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“Nunca quis ser político mas faço política todos os dias”

“Nunca quis ser político mas faço política todos os dias”

José Gomes Ferreira assume-se, nesta segunda parte da entrevista concedida a O MIRANTE, como uma voz incómoda que gosta de questionar os poderes instituídos e a forma como o país é governado. Diz que antes de ser jornalista é cidadão - um cidadão que por vezes se indigna - e que os livros que tem escrito são exercícios de cidadania activa que pretendem agitar consciências e promover o inconformismo. O jornalista natural de Tomar, director adjunto de informação da SIC, rejeita rótulos, garante que a política partidária não está nos seus horizontes e admite que já votou em quase todos os partidos.

Neste seu último livro, “Carta a um bom português”, o José Gomes Ferreira é nalgumas coisas muito mais crítico do que, por exemplo, a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, ou do que Passos Coelho, o actual líder da oposição. É um cidadão que ultrapassa o jornalista porque o jornalista não pode ir tão longe como vai o cidadão neste livro. Costumo dizer que antes de ser jornalista sou cidadão. O jornalismo é uma paixão, uma profissão, uma dedicação, uma carreira, uma arte. Mas antes disso somos cidadãos, sempre, comprometidos com o nosso tempo, com as grandes questões que nos rodeiam. Costumo resumir isto a uma questão: Que deve fazer o jornalista? Deve fotografar e reportar o regicídio, para utilizar uma imagem da nossa história, ou deve segurar o braço do regicida?

E qual é a resposta? Deve segurar o braço do regicida se conseguir impedi-lo de matar o rei. Por isso é que o jornalismo vem depois da cidadania. Tenho isso muito claro na minha cabeça. E até me dá um grande gozo profissional e intelectual perceber que existem pessoas que me catalogam, que me criticam, que dizem que sou de direita, que sou isto e que sou aquilo… Depois vem alguém que diz: “Olha, afinal ele tem ideias de esquerda!”. Qual de esquerda? São ideias de cidadania! Este exercício do livro “Carta a um bom português” é uma coisa revolucionária, de esquerda. É uma posição de rebelião perante poderes instituídos. E a esquerda promove muitas rebeliões. Agora, não me venham com histórias de colectivismo e de colectivizar a economia toda…

Os seus entrevistados lêem os seus livros? Alguns sim, outros não os conhecem…

Não se sente mal instalado na cadeira de jornalista quando alguém vai aos seus livros e cita palavras suas. Normalmente não acontece em televisão. Acontece mais em conversas informais. Já tive um governante que me disse que tinha mandado o seu gabinete analisar um livro meu logo que saiu, na vertente jurídica, financeira, económica, monetária. Para mim foi honroso. E não concordava muito com ele, nem ele comigo. Só tenho a agradecer.

O José Gomes Ferreira cidadão não entra em conflito com o José Gomes Ferreira jornalista? Às vezes. Não morro de tédio na minha profissão. Felizmente, tenho uma actividade muito diversificada por também fazer parte da direcção de informação da SIC. Às vezes estou a entrevistar e irrito-me com o entrevistado. Alguns têm um vício de raciocínio que foi enformado por matrizes, sejam partidárias, empresariais, sindicais, de determinado nicho de mercado.

E como controla esse estado de espírito? Irrito-me mas não digo que estou irritado. E espero que não se note muito na antena. Tento por vezes contrariá-los e dou também a minha opinião. Sim, às vezes sinto esse conflito, é verdade. Aí surge o cidadão e a sua indignação perante certas coisas.

Tem consciência que a sua voz como jornalista é escutada… Porque é que entre os que ousam dizer algumas coisas sobre a nossa organização social, política e económica alguns são mais escutados do que os outros? Se a mensagem passa, algum mérito haverá, não estou aqui com falsas modéstias. Mas não são todos os projectos editoriais onde se pode ter uma voz livre. No grupo Impresa, com o dr. Pinto Balsemão e com a família - e não estou a dizer isto por elogio gratuito aos meus patrões - sempre se promoveu a liberdade de imprensa. E essa é a primeira condição. A partir daí sentimo-nos respaldados e não há constrangimentos.

A sua voz é de tal modo única que às vezes é caricaturado pelos próprios colegas. Já se apercebeu disso? Sim, às vezes. Tive a ousadia de escrever um livro a que pus o título “O meu programa de Governo”. Acho que grande parte dos colegas que criticou não percebeu. Pensaram mesmo que estava a utilizar a escrita e a posição de jornalista como plataforma de lançamento para a política. Enganaram-se redondamente?

