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Com a crise passei a ser supersticioso e se não me pagam antes da tourada o mais certo é ter azar

O cavaleiro tauromáquico João Salgueiro assume a sua impulsividade e diz que o público quer emoção

Vinte e cinco anos de alternativa como cavaleiro tauromáquico profissional pode ser muito tempo mas não para João Salgueiro. O toureiro de 45 anos de idade responde aos que acham que já pode retirar-se do toureio com a mesma determinação com que encara esta arte: “Não me vejo a fazer outra coisa”. Assume que é uma pessoa impulsiva, emotiva, o que às vezes pode criar a ideia nas pessoas de que é meio louco. Salgueiro é a antítese da imagem da vaidade que é associada aos toureiros. Recebe-nos na sua casa de Valada do Ribatejo, Cartaxo, com a roupa de trabalho. Fala de forma descontraída e apaixonada, do princípio ao fim. Considera que a pessoa mais importante da sua vida foi o seu avô, Fernando Salgueiro, já falecido. Foi com ele que aprendeu a coser um cavalo ferido mas muito mais que isso, aprendeu a cavalgar os sonhos.

Quem foi a pessoa que mais influenciou a sua carreira de cavaleiro tauromáquico?O meu avô Fernando Salgueiro. Foi um homem extraordinário e um equitador fora de série. Ele foi o meu pai para o toureio, para a vida, para tudo. Fui criado com ele. Tive a sorte de ter um avô que me ensinou tudo. Não há dia que não me lembre dele e todos os cantos da casa têm qualquer coisa dele. Quando estou a montar a cavalo ou tenho algum problema, tento imaginar o que é que ele faria. Tínhamos uma relação muito forte. Tínhamos uma grande cumplicidade e os nossos sonhos eram idênticos.É herdeiro de uma grande responsabilidade…Não há uma dinastia no toureio, em Portugal e talvez no Mundo, tão antiga como a da nossa família. Nunca houve uma alternativa como a minha em que estiveram simultaneamente, na mesma arena, três gerações. O meu avô, o meu pai e eu. A crise está a afectar a sua actividade como toureiro? É inevitável. Mas se há problemas não é por causa dos toureiros. Quando os empresários alugam as praças, pagam a pronto. Montar uma corrida fica muito caro. Toda a gente ganha dinheiro. São os bombeiros, a polícia, a Inspecção Geral das Actividades Culturais, a banda de música, o cornetim. O que acaba por ficar mais barato são os toiros e os toureiros. Os empresários não vão regatear preços com a gráfica que fez os cartazes ou com a banda. Regateiam os preços com os toureiros e os ganadeiros. Já foi enganado?É natural que já tenha acontecido uma ou outra situação mas não me posso queixar muito. Se for preciso colaborar com o empresário da corrida sou solidário, mas gosto de o fazer de livre vontade e não ser quase forçado a fazê-lo. Tem superstições?Nunca fui de ter rituais ou objectos para dar sorte mas agora passei a ter uma superstição. Se não me pagarem antes da actuação o mais certo é ter azar. Já não me corre bem a lide. Vou tourear preocupado com outras coisas. Não tem pena de não ter tirado um curso superior?Não é preciso tirar um curso ou ter um diploma para se saber de uma área de que se gosta. Podemos comprar os livros e estudar os assuntos. Gosto de medicina veterinária por exemplo. O meu avô era veterinário e aprendi muito com ele. Sei coser um cavalo, sei fazer diagnósticos. Se calhar sei mais que alguns que tiraram o curso. Não sou arquitecto mas se calhar sou melhor arquitecto que alguns que se dedicam a desenhar casas. O toureio também é arquitectura, geometria. Não conseguia conciliar os estudos com o toureio. Tive uma ascensão muito rápida e tive que fazer opções. Na altura também não havia as facilidades que existem hoje para estudar. Não dá importância à formação académica? Claro que dou. Os estudos são importantes. A minha filha é advogada e o meu filho está a tirar um curso de gestão da informação. Mas os estudos não são tudo na vida. Para sermos educados e cultos não precisamos de licenciaturas. Às vezes há a ideia errada de que os toureiros são uns burgessos... que nem sabem falar. Isso não é verdade. A ideia que se tem é que os toureiros só sabem falar de cavalos e toiros.Alguns passam essa imagem e têm o proveito. Mas há muita gente culta no mundo dos toiros e já encontrei muitos, tanto em Portugal como em Espanha. A cultura, somos nós que a fazemos, que a cultivamos. Sou muito curioso, gosto de saber mais sobre muitas coisas porque isso também me alimenta os sonhos. Quando começou a ser conhecido como é que lidava com