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O medo que impedia a mudança no Estado Novo ainda não desapareceu do quotidiano

O medo que impedia a mudança no Estado Novo ainda não desapareceu do quotidiano

Filha de Humberto Delgado apresentou livro de memórias no Museu do Neo-Realismo

Filha do “general sem medo” esteve em Vila Franca de Xira a apresentar um novo livro de memórias sobre Humberto Delgado. Recusou falar sobre como soube da notícia da morte do pai e que sentimentos nutre por Rosa Casaco, o agente da PIDE que chefiou a brigada que lhe assassinou o pai.

O medo que impedia a mudança nos tempos da ditadura do Estado Novo ainda não está resolvido em Portugal e ainda se vive um clima de auto-censura que impede as coisas de mudar: medo de perder o emprego, de ficar sem dinheiro, de falar abertamente sobre temas controversos, de mudar e arriscar. Esta foi uma das principais conclusões resultantes da apresentação do novo livro de memórias de Iva Delgado - filha de Humberto Delgado, o “general sem medo” que lutou pelo derrube do regime de Salazar -, no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira.Iva, uma das filhas do general, recusou falar dos pormenores envolvendo o dia e a forma como soube da morte do pai, bem como dos sentimentos que nutre por Rosa Casaco, o agente da polícia política (PIDE) que chefiava a brigada que assassinou Humberto Delgado, em 1965.Ao invés, carregou na tónica do medo. “A partir do momento em que o meu pai decidiu afrontar Salazar a vida tornou-se muito dura. Passámos a viver num clima de medo. Telefonemas a toda a hora, ameaças, a PIDE a vigiar a casa e a nossa vida a toda a hora, era mau”, recordou.Iva Delgado ironizou que passou a odiar Salazar a partir do momento em que este deu a Humberto Delgado uma boneca para uma das irmãs que fazia anos. Como Iva não recebeu nenhuma boneca passou a detestar o ditador. Escondia-se na cozinha a ouvir as conversas do pai e sabia que algo de muito complicado para a sua família estava para chegar. Acompanhou o pai na campanha eleitoral - Santarém foi o distrito onde Humberto Delgado alcançou a melhor votação no todo nacional (35,6%) - e estava numa sala ao lado da conferência de imprensa onde Delgado proferiu a célebre frase “obviamente demito-o”, referindo-se a Salazar. “Dizem que foi uma pergunta encenada mas francamente não acredito. O meu pai era uma pessoa que fazia o que queria, não o que os outros queriam ouvir”, disse. Notou que Salazar só tinha medo de um homem e que esse homem era Humberto Delgado. “Porque sabia que qualquer ditador só cai pela força das armas. E o meu pai era essa força”, vincou.As maiores memórias de Iva prendem-se com o lado afectivo do pai, quando era pequena e o acompanhava pela mão nos passeios pela rua, que Humberto Delgado classificava de “passeio da honra”. Apesar de ter nascido no Boquilobo, Torres Novas, o general sem medo viveu durante alguns anos da sua juventude em Vila Franca de Xira, onde o pai era militar e uma pessoa respeitada pela comunidade. O livro foi apresentado por Maria da Luz Rosinha, ex-presidente do município. “É a história de uma família que estava apoiada ao regime, uma família sem dificuldades que, de um momento para o outro, se vê a braços com uma mudança radical”, frisou.Para Maria da Luz Rosinha o livro é um relato de medo. “O medo está aqui muito presente, como está hoje em dia. O medo é um problema que ainda não está resolvido entre nós”, lamentou.Os poemas de O’Neill e os receios do namoradoIva Delgado recordou quando, em plena campanha eleitoral de 1958, acompanhava o pai e ao mesmo tempo se correspondia com um namorado. As coisas não estavam bem porque a família do rapaz não gostava que este se encontrasse com alguém que estava a desafiar o regime e podia acabar na prisão. Iva escrevia ao namorado para este não ter medo e mover-se pela mudança. “As coisas têm de mudar, tens de lutar. Se não lutas como podes ser o meu amor?”, perguntava. Para a filha do general o seu poeta favorito é Alexandre O’Neill, tendo recordado o “Poema pouco original do medo”.A tristeza de ver estátuas degradadasO nome de Humberto Delgado está espalhado por todo o país, dando nome a ruas, avenidas, largos e praças. Há estátuas e bustos em diferentes localidades. O monumento em Villanueva del Fresno, que marca o local onde foi encontrado morto, está degradado. A filha, Iva, admite que é preciso fazer algo que o recupere, mas notou durante a sessão que mais preocupante que isso são as estátuas degradadas e votadas ao abandono que vai encontrando pelo país. “Ver o monumento sem cuidado não me aflige tanto como ver uma estátua ao abandono no meio de uma cidade”, lamentou.
O medo que impedia a mudança no Estado Novo ainda não desapareceu do quotidiano

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