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A desertificação do mundo rural é uma tendência irreversível

A desertificação do mundo rural é uma tendência irreversível

Nasceu em Vale da Lage, uma aldeia do concelho de Tomar junto à albufeira do Castelo do Bode, onde tem casa e regressa regularmente. José Gomes Ferreira, jornalista e director adjunto de informação da SIC, é um homem orgulhoso das suas raízes. Nesta primeira parte da entrevista concedida a O MIRANTE, fala da sua relação com as raízes, critica o poder local e diz que o êxodo do mundo rural não tem solução.

A entrevista tinha uma baliza temporal previamente apontada para a meia hora mas as conversas são como as cerejas e esta conversa com José Gomes Ferreira, director adjunto de informação da SIC, acabou por se estender por 80 minutos. Porque pela frente tínhamos um exímio contador de histórias, com uma excelente memória e muita informação acumulada.

À mesa da castiça Taberna do Quinzena, onde almoçou no dia em que a SIC emitiu o Primeiro Jornal a partir de Santarém, o jornalista falou das suas raízes na pequena aldeia de Vale da Lage, na freguesia da Serra, no concelho de Tomar, mas também sobre política, economia e jornalismo. Sempre de forma aberta e sem rodeios, dando nomes aos bois, à boa maneira ribatejana. Na maior parte das vezes é ele quem faz as perguntas mas desta vez coube-lhe dar as respostas, como se pode ler na primeira parte da entrevista. A segunda parte, mais focada em temas nacionais, será publicada na próxima edição de O MIRANTE.

Nasceu em Tomar e aí viveu, na aldeia de Vale da Lage, a sua infância e adolescência. Qual é actualmente a sua relação com a cidade e o concelho?
Tenho os pais, tenho o irmão, tenho as tias, tenho os tios. Não vou lá tantas vezes quanto gostaria, porque não há tempo, mas vou de três em três semanas ou de mês a mês. Tenho lá casa, mesmo junto à albufeira do Castelo do Bode. Tenho a maior piscina da Europa, como costumo dizer.

Que memórias mais marcantes retém desses tempos? A camaradagem entre as pessoas, no sentido de verdadeira solidariedade. As pessoas quando têm que enfrentar muitas dificuldades e a comunidade tem poucos recursos tendem a ajudar-se. Ninguém era rico e ninguém roubava nada a ninguém. Nunca houve o mais pequeno sinal de violência entre vizinhos. Algumas discussões sim, mas lutas nunca houve. Foi uma situação que ajudou a moldar a minha visão do mundo. Acredito que podem haver sociedades que prescindam de toda a espécie de armas. Era assim na minha aldeia e nas aldeias em redor.

E questões menos positivas? Muito trabalho duro desde os tempos de infância. Mas isso era natural nas aldeias.

O que é que os seus pais faziam? Trabalhavam na agricultura, em trabalhos de construção… E eu ajudava, sempre ajudei com todo o gosto. Às vezes eram horas infinitas mas lembro-me que sempre arranjei tempo para depois ler um livro. E isso é muito importante. Tinha um amigo que estudava em Tomar e que ao fim de semana ia a casa e levava-me livros. Mais tarde consegui contactos com instituições do Ministério da Cultura que me enviavam publicações grátis. E recebi muitas assim. Depois, quando fui estudar para Tomar, tínhamos bibliotecas onde íamos levantar os livros.

Nota grandes diferenças entre a cidade desses tempos e a de hoje? Tenho que dizer uma coisa com muita pena: as autarquias locais tiveram muita importância no nosso país mas houve algumas que pararam no tempo. É o caso da Câmara de Tomar, que parou no tempo em muitos aspectos.

Nomeadamente? Eu concretizo, nunca tive medo das palavras. Por causa de uma certa ideia de tradicionalismo e de defesa de alguns valores, de pequeno comércio, de valores tradicionais e culturais, bloquearam-se as actividades económicas. E os autarcas tiveram culpa. Bloquearam o concelho. Foi-se tudo embora e eu não estou a evitar as palavras. Eu fui-me embora, a minha geração foi-se embora… E não estou a fazer esta apreciação visando nenhum partido em especial, foram todos.

