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No Fatias de Cá participo na gestão, faço comida e sou actriz quando é necessário

No Fatias de Cá participo na gestão, faço comida e sou actriz quando é necessário

Alexandra Carvalho é antropóloga, hipnoterapeuta, gestora e actriz no Fatias de Cá

É licenciada em antropologia com pós-graduação em gestão de recursos humanos, viveu a infância em Moçambique onde volta regularmente, deixou o ensino, contrariada, para não perder um casamento que acabou por perder na mesma, profissionalizou-se como hipnoterapeuta clínica, é a mais velha de quatro irmãos, sendo o mais novo, Bruno, presidente do Sporting Clube de Portugal e integra a companhia de teatro Fatias de Cá, de Tomar, fazendo tudo o que é preciso fazer, desde limpeza, cozinha, bilheteira e representação.

Que importância tem para si integrar um grupo de teatro como o Fatias de Cá? Como se iniciou essa relação? Fui ver uma peça a Tomar. Tudo começou aí. Foi há oito anos. Depois foi-me pedido que tratasse de uma documentação relativa à actividade do grupo. Tempos mais tarde, faltava uma pessoa que deveria fazer determinado papel e sou convidada a actuar. Foi um percurso muito interessante.Nunca tinha feito teatro? No Fatias de Cá faço o que é necessário fazer. Lavo o chão, ajudo a preparar a comida, participo na gestão e sou actriz quando é necessário ser actriz. Eu pensava que fazer teatro era fingir. Hoje sei que não é assim. Um dia disseram-me que dali a três horas iria representar. Foi uma brincadeira que depois se tornou séria. Fui aprendendo e eu gosto muito de aprender. Como encara a representação? Representar é uma possibilidade gigante de perceber o outro embora nunca o consigamos perceber totalmente. É ter mais uma ferramenta de compreensão deste mundo. De compreensão das emoções, das várias formas de ver e de estar. Por vezes é avassalador. Além disso, mesmo que não sejamos muito bons os fatos são maravilhosos. E há o convívio. (riso) Também implica exposição. Gosta de se expor? É mais um esforço. A coisa pior para mim são os agradecimentos no final. Ir receber os aplausos. Se eu pudesse fugir...é muito estranho para mim. Ainda hoje não estou muito à vontade nessa altura.Precisa de companhia no dia-a-dia? Consegue ir ao cinema sozinha, por exemplo? Preciso das duas coisas. Preciso de fins-de-semana de meditação. De tempo para escrever. Nessas alturas não me apetece falar com ninguém. Adoro. E também adoro conviver. Gosto das duas coisas.Todos os papéis que tem representado são do seu agrado? Sinceramente não sei que papéis preferia. Não tenho qualquer ambição ou desejo especial de ser esta ou aquela personagem. Há papéis mais aliciantes, reconheço. Há alguns que exigem mais introspecção. Há personagens que, de tão diferentes que são de nós, exigem muito. Ultimamente têm-me calhado alguns papéis difíceis.Qual foi o mais difícil até hoje? Este que estou a fazer agora, da Goneril, a mais velha das três filhas do Rei Lear, que o Fatias de Cá está a apresentar no Palácio Fronteira em Lisboa. Ter que sentir tudo aquilo. Ter que dizer e fazer tudo aquilo. Arranco olhos...durante os ensaios até me saltava o coração. É tudo muito desafiante.Numa das peças do Grupo “O Nome da Rosa”, que era representada no Convento de Cristo em Tomar, há uma breve cena de nudez que desenrola numa zona onde os espectadores estão, literalmente, em cima dos actores. Se lhe pedissem para fazer essa cena... Pergunte-me lá quantas vezes a fiz...Para uma pessoa que diz que lhe apetece fugir quando chega a altura de receber os aplausos... Não é que tenha medo de receber aplausos. É uma sensação de desconforto... Como foi desnudar-se perante estranhos que estão a um ou dois metros de si? Foi difícil. Muito difícil. Eu nem queria acreditar que aquilo me estava a acontecer. Muito, muito difícil. São alguns segundos mas praticamente ninguém quer fazer aquele papel. Preparou-se? Não tive tempo. Estava a ajudar na cozinha e o encenador chega e coloca o problema. Não tinha ninguém. A actriz que era para fazer não tinha vindo. As outras possibilidades estavam esgotadas. São só dois segundos, disse-me ele. Faltou-me o ar mas acabei por aceitar em nome do grupo.Se tivesse o seu filho ou a sua filha a assistir? Naquele dia eles não estavam mas assistiram à cena noutras representações, sabendo antecipadamente o que se ia passar. O que lhe disseram? Mãe, és muito especial.Nunca se candidatou a nenhum casting para televisão, cinema ou teatro? Nem depois deste tempo no Fatias de Cá? Já me propuseram algumas coisas mas não aceitei. Mais importante que representar é participar no todo. É o grupo que me fascina. É conseguirmos, em conjunto, pôr uma coisa de pé, desde a dramatologia ao texto, passando