A política é um meio que não o seduz? Nunca quis ser político. Ou melhor, nunca quis ser político no sentido de política partidária. Mas faço política todos os dias, dizendo às pessoas aquilo que acho melhor para a organização da nossa sociedade. Deve-se deixar os melhores criar riqueza, serem ricos, mas uma sociedade nunca pode pensar que pode ser gerida só por empresários. Porque os empresários procuram o lucro e há uns que têm preocupações sociais e outros não. Tem que haver sistemas políticos que digam que se tem que repartir com os que não podem, com os indefesos, com os que têm que ser ajudados. Não costumo dizer isto muita vez mas já votei em vários partidos do leque partidário. As pessoas enganam-se redondamente quando dizem que eu estou de um lado. Já votei em quase todos!

Menos no PCP, provavelmente... Estão enganados (risos). Foi em autárquicas. Eu opto pelas pessoas que conheço e que sei que podem fazer bem.

“Fui destronado por José Sócrates nas livrarias”

Esse livro de que falou há pouco, “O meu programa de Governo”, teve seis edições em seis meses. Sim, voltando ao livro, eu não completei o raciocínio… Houve colegas que não perceberam que escolhi esse título como técnica de autor, como técnica de marketing, para vender livros e as minhas ideias. Pensaram que eu queria um trampolim para a política. O livro esteve nos tops três ou quatro meses. Na parte da não ficção, teve um grande concorrente na altura que era o livro de uma senhora chamada Maria Helena, que apresentava as cartas na SIC. E a seguir veio o livro de um senhor que foi primeiro-ministro de Portugal.

José Sócrates… Sim, que escreveu um livro que depois soubemos que teve muita venda. Esta história é deliciosa: eu fui destronado por José Sócrates nas livrarias. E não é que o José Sócrates mandou comprar o seu próprio livro! Afinal era tudo mentira! Eu continuei a vender mais (risos)…

O seu último livro dava para uma tarde inteira de conversa. Esse é menos lido. Acho que as pessoas não o perceberam muito bem. Porque há uma diferença entre as pessoas acharem que alguém está a falar de acordo com o que pensam, como foi o caso do primeiro, ou este que é mais do género: agora levantem-se da cadeira e façam alguma coisa. E o português, aí, prefere que alguém vá à frente. Isso era um convite aos homens bons de Portugal para se levantarem.

A sociedade está acomodada? Isso é próprio do português. Têm um lado negativo que é não fazer as instituições mudarem e depois são prejudicados por isso. E têm um lado positivo que é: quando as instituições caem, o bom português, com a sua sapiência, paciência e persistência, segura isto tudo, trabalhando arduamente. Dou o exemplo da nossa banca e dos nossos banqueiros. O grupo de banqueiros anterior deu cabo disto à séria e ainda hoje não querem reconhecer isso. Foi a sapiência, persistência e paciência do bom povo português que permitiu que o sistema financeiro tivesse sobrevivido. Os banqueiros em Portugal deviam agradecer muito ao bom povo português.

Falava de algum conformismo do povo português. Mas o mesmo povo também tem sido capaz de grandes crueldades e de cortar com certos ciclos da história de uma forma radical. Acha que isso pode acontecer num sistema como o actual? Parecendo que estou a desviar a conversa vou a ponto. Em televisão, a falar sobre as grandes crises do país, nas fases mais críticas, tive programas com audiências próximas dos melhores jogos de futebol. Porque as pessoas estavam mesmo aflitas com a sua carteira e com a sua vida. Entretanto passa a crise, como é o período de agora, e parece que voltamos ao tempo de 2007, quando as pessoas não queriam saber. As pessoas não queriam ouvir. Achavam que as coisas iam dar certo. E depois deu errado.

E corre-se o risco de se repetir a história? Não estou a dizer que os políticos actuais vão fazer as mesmas asneiras. Acho que a geração actual de políticos não vai deixar que aconteça o mesmo. Mas tenho muitas divergências com eles, pois a longo prazo não estão a resolver os problemas estruturais. Não têm coragem para resolver.

A redução do número de deputados, por exemplo? Absolutamente. E mais: como é possível os deputados não terem incompatibilidade com a sua actividade de advocacia? Dou outro exemplo directo. De início, as inspecções automóveis eram mais espaçadas nos anos e de repente aparecem de ano a ano a partir de determinada idade do veículo. Depois aparece a conversa de que os motociclos também têm que lá ir, depois são os tractores agrícolas… O que é que isto quer dizer?

