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Violência sobre as mulheres ainda é vista com uma certa naturalidade

Violência sobre as mulheres ainda é vista com uma certa naturalidade

Foi a primeira mulher a liderar o Círculo Cultural Scalabitano e durante 25 anos dirigiu a Escola Secundária Ginestal Machado, em Santarém. Nesta conversa aberta e transversal, Maria Antónia Costa fala sobre a condição feminina, a igualdade de género, o ensino e sobre Santarém, a cidade da sua vida.

João Calhaz/Ana Isabel BorregoFoi a primeira e até agora única presidente do Círculo Cultural Scalabitano, entidade que completou 60 anos de existência em 2014. Isso é uma prova de que os homens continuam a prevalecer nos cargos de decisão ou foi mera casualidade? Penso que essa situação decorreu do facto de, durante muitos anos, os homens serem os senhores. As senhoras tinham menos acesso à cultura, ao ensino e, portanto, sentiam-se mais retraídas a entrar nesses cargos. E os senhores se calhar também não gostavam muito de as ver lá... Felizmente tínhamos um presidente no Círculo (n.d.r. Pedro Canavarro) que tratava homens e mulheres por igual. E meteu na cabeça que quando saísse, em 2000, devia ser uma mulher a suceder-lhe. Fui eu. Sente que as coisas têm mudado nesse campo nas últimas décadas? Evidentemente que têm mudado. A mulher tem muito mais acesso a tudo. Felizmente estive sempre em sítios onde não me confrontei com essa situação. Mas reconheço que em certos casos as mulheres são um pouco postas à margem e é preciso realmente serem muito boas, ou terem um grande poder de argumentação, para ascenderem a alguns cargos.Sente que foi mais difícil comandar o barco do Círculo Cultural Scalabitano por ser mulher ou sentiu-se sempre apoiada? Foi exactamente a mesma coisa. Ia quase todos os dias ao Círculo, o que me fez criar uma enorme ligação e habituação com os elementos que lá iam regularmente. Estava lá todos os dias e criei uma boa relação com eles e por isso ninguém sentiu diferença por haver uma mulher presidente.O sistema de quotas para garantir um mínimo de mulheres nas listas partidárias ainda faz sentido? Não devia fazer, mas penso que ainda faz um bocadinho de sentido. Porque se não fossem essas quotas o número de mulheres na política não seria tão elevado. Acho que os homens continuariam a predominar de forma mais acentuada, porque os mais novos, apesar de terem as ideias mais alargadas, têm só até certa medida...Hoje há mais violência sobre as mulheres ou há mais informação sobre esses casos? Também me interrogo sobre isso. Antigamente tínhamos menos informação. Mas provavelmente hoje é capaz de haver mais casos também devido a essa sobrecarga de informação. Quem faz isso tem a cabeça fraca e se calhar é influenciado pelas notícias.A nossa sociedade ainda é demasiado permissiva nesse campo? Penso que sim e penso que nas camadas mais jovens também existe esse tipo de violência. Mesmo na escola assiste-se a cenas em que os jovens são um bocadinho violentos em relação às raparigas. Essas situações ainda são vistas com uma certa naturalidade. Parece que uma mulher levar uma bofetada ou um encontrão de um homem não é uma coisa muito grave...Alunos de hoje são demasiado protegidos pelos paisQual é o seu maior amor: a escola ou o CCS? O meu maior amor é a escola, sobretudo a Ginestal Machado, onde estive durante quase toda a minha vida profissional. Achei que eu e os outros professores tínhamos potencialidades para mudar a escola, que até ao 25 de Abril de 1974 tinha o cariz de escola industrial e comercial. Mas gosto também muito do Círculo. São dois grandes amores, um deles é um bocadinho maior que o outro.Dos 25 anos à frente da Escola Secundária Ginestal Machado qual foi o melhor momento? Estive dois anos como vice-presidente com dois homens que eram muito capazes e trabalhadores. Tudo o que sabiam ensinavam e eu consegui captar. Por isso não foi difícil quando tive que gerir o barco. Creio que fui um dos rostos que conseguiu que a escola alcançasse o prestígio que tem hoje. Penso que fui importante para a transição de escola industrial para escola secundária.E o pior momento? Um dia em que havia exames nacionais e houve uma ameaça de bomba, sem que eu desse por isso. A polícia chegou e