por cozinharmos, servirmos as refeições, vender-mos bilhetes, sermos amáveis para os espectadores e ouvirmos o que eles nos têm para dizer...Gosta de algum actor de teatro ou de cinema em especial? Gosto mais de ver cinema do que ver teatro mas não tenho nenhum actor preferido. Conheci alguns actores por ter trabalhado numa produtora de cinema. Gostei muito do Bruce Willis, por exemplo. É uma pessoa atenciosa. A maioria dos actores acaba por não ser muito amável mas alguns conseguem ser adoráveis. Como é o convívio no Fatias de Cá, com outros actores amadores? Há muita coisa para aprender com toda a gente. Tenho aprendido a gostar de coisas que nem sequer conhecia. Tenho adquirido outras perspectivas de vida...eu sei lá. Nunca pensei que a frase do Sócrates, “Só sei que nada sei” fosse tão avassaladora. Toda a gente a cita por ser uma frase bonita mas contém um conceito muito profundo. Como é o encenador Carlos Carvalheiro? Genial. De uma criatividade extraordinária. Raramente temos oportunidade de conhecer uma pessoa que trabalha tanto, tanto, tanto e com tanta paixão. Por vezes enerva-se quando as coisas não saem como ele quer... e não saem logo à primeira. Há quem se ofenda mas são muitos mais os que o compreendem e aprendem.A irmã mais velhaAté ao final do ano, Alexandra Carvalho é Goneril, a mais velha das três filhas do Rei Lear, que o Fatias de Cá está a apresentar no Palácio Fronteira em Lisboa.Diz que vive um pouco por todo o lado embora a sua residência habitual seja Lisboa, onde nasceu. Alexandra Carvalho viveu a infância em Lourenço Marques, actualmente Maputo, local para onde o pai, engenheiro hidráulico civil, foi trabalhar. A mãe era professora de matemática, ela é a irmã mais velha dos quatro irmãos, o mais novo dos quais é o actual presidente do Sporting Clube de Portugal, Bruno de Carvalho. A família regressou de África a seguir ao 25 de Abril. Alexandra licenciou-se em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa e ainda antes de terminar a licenciatura já estava a dar aulas. Deixou de ser professora mas diz que o motivo não foi ter um filho pequeno e ter sido colocada no Minho. “O pai dos meus filhos disse-me que provavelmente o casamento acabava se eu aceitasse”, explica.Quando era pequena queria ser missionária. Depois de regressar de Moçambique desistiu da ideia ao sentir o peso da igreja católica. Ainda quis ser jornalista mas uma breve experiência de trabalho no Expresso e o contacto com o trabalho dos jornalistas fizeram-na mudar de ideias. “Aquilo era muito difícil. Não podiam escrever o que queriam. Cortavam-lhes as coisas. Tinham que guerrear por entrevistas. Eu não tenho espírito de competição. Pensei que antropologia é que era. Podia andar pelo Mundo, escrever para jornais...fazer tudo, descobrir as pessoas. Foi o curso da minha vida”, desabafa.Passou dois anos de grande angústia e sofrimento a acompanhar um grave problema de saúde da filha. Ganhou outra força e outra sabedoria. Estudou para a ajudar e com o que aprendeu ajuda outros. É hipnoterapeuta e dá conferências. Escreve sobre antropologia e pensa publicar um livro. É consultora de gestão e investigadora. Pelo meio ajudou a fundar e operacionalizar uma empresa de produção e distribuição de cinema e foi sua vice-presidente executiva. Um dia foi ver uma peça de teatro do Fatias de Cá, de Tomar, e acabou por se juntar ao grupo. É uma actividade que não dá dinheiro mas que dá saber e prazer. Ajuda em tudo o que pode e não recusa nenhuma tarefa. O encenador, Carlos Carvalheiro, pô-la a representar e ela tem dado conta do recado. Agora é Goneril, a mais velha das três filhas do Rei Lear, que o Fatias de Cá está a apresentar no Palácio Fronteira em Lisboa. A primeira vez que foi “empurrada” para a frente do público foi para uma breve cena em “O Nome da Rosa” em que teve que se despir.Os filhos Bruno Manuel e Ana Sofia, apoiam-na. Quando quer ouvir um elogio diz que procura o pai. Confessa que, apesar de ter um temperamento conciliador e calmo, também se zanga... “mas é só de dois em dois anos”. Quanto ao irmão mais novo diz que ele chegou onde sempre quis chegar. “O meu irmão Bruno viveu desde pequeno a sonhar com isto. Tirou o curso de treinador e tirou o curso de gestão, sempre a pensar no Sporting”.