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Uma profissão com mais stress do que a de treinador de futebol

Uma profissão com mais stress do que a de treinador de futebol

Taxistas de Alverca contam histórias de quem ganha a vida ao volante

São muitos quilómetros como motoristas e confidentes os que já percorreram, sentindo o pulsar da vida de uma comunidade através dos clientes que transportam e das histórias que trazem consigo. São veteranos do asfalto a quem não faltam cicatrizes na pele ou no espírito resultantes de uma actividade de risco onde não há dois dias iguais.

“A gente aqui vê de tudo, meu amigo. É uma profissão com mais stress do que a de treinador de futebol”, afirma Tomás Mota Dias, 66 anos de idade e 32 anos de praça nos táxis de Alverca, um veterano do asfalto com feridas de guerra para mostrar e tudo: “Já fui três vezes assaltado: uma vez fui agredido, levei 4 pontos no pescoço, encostaram-me uma faca às sete da manhã de um sábado de Ramos em Vialonga e outra vez foi ao meio dia no Bairro da Torre, em Camarate”, recorda com exactidão, um sinal claro de que tão cedo não se vai esquecer desses episódios. “Isto já foi há uns bons dez ou doze anos, numa altura em que havia por aqui muito assalto por causa de uma discoteca que havia ali no Bom Sucesso. Agora está tudo mais calmo”, afirma. Se há pessoa certa para nos dizer tudo o que se passa numa cidade, para saber quando, como e onde se passa o quê, essa pessoa é o motorista de táxi. Ser taxista é calcorrear o quotidiano dos outros sem parar, noite e dia, atento aos pormenores que fazem a diferença nos caminhos que se conhecem de cor, sentindo o pulsar da vida das populações que transportam pelas histórias que trazem consigo na bagagem. Tomás não foi o único taxista a ser assaltado, longe disso. Na verdade praticamente todos os profissionais que frequentam a praça de Alverca já passaram por situações do género. “Olhe, a mim até me levaram o carro, um Audi novinho que ainda estava em rodagem”, conta António Manuel Carvalho, outro veterano com cerca de 40 anos de praça e que também já sentiu na pele a insegurança e o risco da profissão. “Apanhei dois indivíduos que me mandaram seguir para o Porto Alto e pelo caminho um deles começa a dizer que está mal disposto, está mal disposto, pede-me para encostar e eu encostei. Saíram um por cada porta e pediram-me para ajudar… Assim que eu saí entraram os dois e arrancaram com o carro. E ali fiquei eu parado e com cara de parvo”, recorda. Histórias não faltam a estes profissionais. Queixam-se dos contras do ofício, de como esperam horas e horas na praça para serem chamados para um serviço pequeno para depois voltarem à praça e terem oito ou nove colegas à frente. Dos clientes que não esperam e falham as marcações. Queixam-se do trânsito, claro, dos condutores aselhas e do stress provocado pelas longas horas de pára-arranca, em filas intermináveis. E queixam-se dos clientes que fogem sem pagar, coisa que a acreditar no testemunho geral acontece a todos, como uma praga. “Já fui uma vez daqui para Albufeira, de Albufeira para o Porto e do Porto para Lisboa e nunca vi um tostão desse serviço, veja bem! E não era um tipo qualquer, era um homem que era embaixador do Zaire na Espanha, o Sr. Cabanga, nunca mais me esqueci, fui à embaixada, corri ceca e meca, fui a todo o lado e nada. Até hoje”, desabafa Tomás, que reconhece também ter tido bons clientes, fixos durante muitos anos e até algumas figuras públicas para enfeitar as recordações: “Por exemplo, o Mantorras era meu cliente, andava sempre com ele para baixo e para cima. E não só, houve muito jogador da bola, políticos, um pouco de tudo nestes anos todos”, resume.Uma história com 65 anosA história dos carros de aluguer para serviço de passageiros em Alverca tem 65 anos. Foi em 1949 que veio o primeiro táxi para o serviço da então vila, um Chevrolet conduzido por José Tarré (ver caixa) que fez muitos e bons anos sem parar. “A praça de táxis era na altura onde hoje fica o edifício Europa, onde era o Brilha”, conta António Carvalho, que recorda uma Alverca completamente diferente: “Só havia três automóveis em Alverca nessa altura, já vê como tudo mudou, hoje o trânsito dá cabo da gente, há tanto carro que não há onde os pôr”, comenta, sempre de boa disposição.Na falta de serviço, que teimava em não aparecer, a nossa conversa estendeu-se por um bom par de horas e as histórias continuaram a rolar, soltas na memória. Dos assaltos e dos caloteiros estávamos conversados, do trânsito também, faltava o picante das aventuras amorosas com a clientela. Sim ou não? Acontecia ou nem por isso? Tomás Dias resolveu a situação e chegou-se à frente com a lembrança de uma história antiga: “A minha mulher sabe, que eu contei-lhe, por isso não tenho problema em contar-lhe a si… Houve uma altura que tinha aí uma rapariga como cliente que depois já não me largava, sempre de roda, sempre de roda. Mas eu acabei com aquilo, pois ela queria era ir todos os dias à borla para Lisboa”, confessa para despedida.O pioneiro dos taxistas de AlvercaAos 94 anos, é justo dizer-se que José Ferreira Tarré ainda está para as curvas, literalmente. Todos os dias a sua figura inconfundível pode ser vista nas imediações da praça de táxis, onde parou durante tantos anos, quando pela manhã vai buscar o seu jornal e dar dois dedos de conversa aos seus ex-colegas e amigos de sempre. Afinal José Tarré foi o primeiro de todos no ofício de motorista de táxi em Alverca, já lá vão 65 anos. “Quando comecei a trabalhar só havia três automóveis particulares em Alverca, veja bem, um era do Dr. Eduardo Vieira, médico e delegado de saúde da altura, outro do José Lopes da Formigueira, que tinha um Oldsmobile, e o outro era um Chevrolet de um homem que era oficial de diligências”, recorda com notável lucidez, olhar perdido no passado onde vai buscar esta e outras recordações. Eram os anos difíceis do pós-guerra e até 1950 trabalhou sozinho na praça de Alverca: “Sabe, entre 1939 e 1945 não foram passadas carteiras profissionais a ninguém, não havia combustível, não havia pneus… Era só eu aqui para o trabalho que aparecia, recordo-me que tinha para levar todos os dias três, quatro indivíduos para a Praça da Figueira em Lisboa, esperava lá por eles e trazia-os de volta por 20 escudos por cabeça. Isto quando o gasóleo era a 26 tostões o litro e um carro bom custava 50 contos”, conta, exibindo com particular orgulho a sua carta de condução, que tem o número 45.547. E que ainda usa, já que todos os dias conduz a sua viatura particular para se deslocar para a sua actividade actual. “Sou agricultor. Tenho uma propriedade ali na lezíria de Vila Franca de Xira, ao pé do Gado Bravo, onde tenho melões, cevada, aveia, e quase todos os dias vou para lá, é o meu trabalho”, afirma, sorridente. A boa disposição foi aliás uma constante durante toda a conversa com O MIRANTE: “Eu não estou velho, estou velhíssimo. Mas é natural que eu chegue aos 100 anos, afinal a minha mãe faleceu com 104. Eu estou um bocadinho surdo, mas fora isso sinto-me bem. Olhe: vou vivendo!”.
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