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A pontualidade é muito bonita mas não pode ser imposta aos médicos de forma cega

A pontualidade é muito bonita mas não pode ser imposta aos médicos de forma cega

António Pinto Correia, em Santarém, e José Veiga Maltez, na Golegã, presidem às respectivas assembleias municipais

António Pinto Correia, médico otorrinolaringologista e presidente da Assembleia Municipal de Santarém, nasceu e cresceu em Luanda, Angola, mas teve que abandonar o país em 1975, quando frequentava o quinto ano de medicina, devido à guerra civil entre movimentos armados. José Veiga Maltez, médico de medicina geral e familiar e presidente da Assembleia Municipal da Golegã, foi pela primeira vez a Luanda em Abril deste ano e veio de lá chocado com a miséria e degradação que grassa na terra do seu colega e que contrasta com o luxo das zonas ricas da cidade.

António Pinto Correia e José Veiga Maltez foram pontuais e ainda antes da hora marcada para o início de mais uma conversa da série duetos improvisados entre pessoas que tocam sempre a mesma música, já estavam na sede de O MIRANTE. Esta abertura do texto requer uma justificação. Os jornalistas da casa, que têm testemunhado e em muitas ocasiões sido “vítimas” de atrasos do ex-presidente da Câmara da Golegã e actual presidente da assembleia municipal, estavam convencidos que ele iria chegar depois da hora marcada mas falharam.
“Sou muito pontual dentro da minha despontualidade. E isso tem causas. A primeira é querer estar em todo o lado. A segunda é mera deformação profissional porque nós médicos, de uma maneira geral, habituamo-nos a não ser pontuais. Eu nunca entrei a horas e nunca saí a horas porque via sempre doentes para lá da hora de saída. Nunca me recusava ver um doente”, explica Veiga Maltez, acrescentando que quem o vê como um eterno atrasado está a caricaturá-lo. “Tento sempre chegar a horas porque tenho respeito pelos outros embora reconheça que nem sempre sou bem sucedido”, diz a sorrir.
António Pinto Correia, médico otorrinolaringologista e presidente da Assembleia Municipal de Santarém, diz que é muito pontual, embora reconheça que a medicina não se compadece com a pontualidade. “Não temos hora de almoço, de jantar, de sair...”, refere.
Fora da actividade profissional é rigoroso e confessa que já deixou alguns atrasados “pendurados”. Mas a quem aconteceu tal coisa foi porque se atrasou mesmo muito, uma vez que o médico diz que costuma dar sempre meia hora de tolerância. Com quem nunca se atreveu a ser muito rigoroso foi com a esposa, a médica Teresa Pinto Correia, quando namoravam e ela por acaso se atrasava. “A minha esposa é relativamente pontual. Nunca a deixei pendurada porque há coisas que não se podem fazer”, confessa.
O objectivo das conversas promovidas por O MIRANTE é colocar pessoas a falar de outros assuntos sobre os quais não falem no seu dia a dia. No caso dos médicos e presidentes das Assembleias Municipais de Santarém e da Golegã, não se falou de política mas foi inevitável falar de assuntos ligados à medicina.
José Veiga Maltez referiu a certa altura que há muitos médicos a pedirem a reforma antecipada porque não se adaptam ao actual sistema que interpõe um computador entre o médico e o doente, que trata as questões de entradas e saídas de forma cega e com relógios de ponto, que pressiona para a não realização de certos exames, que tenta definir um tempo médio por consulta por razões meramente económicas.
António Pinto Correia não é médico de família e por isso tem uma visão um pouco diferente. Gosta das novas tecnologias que revolucionaram a prática da medicina e dos computadores que vieram resolver os problemas da famosa ‘letra de médico’. “Reconheço que, como não sou da geração que consegue escrever sem olhar para o computador, os doentes calam-se quando deixo de olhar para eles. Mas por outro lado ainda bem que agora é tudo escrito no computador. Nesta altura, se eu escrever à mão, depois já não consigo ler o que escrevi”, confidencia. Acrescenta que no início da carreira chegou a escrever receitas em letra de imprensa para não haver enganos na farmácia.

