainda arranjava tempo para dar o que podia à sua comunidade. Foi vice-presidente do Clube Atlético Oureense de 5 de Fevereiro de 1973 a 22 de Janeiro de 1974. Fez parte do conselho municipal de Ourém na década de 80. Fez parte da comissão instaladora do hospital e do centro de saúde, a que pertenceu de 1976 a 1981, tendo tido um papel importante na escolha do terreno para a construção do centro de saúde. Pessoa simpática, humilde, conhecida e reconhecida na cidade, fundou uma das empresas mais antigas da cidade que completa 50 anos de existência no dia 18 de Janeiro. O seu profissionalismo e dedicação à terra foram reconhecidos pela Câmara de Ourém que no ano 2000 lhe atribuiu a medalha de ouro de mérito municipal. Esteve para ser preso por dar comida ao primo que estava na cadeia“Gostei muito do 25 de Abril. Tive alguns problemas com o regime ditatorial. Quase fui parar à prisão por dar comida a um primo que estava preso. Ele era sapateiro e vendia uns rádios para as pessoas ouvirem as emissões da Rádio Moscovo clandestinamente. Quando estava na cadeia a minha mulher ia levar-lhe comida. Na altura foi o já falecido comandante dos bombeiros, José Maria Pereira, que me avisou que andavam a preparar-se para me prender. Quando me lembro disto fico emocionado”.
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