disse-me que tinha que sair do meu gabinete, pois era a única pessoa ainda dentro do edifício já que a escola tinha sido evacuada. Foi um momento complicado e eu sabia que a consequência seria a repetição dos exames. No entanto, conseguimos salvaguardar os exames, não saíram para o exterior, e não foram precisos novos exames para as provas.Quais são as principais diferenças entre os alunos de hoje e os alunos de há 30 anos? Quando entrei na Ginestal Machado os alunos eram respeitadores. Faziam as suas asneiras, escondiam os livros de ponto no telhado, entre outras coisas, mas não havia maldade. O tempo foi avançando e as brincadeiras deixaram de ser ingénuas e sem consequências. Os alunos tornaram-se mais complicados e hoje são um bocadinho mais difíceis de aturar. São muito senhores do seu nariz, são demasiado protegidos pelos pais e isso faz a diferença.O professor ainda é uma figura de autoridade ou tem perdido força? Tem perdido força porque estas leis consecutivas fizeram diminuir um pouco a força dos professores. No entanto, nós, professores, também tivemos muita culpa de termos chegado a esta maneira de se ver hoje o professor. Ter um curso universitário ainda é uma mais-valia para os jovens ou já não vale a pena? A nível de emprego não sei se compensa, mas vale sempre a pena pelos conhecimentos que se adquirem. Os jovens interessam-se pelos estudos? Existem muitos bons alunos, depois há os medianos e há uma grande faixa que não é muito estudiosa. Não estão muito motivados, sobretudo os alunos de cursos profissionais são muito difíceis. Nunca tive turmas de alunos profissionais mas verificava-se que eram difíceis. Quando eram chamados ao conselho directivo eram alunos com quem tinha uma certa dificuldade em dialogar. Mas não são só os alunos dos cursos profissionais, também há outros...Cresceu com os reclusos da cadeia de AlcoentreMaria Antónia Costa nasceu a 3 de Março de 1949 em Manique do Intendente. O pai era natural dessa freguesia do concelho de Azambuja e dirigente da prisão de Alcoentre. De sua casa conseguia ver o gabinete de trabalho do pai, uma vez que a prisão ficava do outro lado da estrada. Na infância estava regularmente com os presos. Comia do rancho deles e dentro da cadeia jogava à bola, matraquilhos e também brincavam às bonecas e aos tachos. Era a única pessoa do sexo feminino naquele ambiente masculino, com mais de 500 presos, e garante que essa experiência a ajudou mais tarde, sobretudo na sua vida profissional. “Em criança podia falar com todos os reclusos, só havia uma coisa que o meu pai me proibia de perguntar que era o que é que tinham feito. De resto podíamos falar de tudo”, recorda.Foi fazer a terceira classe com o irmão na escola em Santarém, onde tinham família. A sua mãe é da zona de Pernes, concelho de Santarém. Aos fins-de-semana regressavam a Alcoentre, onde viveram até aos seus 16 anos, altura em que o pai faleceu e instalaram-se definitivamente em Santarém. Solteira, vive com a mãe e está reformada desde 2011. Licenciada em Românicas, foi directora da Escola Secundária Dr. Ginestal Machado, em Santarém, durante 25 anos. Saiu do conselho directivo em 2007, tendo ficado a dar aulas durante mais três anos. Nessa altura decidiu reformar-se. No entanto, não conseguiu desligar-se da escola, onde vai três vezes por semana ajudar na biblioteca e no jardim.Esteve na direcção do Círculo Cultural Scalabitano durante vários anos. Começou por acaso. Um dia encontrou o director da Orquestra Típica Scalabitana na altura, Armando Paulo, que lhe disse que iam mudar a direcção, que estavam à procura de pessoas novas e de quadrantes diferentes. Pediram-lhe que fosse à reunião. Aceitou mas uma crise renal impediu-a de estar presente. Foi à reunião na semana seguinte, onde a informaram que tinha sido eleita vice-presidente. “Nem tive oportunidade de dizer que não. Só tive que me fazer sócia do Círculo e começar a trabalhar”, recorda com um sorriso.No ano 2000 tornou-se a primeira mulher presidente do CCS, sucedendo a Pedro Canavarro. Confessa que os primeiros momentos não foram fáceis uma vez que não havia dinheiro, as secções estavam desligadas e não trabalhavam em conjunto. Quando chegou deixou de haver contas separadas e juntaram todas as secções num grupo