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“A pega de um toiro é uma manifestação de enorme coragem pessoal”

“A pega de um toiro é uma manifestação de enorme coragem pessoal”

Mário de Carvalho, escritor, advogado, antigo preso político, apresentou na passada sexta-feira duas das suas obras na Fábrica das Palavras, em Vila Franca de Xira. Nesta entrevista a O MIRANTE Mário de Carvalho assume que não gosta de algumas tradições ribatejanas, como é o caso das corridas de toiros, mas é visita regular à região por ter casa de fim-de-semana em Salvaterra de Magos.

Conhece bem o Ribatejo? Gosta das nossa tradições? Há muitos anos que passo alguns fins-de-semana e alguns dias de Verão perto da lagoa de Magos - em Salvaterra de Magos. Tenho lá uma casa. Também conheci pessoas daqui de Vila Franca de Xira. Conheci o Alves Redol. Eu era um miúdo na altura mas lembro-me do Alves Redol a passar férias no Freixial. Hoje dou-me bem com o filho de Alves Redol, o António Mota Redol. Noutros tempos vinha muito a Vila Franca, Alhandra e Alverca por razões políticas. Era aqui que, antes do 25 de Abril, eu encontrava alguns dos meus amigos de forma muito discreta e reservada. Marcava e tinha encontros políticos.Nunca veio para assistir a uma tourada? Sou absolutamente contra. É melhor nem conversarmos sobre isso (risos). Sei que a maioria dos ribatejanos leva isso muito a peito. Mas para mim tudo o que represente violência, sangue, brutalidade, não aceito. Sou de origem alentejana e esta minha afirmada e declarada aversão pessoal pelas touradas não tem correspondência noutras pessoas da minha família. Eu tenho familiares que adoram ver uma pega. E mesmo que uma pessoa não goste muito daquele toureio à espanhola, aquela coisa com a capa e a espada, o facto é que temos de reconhecer todos que a pega é uma manifestação de enorme coragem pessoal. Eu não queria estar na pele de nenhum daqueles jovens que defrontam o touro, não apenas aquele que vai à frente, mas também todos os outros. Aquilo é de facto uma aposta de risco e de coragem que uma pessoa não pode deixar de admirar.O Ribatejo não é só touros; também é terra de cavalos e campinos. Não gosto muito de cavalos, sou sincero (risos) E intimida-me um bocado a força, aquela força do cavalo. Não sei qual é a diferença entre a força do homem e do cavalo mas deve ser uma coisa brutal. (pausa) Quando era miúdo convivi muito com animais. Os meus avós tinham um monte no Alentejo: o Monte da Vinha. Eu andava por lá a cabriolar à vontade. Havia burros. Montava os burros e fazia grandes percursos acompanhado pelos cães. Era deixado à vontade, isto é, não havia por parte dos meus avós aquela prevenção que as mães e os pais têm hoje. Deixavam-me andar à vontade por ali. Eram os meus dias de franca liberdade quando andava pelo campo.Vi como olhava o rio Tejo deste grandioso espaço que é a Fabrica das Palavras. Há muito tempo que o rio faz parte da minha paisagem. Sou de Lisboa e o rio faz-me falta. O rio e Lisboa fazem-me falta. Esta enorme extensão de água, esta paisagem, este desdobramento do olhar que me permite ver o rio; tudo isto me faz falta; está dentro de mim, faz parte de mim.Como procura a inspiração para escrever? Às vezes inspiro-me nas palavras dos outros. Outras vezes nos episódios simples e aparentemente insignificantes: uma frase que ouvi no Metro, por exemplo.Tem algum bloco de notas? Agora tenho. Durante muitos anos não tive e tenho declarado isso publicamente. Mas agora já tenho um caderninho. Agora já tomo notas quando há alguma coisa que eu receio que possa vir a esquecer.Relê os seus livros? Não, não, não, nunca. Só sendo obrigado por qualquer razão técnica.Algum dos seus livros é autobiográfico? Não, de todo. O que acontece é que, por vezes, alguns episódios que possa viver podem aparecer nos textos de uma forma incompleta e trabalhada no meu laboratório interior.De alguma maneira a advocacia afectou a sua forma de escrever? Por acaso as personagens principais dos meus livros ou são engenheiros