Em que medida o poder local contribuiu para essa situação? Tinham uma visão absolutamente intelectual do que é uma pequena cidade de província. Deixaram estagnar a actividade económica por uma ideia de que os licenciamentos eram um perigo porque atentavam contra o ambiente e a cultura. Bloquearam tudo, foi-se tudo embora! Desapareceu quase tudo. Um concelho que tinha tanta gente perdeu um terço da população e dois terços da actividade industrial. E não me venham dizer que foi só a crise e a abertura, primeiro, do mercado único aos países europeus e depois de todo o conjunto europeu ao Extremo Oriente. Não foi o impacto da globalização, foi incompetência de muita gente que esteve na autarquia.

O que é que deviam ter feito que não fizeram? Não souberam perceber as mudanças no mundo e ainda hoje assim é. Há empresas que se querem instalar e não os deixam. Há empresas e empresários que querem abrir hotéis e não os deixam. E depois os que estão instalados quando querem abrir mais um anexo também não os deixam. Estou a pensar em casos muito concretos da cidade.

Por exemplo? O maior hoteleiro de lá. A concorrência não interessa muito e de repente o próprio quer pôr um anexo a funcionar como hotel mas não o deixam, pois a burocracia bloqueia-o.

Até que ponto o colapso do grupo empresarial Mendes Godinho contribuiu para a realidade do que tem sido Tomar nas últimas décadas? Esse colapso também teve a ver com alguma entropia e restrição de actividades da própria autarquia. Mas aí a questão é mais vasta. Aí, sim, teve a ver com a abertura do mercado europeu e depois do resto do mundo e também com outra coisa.

Que é? Aprendi isto das gerações antigas. Primeiro existe escassez de recursos. Depois vem, usando a expressão antiga, o ajuntador, alguém que se lembra que é preciso construir para si, para os seus e para o futuro. Junta riqueza. Depois vem o usufruidor e, por fim, vem o espalhador. A terceira geração dá cabo de tudo. Esta é a imagem do grupo Mendes Godinho. Na terceira geração passavam o tempo em Paris a gastar o dinheiro que os desgraçados dos trabalhadores criavam em mais valia naquele grupo e que os quadros médios e já de topo juntavam de riqueza, mas já não dava para pagar dívidas. Depois veio um período de intervenção colectivista - e esqueçamos a ideologia - que não trouxe padrões de gestão correctos. E isso também ajudou.

“Quem vive no interior merece ser ajudado”

Falávamos há pouco do êxodo da juventude dos meios rurais e do interior para as grandes cidades. É um fatalismo lusitano sem remédio? Não é um fatalismo lusitano. Aí tenho uma visão muito diferente do que normalmente se discute nos meios intelectuais. É um fenómeno mundial e tem a ver com o ser humano. Atribuo isso à psicologia social. Tal como as borboletas se atraem às luzes, o ser humano atrai aos centros. As pessoas não querem estar em meios isolados, onde não têm vizinhos, amigos, animação, diversão, acesso a hospitais, acesso a serviços públicos, acesso a um café para conversarem. Já não estão para estar num meio onde não há nada disso.

Então não há volta a dar? Não se trata de uma questão de falta de políticas para isso, é uma tendência universal. No sul de França há aldeias completamente despovoadas. Em Espanha há aldeias despovoadas. No Reino Unido há carrinhas a fazer o home banking. São países que eram considerados modelos de coesão territorial e afinal existem os mesmos fenómenos. Por isso, quando me vêm dizer que um Governo deve gastar muito dinheiro a tentar fixar a população no interior, desculpem mas eu não estou de acordo.

Então o que fazer? Deve-se ajudar quem lá está mas não se deve gastar recursos de um país de uma forma que não seja pensada, tendo a ideia de que as populações vão voltar para esses meios. Muita gente não vai voltar. É uma tendência universal.

Fechar serviços públicos e privados acaba por acelerar esse fenómeno. Sou contra o fecho indiscriminado de serviços, acho que tem que haver um meio termo. Se me disserem que o correcto é voltar a pôr as estruturas que existiam nas cidades médias do interior, que até representações do Banco de Portugal tinham, eu não posso estar de acordo. As populações saíram de lá e não voltam. Não estou a defender esse modelo, estou a analisar a realidade. dito isto, os que ficam, os que têm actividade económica, social e cultural nessas regiões, devem ser ajudados pelo Estado. Porque essas pessoas não podem ser deixadas ao abandono.

O José Gomes Ferreira vai voltar um dia ao Vale da Lage? Tenho lá uma casa, gasto o meu dinheiro lá, vou voltando… Mas voltando atrás, não sou um pessimista em relação à desertificação do interior. Existem alguns elementos de esperança. Agora esses voluntarismos de Estado a dizer que temos de dar incentivos para as populações voltarem de uma forma voluntária, é um erro. Gastam-se rios de dinheiro dos nossos impostos e não resulta.