apenas. Fizeram uma candidatura a fundos comunitários e conseguiram restaurar o Teatro Taborda, onde funcionam as actividades do CCS. E nem o incêndio que destruiu parte do edifício os fez desistir dos seus projectos. Saiu em meados de 2007 e desses tempos guarda boas memórias e elogia a boa relação que criou com muita gente.Apesar de não ser militante teve ligação ao Partido Socialista. Esteve na Assembleia de Freguesia de Marvila, depois de ter aceitado o convite de Jaime Figueiredo para fazer parte da sua lista. Integrou a comissão de cultura durante a vereação de Graça Morgadinho, na presidência do antigo presidente da câmara municipal, Ladislau Teles Botas. Fez ainda parte das comissões concelhias das campanhas de Mário Soares e Jorge Sampaio à Presidência da República.População de Santarém devia participar mais na vida da comunidadeSantarém celebrou dia 19 de Março mais um feriado municipal. Qual era a melhor prenda que a cidade podia ter recebido? Uma das prendas que podia receber era uma solução que pusesse fim a este sobressalto que se vive na cidade com as barreiras. Definitivamente, os governos deviam arranjar uma solução. E depois, a nível cultural também estamos um bocadinho desfalcados. Há necessidade de mais dinamismo, um impulso, que se criasse qualquer coisa, que se juntassem as associações, que se arranjasse uma maneira de as pessoas colaborarem mais. As associações culturais até vão organizando eventos e dinamizando actividades... Sim, mas tem que se arranjar uma maneira de chamar as pessoas, de as levar a participar. Porque quase sempre encontramos as mesmas pessoas nas coisas. E isso é há anos sem fim. E já estamos a ficar velhos, não conseguimos ir a tudo (risos)...A cidade viveu na década passada alguns anos em festa, com a realização de múltiplas actividades que romperam com a rotina. Desses tempos em que Moita Flores foi presidente da câmara ficaram a passagem de ano e as Festas de São José. Gostou dessa época? Gostei. Apesar de não ser muito da cor do Dr. Moita Flores achei que ele fez alguma coisa. Mas também acho que houve excessos, como dar bilhetes às pessoas para as touradas e outros eventos. A cultura não pode ser feita assim. Tem que haver coisas boas e para todos os níveis, para as várias camadas da sociedade.Moita Flores deixou-lhe saudades enquanto autarca? Pessoalmente dei-me sempre bem com ele. Como autarca acho que não foi assim tão bom como se esperava, porque quando ele chegou era tudo maravilhas. Ninguém lhe tira os conhecimentos e o saber, mas não conseguiu rentabilizar aquilo que disse e aquilo que pensava fazer. As circunstâncias também eram difíceis, pois a câmara teve desde sempre um grande problema financeiro, que já existia mas que ele agravou. A cidade hoje está bem entregue? Acompanha o que vai fazendo o actual executivo camarário? Sim, acompanho. O Dr. Ricardo foi aluno da Escola Ginestal Machado, é muito simpático. Algumas vereadoras também foram minhas colegas. O vereador Carmo foi meu aluno. Acho que a câmara está bem entregue mas a dívida é muito grande e eles, mesmo que queiram, não sei se conseguirão fazer aquilo a que se propõem.Há quem diga que a cidade apresenta um ar desleixado, desmazelado. Sim, a cidade para mim está um bocadinho feia. As Portas do Sol já não são um jardim, são meia dúzia de árvores que ali estão. Foi um erro a intervenção naquele jardim, que hoje já não o é. Também não gosto do Jardim da Liberdade. Acho-o um espaço muito grande e as estradas em redor muito estreitas. Havia ali muito espaço para reduzir o jardim e assim dava para todos. Santarém tem tido bons autarcas ao longo destes 40 anos de poder local democrático? Podem não ter sido os melhores, mas talvez não se tenham rodeado das pessoas mais indicadas. Para mim, o melhor presidente de câmara foi Ladislau Teles Botas, um homem extraordinário, simpático, acessível, sempre pronto a resolver as coisas.Santarém ainda merece o título de capital do Ribatejo? Então não merece (risos)?! Nós que vivemos cá temos sempre tendência para dizer que as coisas não estão bem, mas apesar disso Santarém é uma cidade simpática, com muito património.
Violência sobre as mulheres ainda é vista com uma certa naturalidade

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