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“É ultrajante que os tribunais tirem menores aos pais só porque são pobres”

“É ultrajante que os tribunais tirem menores aos pais só porque são pobres”

Olga Fonseca é directora do Centro de Emergência Social do CEBI de Alverca

Técnica diz que há um pico “preocupante” de crianças institucionalizadas. O Centro de Emergência Social da Fundação CEBI em Alverca é um oásis de esperança. Foi fundado há 20 anos para acolher menores retirados aos pais pela justiça.

Depois de vários anos em queda, o número de crianças retiradas aos pais e institucionalizadas tem vindo a aumentar e está hoje a viver-se um “pico muito preocupante” e não há respostas sociais em quantidade para a procura.O alerta é de Olga Fonseca, 51 anos, psicóloga e directora do Centro de Emergência Social (CES) da Fundação CEBI de Alverca. A técnica diz mesmo que é “escandaloso, ultrajante e atentatório” contra todos os direitos das crianças que os tribunais ainda tirem menores aos pais só porque eles são pobres. “A infância devia estar no topo da agenda dos políticos. Algumas situações que se estão a passar são inadmissíveis. É necessária uma clara mudança das políticas sociais. Apoiar as pessoas, conhecer a realidade e reactivar alguns apoios que as pessoas deixaram de ter”, defende.O Centro de Emergência Social da Fundação CEBI de Alverca é uma unidade que acolhe crianças retiradas aos pais pela justiça ou pelas comissões de protecção de crianças e jovens como medida preventiva, por terem sido, algumas, ameaçadas de morte, torturadas, agredidas, mantidas dias à fome e até violentadas sexualmente. O CES do CEBI é um pequeno “oásis de esperança” para estas crianças.“Nos últimos anos a situação piorou muito e hoje em dia estamos com a nossa capacidade completamente esgotada. Estamos num pico muito preocupante e sem que haja ao nível da região e do país respostas em quantidade para as crianças com mais de 12 anos”, alerta a O MIRANTE. No último ano 8470 crianças foram acolhidas temporariamente nestes centros em todo o país. Mais de 130 só no CES da Fundação CEBI, que tem mais de 30 crianças temporariamente na sua residência.“É chocante. Não existem equipas no terreno para se ligar às pessoas, o nível de desemprego não deverá baixar e por isso a desestruturação das famílias continua a ser enorme. A transferência das responsabilidades do Estado para as instituições é cada vez maior e por isso não me parece que sem uma verdadeira reestruturação das políticas sociais haja condições para que a situação ao nível da protecção à criança melhore”, nota.O facto de haver, no concelho, técnicos da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) com mais de 100 processos para gerir, torna também mais difícil a prevenção do risco. “É absurdo. Fui presidente da CPCJ de Vila Franca durante seis anos e sei bem do que falo. Na altura fiz as contas e se cada técnica acompanhasse todos os processos dava menos de um minuto por semana para cada criança. Isso é surreal”, critica.Há duas décadas a criar finais felizesOlga Fonseca está à frente do CES do CEBI desde o primeiro dia, há 20 anos. Criar o centro foi “um parto de risco” que compensou. Na altura não havia qualquer resposta para estas crianças. Nem tão pouco uma Segurança Social interessada em financiar o projecto. “Chegámos a ter as instalações prontas e mobiladas, mas fechadas durante um ano, à espera do financiamento”, recorda a responsável. O centro acolhe crianças até aos 12 anos. “Algumas vêm logo directamente da maternidade para aqui”, lamenta. Diz que o Estado muitas vezes parece pensar que as crianças são um objecto, “como se elas não precisassem de afecto, colo e compreensão”.47 por cento das crianças que por ali passaram voltaram para a sua família biológica, a prioridade do centro. Mas 28 por cento não tiveram a mesma sorte e foram encaminhadas para adopção. 