É da geração de alguns dos protagonistas políticos da actualidade do seu concelho, nomeadamente da presidente da câmara Anabela Freitas. Conhece alguns deles? Infelizmente não tanto como gostaria. Conheci o presidente anterior, conheci outros presidentes. Gostaria de conhecer a senhora presidente mas ainda não tive oportunidade.

Ainda tem amigos lá por Tomar? Sim, alguns fora e outros que já se reformaram e voltaram. E agora vou fazer aqui um parêntesis: alguns da minha idade reformaram-se... Faz-me uma confusão enorme!

É uma pessoa orgulhosa das suas raízes? Sempre! Dá-me um prazer enorme estar no estrangeiro e, naquelas conversas casuais sobre o sítio de onde somos, dizer que sou de Tomar. A cidade que era considerada por Umberto Eco o umbigo do mundo. Dá-me um gozo enorme dizer que sou dessa cidade e desse concelho e aconselhá-los a virem cá porque há coisas belíssimas para ver.

“Não gosto da tourada a ferir o touro”

As tradições ribatejanas ligadas à tauromaquia dizem-lhe alguma coisa? Dizem, vou ser muito directo…

Não gosta de touradas! Gosto da manifestação da força do homem perante o animal. Não gosto da tourada a ferir o touro, nunca gostei. Gosto dos forcados, mas como as pegas acontecem já depois do touro estar ferido não gosto muito dessa parte. Aprecio a bravura desses homens. O conjunto cavalo e cavaleiro perante o touro também acho belíssimo. Tem uma estética fabulosa. Acho que era perfeitamente evitável espetar o touro. Vi uma tourada francesa com acrobatas que enfrentam o touro, que correm para o touro e saltam por cima dele em salto mortal. Não há armas, é belíssimo. A nossa cultura ibérica, que esteticamente é belíssima, tem esse lado mais violento que não aprecio.

O que pensa das corridas com touros de morte? Não gosto! Mas atenção: sei que os animais existem e são utilizados por nós até para alimentação. Essa coisa de que não se pode matar o animal, que horror, e depois comem bifes todos os dias, é uma hipocrisia pegada. Os animais existem para nos servir. Mas quando, por diversão e por cultura, se põe a questão de violentar e provocar sangue num animal, aí acho que não vale a pena. Quanto à tourada de morte, pode existir, desde que seja num espaço fechado. Quem quiser vai e quem não quer não vai. Não deve ser proibida. Quem tem esse gosto e essa cultura deve ser respeitado. Aliás, a tourada de morte em Barrancos teve um efeito perverso. Chamou-se a atenção e agora muita gente vai ver.

Um jornalista incómodo e assertivo

José Gomes Ferreira nasceu em 17 de Setembro de 1964 na aldeia de Vale da Lage, na freguesia da Serra, concelho de Tomar, junto à albufeira do Castelo do Bode. Reside em Sintra mas regressa com regularidade à terra natal, onde tem casa e onde vivem os pais e um irmão. Diz, com humor, que tem “a maior piscina da Europa” à porta de casa.

Casado e com duas filhas gémeas com quase 21 anos, José Gomes Ferreira é licenciado em Comunicação Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, com especialização em Jornalismo. Apesar de ter uma profissão muito absorvente, ainda arranja tempo para ir de vez em quando ao supermercado. “É importante saber como as pessoas vivem, saber os preços das coisas…”, diz.

Passou a sua infância e adolescência em Tomar, de onde saiu para ingressar no ensino superior em Lisboa. Depois de se formar assumiu funções de jornalista da revista de economia “Classe” e da TSF Rádio Jornal. Foi subeditor de Economia no jornal diário “Público”.

Desde 1992 é jornalista da SIC, onde foi editor de Economia entre 1998 e 2001. De 2001 a 2016, desempenhou a função de subdirector de informação. Actualmente é director-adjunto de informação da SIC. É ainda apresentador do programa Negócios da Semana e comentador na SIC Notícias.

Escreveu dois livros, com a política e a economia como panos de fundo, que foram dois sucessos editorais “O meu programa de Governo” e “Carta a um bom português”. O terceiro está na forja e promete seguir-lhes o caminho. Sempre a questionar o poder e a denunciar assertivamente algumas das medidas que ajudaram a chegar o país ao estado a que chegou.

A desertificação do mundo rural é uma tendência irreversível

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