Há uma cedência a determinados lóbis? Quem é que controla metade dos centros de inspecção automóvel? A Controlauto! Qual é o grupo económico que controla a Controlauto? A Brisa! E há muitos outros exemplos. Não vale a pena estar com rodeios. Isto é negócio para o Estado e para amigos que dominam a máquina do Estado. E a matriz do Governo actual vai muito por aí, estando também a fazer coisas bem feitas, como convencer o PCP e o Bloco de Esquerda de que, para ficarmos no euro, temos que cumprir as exigências do tratado orçamental. Embora digam que estão a fazer o contrário.

Há leis feitas para beneficiar determinados interesses

Nunca se sentiu ameaçado por expor tão abertamente as suas opiniões? Não. Houve alguns pequenos episódios mas nada de ameaças a sério. Em Portugal não existe a Máfia no sentido italiano, ou até espanhol ou do sul de França, que é muito complicada, porque é violenta e mata mesmo.

Já as redes sociais não matam mas moem… Essa é outra vertente, mas, antes disso, deixem-me dizer outra coisa. Em Portugal existem crimes que não são crimes. São imoralidades porque as leis foram feitas de propósito para beneficiar certos interesses. A Judiciária não tem grande possibilidade de atacar certas coisas do crime económico ou financeiro porque aquilo não é crime, não é afronta de leis. Isto é a parte que diz respeito a esse tipo de manipulação do Estado e do que o Estado pode fazer para servir alguns interesses. Outra coisa é certo catecismo nas redes sociais relativo à nossa actividade.

Classificou recentemente as redes sociais como as novas fogueiras da Santa Inquisição. Teve a ver com a minha apreciação sobre a política actual. Há um Governo de um partido de esquerda, com outros dois partidos a apoiar, que verdadeiramente pratica uma política moderada, de centro-direita e de centro-esquerda. É uma política que respeita as exigências da União Europeia e do tratado orçamental. Uma política que é mantida com um discurso completamente desfasado, que é puro marketing político. Porque na realidade há austeridade mas o Governo e os partidos que o apoiam dizem que não.

O que o José Gomes Ferreira contesta. Eu sempre disse que havia austeridade e fiz uma entrevista ao primeiro-ministro em que provei que havia, mostrando os vários pacotes de austeridade que vêm já do tempo de José Sócrates. As pessoas dizem que Passos Coelho cortou salários mas é mentira. Quem os cortou foi José Sócrates no pacote de austeridade de 29 de Setembro de 2010. As pessoas não querem saber e não querem que se lhes diga. Mas, como é óbvio, Passos Coelho e Paulo Portas carregaram no acelerador da austeridade. E, como já disse várias vezes, a maior parte das pessoas não merecia o que lhe aconteceu.

Voltando às redes sociais… Ousei confrontar o primeiro-ministro com isso, o primeiro-ministro contestou e nas redes sociais foi tudo dizer que o jornalista foi completamente arrasado, dizimado, posto a ridículo pelo primeiro-ministro. E agora vieram Pedro Nuno Santos e João Galamba dizer que há austeridade em vigor. Voltei a escrever um artigo que está também a fazer o seu percurso, sendo arrasado com críticas nas redes sociais.

Numa conversa informal, à margem de um congresso de jornalistas há vinte anos, António José Teixeira disse que um jornal só pode ser bem dirigido por um jornalista. Qual é a sua opinião? Tinha e tem razão. Sou jornalista e fiz o meu percurso de conhecimento em matéria económica porque sempre gostei dessa área que determina muitas vezes o que acontece na política, na parte social e até cultural. Acho que um jornal deve ser dirigido por um jornalista porque este está desprendido de uma visão de classe e de uma visão de certa forma académica, no sentido de estar orientada para determinada área do conhecimento. De certa forma, tem que ter atenção às várias áreas do saber humano.

Que análise faz da classe jornalística? A classe jornalística tem o melhor e o pior. Sempre foi assim mas agora há especificidades. Temos jornalismo independente, temos excelentes valores no jornalismo, temos redacções com gente experiente, já com idade, que complementa e dá valor acrescentado muito importante. Aquela história de se fazer tudo pela rama, tanto em televisão como em rádio, internet ou jornais, e de serem todos produtores de notícias, muitas e diversificadas e pela rama, não sustenta os projectos editoriais.