as fãs?Com naturalidade. Uma das coisas que me dá prazer hoje é ter um público muito fiel. Antes de ser toureiro tinha raparigas interessadas em mim, não era nada desajeitado. Conheci a minha mulher quando andávamos a estudar e ela nem imaginava que eu ia ser toureiro. O ser toureiro não modificou nada na nossa vida comum. O que faz para além de montar a cavalo e tourear?Gosto de desportos náuticos, ver filmes e documentários. Gosto de ler sobre outros artistas como por exemplo pintores, adoro livros sobre histórias de vida. Leio jornais. Vive a poucos metros do Tejo. Também vai tomar banho no rio? Desde miúdo, quando vivia em Almeirim já vinha para Valada passar férias e ia para a praia fluvial. E continuo a ir. Costumo andar de moto de água. Não consigo estar muito tempo fora do meu ambiente. Não consigo estar uma semana inteira de férias. Mais de quatro dias é muito tempo. Em que medida é que as preocupações influenciam as suas actuações?Às vezes a tristeza faz-me deitar arte, outras é a felicidade. O melhor é não levarmos as preocupações e a necessidade de nos prepararmos para as coisas ao extremo. Porque se vivermos as coisas com uma intensidade exagerada desgastamo-nos, perdemos energias… Não gosto muito de falar disto.Porque é reservado ou porque isso afecta o seu estado de espírito?Reconheço que sou um bocado estranho porque vivo esta profissão de outra forma. Sou diferente da maior parte dos outros toureiros. Vivo esta arte com paixão, com entrega. Chego a arrepiar-me todo com as minhas actuações. Às vezes vou no caminho para uma corrida e começo a sonhar com a lide e fico emocionado. Sou muito emotivo. Tem receio de criar uma imagem menos boa nas pessoas?Podem pensar que sou mais artista ou mais louco. Sou apenas mais sensível. Não sou vendedor de espectáculos, sou um vendedor de emoções, sensações. Quando nas minhas actuações consigo transmitir às pessoas o que estou a sentir, marco a diferença. Há pessoas que passados muitos anos se lembram desta ou daquela actuação que fiz porque ficaram marcadas pela emoção. Muita gente me fala de uma corrida na Moita em 1997. Oito dias antes tinha feito uma corrida péssima. Se tiver um grande espectáculo montado e programado ao pormenor, as pessoas batem palmas e ficam muito contentes mas ao fim de um ano já não se lembram.Já lhe chamaram louco?Tenho noção que não agrado a todos. E se agradasse alguma coisa estava mal porque isso não é possível. Para tudo na vida é preciso ser um pouco louco, mas de forma saudável, sem fazer loucuras. Sou conhecido por arriscar muito. Quando vou para a arena é com a certeza de que vai sair bem. Tenho uma concepção do toureio que nem sempre consigo executar, mas o que importa é a intenção. E vícios, tem?O tabaco. Já deixei de fumar três vezes mas ainda não consegui largar o vício de vez. Beber só quando saio às vezes com os amigos ou num jantar. A minha bebida preferida é o sumo de laranja. Há a ideia de que os toureiros são bêbedos…Há um bocado essa ideia talvez associada aos forcados. Porque antes o que ganhavam só dava para fazerem um jantar e depois acabavam por beber uns copos. Era esse um pouco o espírito do forcado que hoje já é raro. Não quer dizer que um dia ou outro não se faça um jantar e não se bebam uns copos a mais. A sua vida gira em torno de quê ou de quem? Em torno da minha família, dos meus filhos. Somos muito unidos. Agora eles já saem, têm os seus programas, e às vezes vejo-me aqui sozinho em casa com a minha mulher e até já sinto falta da agitação de quando eles eram mais novos. Parece que me falta qualquer coisa. Parece que estou a namorar novamente. Tem uma alcunha?Não gosto de falar disso. É uma coisa do seio familiar e de pessoas com quem tenho intimidade. Em Valada há quem o trate ainda por menino JoãoJoão Salgueiro, de nome completo: João Inácio de Ferreira Girão Salgueiro da Costa, nasceu em 21 de Fevereiro de 1968 numa clínica em Lisboa mas foi registado em Valada do Ribatejo, concelho do Cartaxo, onde vive numa casa com mais de 100 anos. Apresentou-se como cavaleiro na praça de toiros de Salvaterra de Magos a 31 de Agosto de 1985, com 17 anos. Fez a prova de cavaleiro praticante um ano depois na Moita do Ribatejo no dia 24 de Maio. A alternativa foi a 29 de Maio de 1988 em Almeirim. O padrinho foi o seu avô Fernando Salgueiro e teve como testemunhas o seu pai Fernando Salgueiro (ex-cavaleiro) e os toureiros João Moura, Paulo Caetano e Joaquim Bastinhas.Em Valada as pessoas tratam-no