Um acto médico pago com um lugar num avião que ia para longe da guerra

A descolonização de Angola originou uma guerra civil entre os movimentos que tinham lutado contra as forças armadas portuguesas. António Pinto Correia, natural de Luanda, cidade onde cresceu e estudou, assistiu ao início do conflito e por pouco não foi envolvido no mesmo. Na altura, em 1975, tinha 23 anos e estava no 5º ano de medicina. Ia a caminho do hospital num dia em que houve um ataque aéreo. Viu dezenas e dezenas de cadáveres na morgue. Lembra-se de numa noite ter ajudado a transferir todos os doentes do hospital principal para outras instalações para garantir a sua segurança.
Os pais e o irmão mais novo vieram para Portugal primeiro. O outro irmão, na altura já formado em engenharia mandou a mulher algum tempo depois. Com a ameaça da incorporação nas forças armadas controladas pelo MPLA, por ser natural do país, teve que sair à pressa.
“Saí de Luanda com uma sorte muito grande. Estava no aeroporto a tentar desenrascar-me. Tinha bilhete mas não tinha avião. A certa altura ouvi que precisavam de um médico. Eu ainda não era médico mas apresentei-me. Meteram-me num jipe e levaram-me a um Boeing 747. O comandante, ao aterrar, tinha feito uma luxação num ombro e estava deitado no “cockpit” com dores. Disse-me que se eu não conseguisse resolver o problema era incapaz de fazer descolar o aparelho outra vez”.
O jovem estudante de medicina tratou da luxação e o piloto perguntou-lhe o que é que podia fazer por ele. António Pinto Correia disse-lhe que a única coisa que queria era sair de Luanda. E assim foi. Com uma pequena mala, cinco mil escudos que era o máximo que davam a cada pessoa em troca da antiga moeda do tempo colonial, o angolar, levantou voo em direcção a Lisboa. O aparelho era da Swiss Air e era um dos muitos contratados pelo Estado português para fazer a ponte aérea que trouxe milhares de pessoas para Portugal.

Luxo e miséria extrema com laivos de autoritarismo e aroma a corrupção

Só em Abril deste ano é que o presidente da Assembleia Municipal da Golegã, José Veiga Maltez, foi a Angola. “Foi a primeira vez que fui a África, graças a um convite de uma empresa portuguesa com sede na Golegã, a Mendes Gonçalves, que inaugurou uma unidade industrial da Paladin em Viana, a mais de quarenta quilómetros de Luanda”.
Com 60 anos de idade feitos em Outubro e tendo visto muita coisa na vida, o médico confessa que não estava à espera de encontrar o que encontrou. “Foi uma sensação tristíssima. Não sabia que era possível tanta miséria e tanta degradação. Andámos duas horas por uma estrada indescritível. As pessoas circulavam a pé na maior parte dos casos porque não há transportes públicos. Há apenas umas carrinhas onde se amontoavam às dezenas. E depois em Luanda aqueles hotéis óptimos. Ali não há meio termo. Confrange ver tudo aquilo!”, declara.
José Veiga Maltez só esteve três dias em Angola mas trouxe que contar. “Parece que engraçaram comigo. À chegada, no aeroporto, separaram-me do grupo e mandaram-me ir ‘ao gabinete do doutor’. Cheguei lá e estava um sujeito com um colete reflector daqueles fluorescentes. Começou com uma conversa e eu vi que estava a fazer-se. A certa altura eu disse-lhe que era médico e ele disse-me que podia ir embora. No regresso um polícia perguntou-me se eu não tinha kuanzas (moeda angolana). Quando lhe disse que não fez uma observação interessante: ‘Então o senhor não pensou em nós!’. Fiquei a perceber que o dinheiro que apanham é para eles.”.
No dia da inauguração da fábrica, na viagem entre Luanda e Viana, havia um grande engarrafamento. Quando a polícia mandou avançar as duas carrinhas da comitiva, Veiga Maltez pensou que era por uma questão de cordialidade mas enganou-se. “Mandaram-nos encostar e veio de lá um polícia ralhar com uma jornalista que ia connosco. Depois apreenderam-nos os telemóveis com a justificação que estávamos proibidos de tirar fotografias. Ainda mostrei uma foto que tinha feito com a ministra da Economia no dia anterior e disse que ela era muito simpática mas não me valeu de nada. Ao fim de um quarto de hora de negociações acabaram por nos deixar seguir”.

A pontualidade é muito bonita mas não pode ser imposta aos médicos de forma cega

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