O que é preciso mais? Tem que haver referências do jornalismo, pessoas que vão mais fundo, a quem os mais novos perguntam. São fundamentais nas redacções. E depois temos uma nova geração, formada nas universidades, que tem pouca prática mas muita vontade de trabalhar. Muito curiosos, muito observadores e com a grande vantagem de se informarem permanentemente em várias plataformas.

Que pontos fracos aponta à classe? Temos os vícios da classe, aqueles que se deixam fechar numa redoma de intelectualidade, às vezes nos grandes centros urbanos. Frequentam sempre os mesmos sítios, ouvem sempre os mesmos políticos, ouvem sempre os mesmos fazedores da cultura, alguns especializados em sacar subsídios e que estão sempre a dizer que o Estado tem que apoiar. Depois, quando vemos as obras de arte que fazem, aquilo é quase tudo lixo, porque ninguém quer ver, não presta.

Não é isso que está a acontecer com as nossas televisões? Não, isso é outra coisa. Estou a falar dos produtores de cultura e daquilo que é visto por certa intelectualidade, que inclui também um certo jornalismo, que se fecha em redomas e que não se abre ao mundo. Que acham que tudo o que é novidade é uma ameaça.

Quando faz um telejornal não se sente frustrado por estar a repetir matérias que passam nas outras televisões? As aberturas dos jornais principais das televisões dificilmente seriam muito diferentes umas das outras. E se fossem muito diferentes alguém estaria a ser incompetente. Porque normalmente são os temas que tocam no bolso das pessoas e que representam mudanças positivas ou negativas na governação e na sociedade. Há temas que são incontornáveis.

Os telejornais hoje vão para além do noticiário puro e duro, derivando também para o entretenimento. Quando damos a notícia pura e dura e depois na segunda parte damos aquilo a que chamo o fresco, a pintura da sociedade em reportagem, aquilo é informação. É a maneira de as pessoas verem como as pessoas de outro distrito ou concelho vivem. A maneira de cozinhar, a maneira de fazer um arranjo de flores é informação? Há quem ache que é mais entretenimento, eu acho que é informação.

Como se sente na pele de figura pública? Não sou daquelas pessoas que vão na rua e que acham uma chatice serem reconhecidas. Pelo contrário, é um prazer enorme. Nós existimos para os espectadores. Não podemos deixar de lhes dar atenção. E respondo aos mails que me enviam. Às vezes tenho cada discussão… Porque às vezes há pessoas que continuam na deles mas de uma forma ofensiva. Com outras construo relações de amizade à distância e às vezes até me encontro com elas. A minha ausência das redes sociais não é por desrespeito às pessoas, pois há lá muita gente boa a dar a sua opinião, mas sim porque isso iria obrigar-me a despender muito tempo para responder a todos. Iria ter uma dispersão enorme e não conseguiria concentrar-me.

A história exclusiva sobre Ricardo Salgado e Paulo Portas que deixou de o ser

José Gomes Ferreira tem quase pronto um novo livro. A revelação foi feita nesta entrevista: “Acho que não falei ainda disto em público. O livro já está escrito. É sobre a relação entre os políticos e os banqueiros, na fase anterior, em que foram feitas as asneiras, e na fase em que se teve que resolver os problemas. Estou na fase de aturar os políticos visados. Alguns reagem com alguma amargura. Uma das histórias, para minha grande pena, foi tornada pública há pouco tempo. É sobre um célebre encontro entre Ricardo Salgado e Paulo Portas, exactamente no dia a seguir à sua demissão irrevogável. Paulo Portas foi encontrar-se com Ricardo Salgado na sede do BES. Tinha esta história guardada. Ouvi-a há três anos, guardei-a porque aquilo mexia com os protagonistas, demorei três anos a escrevê-la, está escrita e só vai ser publicada em Setembro. Acabou por ser conhecida porque houve acesso pelos jornalistas aos depoimentos no âmbito da Operação Marquês. E eu fiquei muito preocupado porque alguém esvaziou o meu livro… (risos). Mas voz amiga, o Ricardo Costa (director de informação da SIC), disse-me que estava enganado e que ainda bem que esse episódio era conhecido pois ainda potencia mais o meu livro, que abarca o período entre 2007 e 2017”.

“Nunca quis ser político mas faço política todos os dias”

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