“Eu não faço hipnose para divertir audiências mas para ajudar pessoas”É hipnoterapeuta. Como é que se aprende a fazer hipnose? A hipnose não é aquela coisa de palco em que o hipnotizador convence as pessoas a fazer alguns disparates para divertimento de uma audiência. A hipnose é uma meditação guiada mais profunda. Em noventa por cento dos casos a pessoa lembra-se de tudo. Só não se lembra de tudo porque sob hipnose o consciente relaxa e o nosso inconsciente que está carregado de saberes e experiências tem muita informação para nos dar. A hipnose permite a construção de caminhos neuronais. Quando alguém está sob hipnose em vez de ir pelos caminhos neuronais do costume vai por aqueles que mais deseja. Não se controla a pessoa a cem por cento? Não. Qualquer um de nós, mesmo numa hipnose profunda, pode pará-la. Claro que, se a empatia entre hipnotizador e hipnotizado for grande, a pessoa está entregue mas é preciso uma pré-disposição. O trabalho maior é da pessoa que está sob hipnose.O seu trabalho é ajudar as pessoas a encontrar caminhos? Toda a gente tem sabedoria. A meditação e depois a hipnose permitem que se solte essa sabedoria que todos possuem. Cada um de nós é mais sabedor do que aquilo que pensa.“O meu irmão Bruno inscreveu-nos no Sporting quando nasceu o meu filho mais velho”Estamos a conversar há mais de meia hora e ainda não parou de sorrir. Temos que enfrentar a vida a sorrir? Já chorei muito na vida, principalmente quando a minha filha esteve muito doente. Por vezes já não conseguia chorar mais. Há alturas para tudo.Lembra-se da última vez que chorou? Foi a ver uma reportagem sobre Angola. Há uma família numerosa e a mais nova dos irmãos, uma menina de dois ou três anos faz todos os dias vários quilómetros para ir buscar pão. Quando o jornalista lhe pergunta porque anda sempre sorridente, apesar das dificuldades, ela responde de uma forma muito comovente: “Porque decidi!”. Não consegui evitar as lágrimas.O que pensa das touradas? Todos os mamíferos têm córtex e como tal têm emoções. Eu imagino que haja toiros que gostam daquilo. Concerteza. Se há homens que gostam de guerra também deve haver toiros que gostam de guerrear. Mas eles não falam para dizer se querem ir a jogo ou não, por isso tenho alguma dificuldade em aceitar as touradas.É irmã do actual presidente do Sporting, Bruno de Carvalho. É sócia do clube? Inscreveu-se quando ele assumiu o cargo? O meu irmão inscreveu-nos a todos como sócios do Sporting, no dia em que o meu filho mais velho nasceu. Inscreveu-o a ele e inscreveu-nos a todos. Ele faz hoje (22 de Outubro) 27 anos. Sou sócia do Sporting há 27 anos. É o seu irmão que lhe paga as quotas? Não, isso não. Pago-as por débito directo. O que acha do sexo tântrico? Imagino que deva ser muito bom. Nunca experimentei mas parece-me uma coisa com amabilidade, elegância e tempo suficientes para merecer ser experimentada. Quando tiver ocasião vou experimentar. Astrologia não faz parte dos seus interesses? Não. Por vezes espreito os horóscopos. Se são boas notícias, óptimo. Se não são, digo que aquilo é uma palhaçada e sigo. Sei que sou Carneiro com ascendente em Aquário.É vegetariana? Alguma vez pensou nisso? Não sou vegetariana. Tendo a afastar-me de tudo o que são fundamentalismos.O nome Costa diz-lhe alguma coisa? Tenho um colega que faz teatro connosco que é o Costinha! Brincadeira à parte, é óbvio que o nome Costa não me é desconhecido. Eu gosto do meu país e preocupo-me com ele, embora quando eu diga o meu país seja uma coisa de antanho porque acho que somos mais abertos que isso. Esta coisa do meu e do teu faz-me alguma confusão. Também acho extraordinário tantos desejos de independência no Mundo, aqui e ali. Eu considero que quanto mais unidos melhor. Apesar de tudo é muito interessante ver como as pessoas procuram soluções; mexem num lado e mexem no outro e mentem daqui e dali. Às vezes nem sabemos se eles acreditam naquilo que dizem.Também tem alguma contribuição por débito directo para alguma organização tipo UNICEF, por exemplo? Não tenho mas gosto de ajudar. Fiz um grupo de teatro na Vitae (Associação de Solidariedade e Desenvolvimento Internacional) que era “Os Desabrigados” que tem um centro de acolhimento aos sem abrigo de Lisboa. Andei pelas ruas não só a distribuir comida mas a convencer aquelas pessoas a procurarem apoio para melhorarem a sua situação. Fiz isso muito tempo.Porque desistiu? Começou a ser complicado. Conseguia convencê-los a ir pedir ajuda nas diversas organizações que existiam e eles iam e voltavam desiludidos porque diziam que não eram recebidos nem aceites. Aquilo começou-me a fazer confusão. Como para dar só comida há mais pessoas e vi que o meu trabalho não tinha receptividade, desisti. Concorda com a criminalização do piropo? Acho isso uma coisa horrível. Viva o piropo! Eu acho a maioria dos piropos engraçados. Acho que compensam alguns mais ordinários.Quem lhe contava histórias quando era criança? Eu lembro-me de contar histórias aos meus irmãos porque era a irmã mais velha. E contei, ou melhor, representei, histórias para os meus filhos. Eles ainda hoje se lembram. A mim não me lembro de me contarem histórias.
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