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“Se as vinhas dessem dinheiro não havia tanto terreno abandonado”

“Se as vinhas dessem dinheiro não havia tanto terreno abandonado”

As vindimas no Ribatejo começaram ainda o sol de Agosto ia alto, mas estas podem ser as últimas para algumas famílias. Os pedaços de terra que passaram de geração em geração não são rentáveis. Nalguns casos vindima-se para não deixar a tradição morrer.

“É a última vindima que fazemos. Vamos vender o terreno”, confessa Emília Chamusca, de olhos carregados de lágrimas. Foi uma fatalidade que a obrigou a tomar a decisão. O irmão, Joaquim, morreu há dois meses, vítima de um acidente no campo. “Ele tinha 55 anos, eu tenho 68, era como um filho para mim. Não consigo continuar e, sem ele, não há ninguém que o possa fazer”, explica.
A seu lado, mãos tintas das uvas que toda a manhã lhe passaram pelas mãos, está Maria, a viúva. Abana a cabeça em sinal de concordância. A vinha, nos campos de Benfica do Ribatejo (Almeirim), é para vender. Esta vai ser a última vez que a família Chamusca se junta à família do Joaquim, que todos choram, para vindimar. Mesmo de luto, reuniram-se: cunhadas e sobrinhos, tios e primos, e organizaram um rancho pequeno, mas que em alguns dias vai deixar as cepas vazias de uvas, levá-las à adega cooperativa e honrar o último desejo do irmão.
Hugo Pereira tem 16 anos e é o mais novo do grupo. “Vindimo desde muito pequeno”, conta, e no sorriso nem se nota o cansaço. Tem uma irmã de 15, que não quer saber de vindimar. “Quer ser modelo, então não se pode arranhar. É muito vaidosa”, conta Emília, que consegue sorrir um pouco, no meio das lágrimas. No início do caminho, há uma figueira. Largam os baldes e apanham frutos maduros, para oferecer aos jornalistas de O MIRANTE. A generosidade, mesmo nos dias tristes, é uma característica do Ribatejo.

Um jovem arquitecto na vindima
Generoso é também José Saldanha. Tem 78 anos e apesar de começar a conversa com a frase “Já não tenho idade para isto”, o sorriso rasgado denuncia-o. É o avô de Ana Salomé, 16 anos, e de Renato José, de 24. E também o capataz de uma das vinhas que fica junto ao cemitério de Benfica do Ribatejo.
O sol queima a nuca e os braços descobertos, mas a família continua a vindimar. “O dinheiro que fizermos é para eles”, e José aponta os netos. Estão lá as tias, Palmira Pinto e Palmira Evaristo, de 65 e 71 anos. Também o tio Alfredo, de 68, que confessa gostar “tanto” de vindimar. Ana Salomé baixa os olhos e suspira: “Eu não gosto nada, mas tem de ser”.
Renato José, valente, carrega os baldes com cerca de 20 quilos de uva. Está terminado o dia - acaba à hora de almoço - que o calor de fim de Agosto não permite jorna durante a tarde. É arquitecto e está a estudar música. O dinheiro que render dos cinco hectares de vinha que a família possui irá para os seus bolsos e dos irmãos - o mais novo, de 13 anos, anda na apanha do tomate com o outro avô. “Vou investir o dinheiro que ganhar aqui numa guitarra e guardar um pouco para um casamento”, conta Renato.
Ana ainda não sabe o que vai fazer ao dinheiro que vai ganhar. Recebem 5 euros à hora: aqui neste rancho e em todos os outros, onde a vindima é feita à mão, e não à máquina, por se tratar de terrenos pequenos. O salário é pouco, muito pouco para trabalho tão duro. Mas para as vinhas de que José Saldanha é o capataz pode haver futuro: “O mais novo dos meus netos não gosta de estudar. Quer é viver da agricultura”. Uma esperança como esta é de agarrar. A alternativa, admite José Saldanha, é vender as terras.

Vindimar por amor à terra

O MIRANTE foi encontrar Arlindo no início das suas férias - tira sempre uns dias para vindimar os pedaços de terra que herdou do pai. Fá-lo por amor: “Estas vinhas já foram do meu avô e do meu pai, não queria que isto acabasse”. Vai ser difícil. A mulher, Maria Jesuína, e a filha, Ana Isabel, ajudam na vindima. Também elas estão de férias... para trabalhar. Mas não será a prole de Arlindo quem vai continuar a vindimar. “O mais provável é ter de vender, quando já não tiver forças. Tenho outro filho, mas vive em Londres e a minha filha não quer levar isto sozinha”, desabafa. “Fico triste, porque herdei a terra do meu pai e gostaria que ficasse na família”, lamenta.
A trabalhar ao lado da família Gomes, está uma outra família, de etnia cigana. Ajudam nesta vindima há mais de dez anos e apesar de não terem crescido na tradição, já se habituaram à lida. E são um exemplo perfeito de integração na comunidade bem sucedida e duradoura. Avó e avô, filha e filho e ainda duas netas - a Anabela e a Mara, de 10 e 8 anos, que brincam por entre os cepos e dão alegria à vindima. É raro ouvir-se uma cantiga, mas a família cigana empresta alegria e movimento ao rancho. Ainda assim, o objectivo é encher os baldes o mais rapidamente possível e fugir do sol.
O ano passado, Arlindo conseguiu tirar 15 mil quilos de uva das suas terras. Este ano serão menos cinco mil, mas para ele é suficiente. “Rende 100, 200 litros de vinho e, como bebo pouco, dá para o ano inteiro”. Dinheiro extra com o que a vinha dá? Arlindo ri alto e constata: “Se as vinhas dessem dinheiro não havia tanto terreno abandonado”.

Menos uva mas com mais grau

Este ano a colheita vai ficar por um pouco mais de metade dos quilos do ano anterior. “Há menos uva. Choveu muito, houve muitas geadas e míldio. Mas a uva está boa, deve ter uns 14 graus”, afiança José Saldanha. “Quando chove, os cepos não agarram em uva. Mas eu já sabia: quando há um ano com muita uva, no outro não há tanta. São coisas da Natureza, que não se explicam”, concorda Arlindo Gomes, 55 anos.

“Se as vinhas dessem dinheiro não havia tanto terreno abandonado”

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