25 por cento foram para lares de infância e juventude ou encaminhadas para apadrinhamento civil.Uma equipa multidisciplinar de psicólogos, técnicas de serviço social, educadores de infância, médicos, advogados e ajudantes de acção directa, cuidam das crianças 24 horas por dia. Como ocasionalmente há pais a ameaçar as crianças e as técnicas - um dia um pai armado conseguiu entrar no complexo - hoje em dia a segurança é reforçada e nenhuma criança é deixada sozinha, vivendo sempre num espaço recatado e com portas controladas, onde até o jornalista esteve sempre debaixo de olho. “A nossa capacidade máxima é de 30 crianças, mas por vezes temos lotação esgotada e sobrelotação. Tentamos sempre acolher quando isso nos é solicitado. Jamais deixámos uma criança passar uma noite num posto da GNR ou numa esquadra da PSP”, garante Olga Fonseca. Os maus-tratos são transversais em todas as classes sociais, das mais pobres às mais ricas. “A diferença é que as ricas sabem camuflar melhor”, nota.Saber lidar com situações “horrorosas e chocantes”O mau trato mais frequente é a negligência por falta de condições sócio-económicas da família. Além de crianças com fome, há as que foram ameaçadas e vítimas de tentativa de homicídio, queimadas, pontapeadas, amarradas dias a fio, que viviam em buracos e vítimas de violação.“Lidamos todos os dias com violência. Estou nisto há muitos anos e tenho aprendido a salvaguardar-me do ponto de vista emocional. Não deixo de ser humana e há situações que levo para casa e só lá, com a almofada, é que falo delas. É um trabalho de uma violência inimaginável”, confessa a técnica. Algumas crianças, quando o tribunal decide mandá-las de volta para casa, o CES já sabe que vão voltar. “Muitas vezes o projecto de vida que defendemos para a criança não é aceite em tribunal. Sabemos que ao fim de um mês ou dois a criança está cá outra vez. O tribunal já nos ouve mais do que no passado. Mas continuo a defender que os tribunais têm de ser assessorados por técnicos desta área. Um juiz ou um magistrado que não se desloque a um centro de acolhimento só tem um papel à frente”, entende.Uma das situações que chocou a técnica foi a de um rapaz de 11 anos que foi retirado aos pais e entregue para adopção. Mas depois foi devolvido porque os novos pais não gostavam que ele vestisse uma roupa lavada todos os dias. “Essa criança voltou para cá com capuz e o olhar baixo, com um sentimento de vergonha e de não ser digno de ter uma família. Sentir-se rejeitado foi terrível”, lamenta. Na parede do seu gabinete, entre várias fotos com rostos de crianças, guarda uma de um pequeno rapaz que não falava, cuja história diz ter sido a “mais triste que conheci na vida”. Só depois arranjou forças para explicar porquê: “Viu a irmã menor ser violada por um tio. Choravam muito os dois irmãos, por não conseguirem fazer nada para impedir isso”, partilha. No primeiro trimestre do ano a responsável vai lançar um livro contendo as histórias de vida de crianças que passaram pela instituição. O livro será lançado na Fundação CEBI. No dia 10 de Dezembro um encontro sobre este tema vai também permitir a alguns adultos, que passaram pelo centro, falar da sua experiência.Apoio de “padrinhos solidários”O funcionamento do CES do CEBI custa perto de um milhão de euros por ano. As pessoas, grupos ou empresas que queiram apoiar financeiramente uma criança da instituição, ou o centro na globalidade, já o podem fazer. O projecto tem o nome de “Padrinhos Solidários” e cada entidade é convidada a doar 200 euros anuais, pagos em tranches ao longo do ano ou numa só prestação. Já existem cinco padrinhos no CES, três particulares e duas empresas. O site da Fundação CEBI explica os detalhes (www.fcebi.org). Olga Fonseca diz que não se trata de um apelo à “caridadezinha” mas sim à genuína intenção de ajudar. “Aprendi com o José Álvaro Vidal que ser pobre não é ser miserável”, conclui.
“É ultrajante que os tribunais tirem menores aos pais só porque são pobres”

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