ou professores. O que nada tem a ver (risos). Mas a advocacia ajudou-me a conhecer pessoas, personalidades, modos de vida, dramas, e isso está presente no que escrevo.Considera que influenciou a sua família para a arte da escrita? Tenho duas filhas que são escritoras mas não considero que as tenha influenciado. Acho é que o facto de terem frequentado certos ambientes, de terem passado por lá certos amigos e, sobretudo, o facto de haver livros em casa, foi isso certamente que teve uma grande importância. O meu pai também foi escritor e teve vários livros publicados.Qual foi o primeiro texto que escreveu de que gostou? Foi nos anos 60. Bastantes anos antes de publicar livros. Recordo-me de uns textos surrealistas: isto se calhar não diz muito, esta palavra é capaz de estar desactualizada. Eram textos curtos que jogavam com o absurdo. Depois desinteressei-me e só voltei à escrita após o 25 de Abril.A censura antes do 25 de Abril prejudicou muitos escritores? O meu pai é um bom exemplo. Houve livros que foram apreendidos e eu reparei na mágoa que isso lhe causou. Eu nunca mais me esqueci que isso causou-lhe mágoa. As ofensas que fizeram ao meu pai foram ainda mais sofridas que as que fizeram a mim. Porque, apesar de ambos termos sido presos, comigo posso eu bem. Por ele não podia fazer nada; não podia evitar que magoassem uma pessoa que me era querida.Alves Redol teve importância na sua formação como escritor? Li muitos livros de Alves Redol. Acho que ele tem obras notáveis, recordo-me do “Gaibéus”, que li com olhos de ler, e do “Barranco de Cegos”, um grande livro que li apaixonadamente.Alguns dos seus livros são contos. Gosta em especial de contar em poucas palavras? Não escrevo só contos, aliás, nem considero que o conto seja uma das maiores preferências dos meus leitores. Em tempos julgava que tinha escrito o conto mais curto do mundo mas afinal enganei-me (risos)…Pede a alguém para ler os seus textos antes de os publicar? Não. Eu trabalho em absoluta soberania. Não dou os meus livros para ler a ninguém antes de os publicar. Apenas ao editor mas já numa fase sem retorno.O que ainda lhe falta escrever? Não é fácil responder a essa pergunta. (risos) A literatura portuguesa não começou comigo e não acabará comigo. Tenho alguns textos em mãos e projectos que gostaria de cumprir. Mas, sim, a relação entre o homem e a mulher interessa-me particularmente.Qual o seu lema de vida? Pode ser um neste momento e daqui a uma hora já lhe dou outro. (risos) “Festina lente” ou “Apressa-te devagar” é o que me está a ocorrer agora. É uma frase de Augusto César, o Imperador.Mário de Carvalho apresentou dois livros em Vila Franca de XiraNa passada sexta-feira, pelas 18h30, Mário de Carvalho apresentou dois dos seus últimos livros na Biblioteca Municipal de Vila Franca de Xira.O escritor foi pontual na chegada à Fabrica das Palavras, chegou sorridente e bem-disposto para conversar sobre os livros “A Sala Magenta” e “A Liberdade de Pátio”. A sessão decorreu durante cerca de uma hora e meia, o suficiente para o autor falar de algumas das suas vivências, inspirações e motivações que o levam ao acto da escrita. A intervenção do escritor foi breve e sucinta, uma vez que este considera que não é a pessoa mais indicada para falar dos seus livros. O auditório manteve-se fiel e acompanhou as partilhas do autor de forma entusiasmada com algumas questões e comentários.Na plateia estavam duas dezenas de pessoas de várias faixas etárias que deram a perceber serem todas leitoras dos livros de Mário de Carvalho. No fim da sessão, desde a jovem estudante de jornalismo até ao velho reformado, vários foram os admiradores que pediram autógrafos e fotografias. O autor de “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde” é considerado um dos mais representativos escritores da literatura portuguesa tendo ganho nos últimos anos vários prémios literários de prestigio.
“A pega de um toiro é uma manifestação de enorme coragem pessoal”

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