por João e os mais velhos por menino João. Gosta de desporto mas também de ir ao teatro, de ver uma revista à portuguesa e de cinema. Viveu em Coruche até aos seis anos, depois em Espanha e passou a juventude em Almeirim até casar. Estudou em Coruche até aos 17 anos. Estava num curso técnico-profissional que dava equivalência ao 12º ano de escolaridade mas abandonou os estudos no 11º ano para se dedicar ao toureio.Um artista que num dia faz magia e no outro não consegue ser mágicoAo fim de 25 anos de alternativa já começa a pensar na retirada, agora que já tem o seu filho a seguir-lhe as pisadas?Nunca pensei nisso nem imagino retirar-me do toureio. Sinto-me ainda no auge das minhas forças, com experiência. Não me vejo a fazer outra coisa. O meu avô montou a cavalo até quatro meses antes de morrer. A minha vida é montar a cavalo e tourear. É o que sei fazer. Mas já teve momentos em que pensou desistir? Muitas vezes. Às vezes quando estou triste também penso nisso mas depois tudo passa. A primeira foi há bastantes anos. Dois dos melhores cavalos tiveram problemas e não tinha uma quadra de cavalos para praticar o toureio que idealizava. Os cavalos são uma extensão do toureiro e quando isso falha há uma grande frustração. Disse que ia parar. O meu avô respondeu-me que o mais fácil era fugir dos problemas e eu desisti da ideia. Ao fim de tantos anos já deve sentir-se cansado.De tourear e de tentar fazer coisas novas e evoluir no toureio nunca me sinto cansado. Sou dos toureiros de topo, dos mais antigos, o mais novo em idade e alternativa. Do que me sinto cansado é das rotinas que não deixam a festa dos toiros evoluir. Quem é que não deixa a festa evoluir?Às vezes é difícil as pessoas aceitarem mudanças porque estão acostumadas a certas coisas há muitos anos. A festa não pode ser a mesma de há 25 anos quando tirei a alternativa, ou mesmo de há 50 anos. O espectáculo tauromáquico não pode ter o mesmo tempo, as mesmas voltas e neste aspecto a festa estagnou. A culpa também é dos toureiros. Também. Alguns querem evoluir, outros não. Era importantíssimo o espectáculo não ter mais de duas horas, por exemplo. Não será também por haver menos emoção e mais espectáculo na arte de tourear?Começou-se a entrar por um caminho que é dar espectáculo. Mas continuo a entender que tourear é uma arte que funciona também muito por improviso e hoje temos uma lide cada vez menos improvisada. Talvez porque as ganadarias se modificaram e os toiros estão mais mansos. Quando comecei a tourear os toiros tinham mais mobilidade. Hoje temos um toiro mais parado, mais reservado. É conhecido por tentar inovar mas também por ter uma carreira com muitos altos e baixos.Muita gente diz isso e é verdade. Não consigo ter uma regularidade porque não tenho um espectáculo ou um “número” montado, pré-concebido. Vou tourear consoante o que o toiro dá. Improvisar é das coisas mais bonitas que há e sou um toureiro que funciona muito por emoções. Considero-me um artista que um dia faz magia e noutro dia não consigo ser mágico. Como lida com isso?É duro! A minha vontade é dar o máximo. Gostava de ter uma carreira regular. Há alturas em que em praças de menor importância tenho êxitos brutais e quando chego a praças importantes as coisas não correm bem. As pessoas esperam muito de mim e quando pagam o bilhete para me verem a imagem que levam é a de um João Salgueiro no seu melhor. Quando isso não acontece é um semifracasso. As pessoas não se satisfazem com pouca coisa. Só usa bandarilhas azuis e brancas porquê?Porque é a cor da casa. Já eram as cores da coudelaria do meu trisavô. São as minhas cores preferidas. É uma questão de homenagem à tradição da minha família.Como é que vê o facto de a idade com que se tira a alternativa ser cada vez mais baixa?Hoje é tudo muito rápido. Aparecem a tourear e em pouco tempo tiram a alternativa. Antes demorava-se muito mais tempo. Agora a alternativa está transformada mais numa festa. Perdeu a importância que devia ter e está um pouco banalizada mas quero continuar a dar importância à alternativa. Em 2007 no Campo Pequeno saltou do cavalo e foi enfrentar o toiro a pé sendo colhido. O que lhe passou pela cabeça para fazer um acto destes que podia ter-lhe custado a vida?Foi um impulso. Uma situação que aconteceu e da qual não me arrependo. Quanto à morte não penso nisso. Temos que a enfrentar com naturalidade e basta levantarmo-nos de manhã para podermos morrer.

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