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“Não somos super-homens nem carne para canhão”

“Não somos super-homens nem carne para canhão”

Artur Sardinha é bombeiro na corporação de Alverca do Ribatejo. Brincalhão, amigo do seu amigo, homem de família e dono de uma calma impressionante sob stress, mostra que os bombeiros não importam só nos incêndios no Verão e que um agradecimento sincero daqueles que ajudam é muito mais importante que recompensas monetárias.

Artur Sardinha, 54 anos e bombeiro de 1ª nos Bombeiros Voluntários de Alverca do Ribatejo (BVA), nunca esquecerá o dia em que conseguiu que um helicóptero do INEM aterrasse em plena Autoestrada do Norte (A1), para ajudar a socorrer um ferido grave. O acidente deu-se a 22 de Novembro de 2010, entre um veículo ligeiro e uma moto na qual seguia um casal de jovens que ia para a concentração motard em Faro. Artur foi o último bombeiro a chegar ao local e ficou impressionado com o estado do jovem do casal.
“O fémur da rapariga estava bastante escavacado e com a artéria femoral visível e eu pensei ‘Não podemos tocar nela, podemos rebentar a artéria e ela morre em menos de três minutos”. Pediu então aos colegas que a estabilizassem e ligou ao Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) a pedir mais médicos para o local. A negociação foi difícil e, em último caso, o CODU acedeu a enviar o helicóptero do INEM, tendo o trânsito sido cortado pela GNR nos dois sentidos para permitir a aterragem. Mais tarde, Artur soube que o casal tinha recuperado completamente.
“A vida passa muito rápido e temos de aproveitar todos os momentos ao máximo, respeitando sempre os outros e a nós próprios. Sabe como se aprende isto? Lidando todos os dias com a morte”, defende Artur, que não esquece um dos momentos mais traumáticos que viveu: o acidente ferroviário na Póvoa de Santa Iria, em 1987. “Foi muito traumatizante. Foi com um comboio que ia levar crianças à escola em Lisboa e com um comboio rápido que lhe passou por cima”.
Artur recorda que na época os Bombeiros de Alverca não tinham os equipamentos com que contam hoje, pelo que o processo de retirar as crianças dos escombros demorou e foi psicologicamente difícil, como o é tantos dias na vida de um bombeiro.
Quando leva crianças para tratamento no Instituto Português de Oncologia (IPO), muitas em fase terminal, o coração de Artur também se encolhe de tristeza, e mais ainda depois do nascimento do neto, Enzo, há nove meses. “Depois de alguma criança nos morrer, não temos acompanhamento psicológico nenhum, temos de ser os nossos próprios psicólogos. Mas não somos super-homens nem carne para canhão, somos humanos. Eu também choro, posso é não chorar à frente das pessoas, mas também tenho sentimentos”.

Já teve de socorrer o pai várias vezes
Artur confessa que é sempre complicado quando a pessoa que o chamam para socorrer é o pai, José, de 82 anos. “Já aconteceu várias vezes. A idade começa a pesar-lhe e às vezes tem lipotimias, em que perde a força nos músculos sem chegar a perder os sentidos, outras vezes chega mesmo a desmaiar. Algumas vezes é Artur a socorrê-lo, outras são colegas dos BVA. Também já se deparou com situações semelhantes com outros familiares, menos vezes, e até com amigos: “Nessas alturas ficamos impotentes. Fazemos o que aprendemos que temos de fazer, mas muitas vezes não há hipótese e sentimo-nos completamente impotentes”.
Porém, Artur já foi várias vezes elogiado pelos colegas por manter a calma em situações de grande stress, o que não passa de uma máscara: “Na verdade estou tão nervoso como eles, mas não posso mostrar para eles não se desconcentrarem. A nossa prioridade é ajudar as pessoas, depois no fim pensamos no que se passou e no que fizemos bem ou mal”.
O bombeiro confessa que os incêndios florestais não são de longe tão difíceis como os que ocorrem em casas. “Num incêndio florestal, às vezes as pessoas é que vão à procura do perigo, porque temos formação para saber o que fazer. E costumo dizer aos meus colegas que se for só uma árvore em perigo, é melhor deixar arder. As casas e as pessoas é que é mais complicado. E quando os incêndios são dentro de casa e com vítimas mais complicado é. E já lhes perdi a conta…”.

Parteiro por duas vezes
“Ser bombeiro tem muitas partes más, mas também tem algumas maravilhosas”, reconhece Artur, que já foi feliz a ajudar em dois partos. O primeiro foi há 15 anos, de uma moradora do Bom Sucesso, e ele lembra-se de cada minuto: “Chegámos à casa e o marido da senhora veio à porta receber-nos, pegámos nas nossas coisas e subimos ao apartamento, mas esqueci-me na ambulância do mais importante: o kit de partos!”.
Voltou a correr para o ir buscar, mas quando entrou em casa já o parto tinha começado. “A colega que tinha ido comigo começou a gritar ‘Ó Artur, já se vê a cabecinha!’. Preparámos os lençóis e tudo o que leva o kit de partos e ajudámos a menina a nascer. Foi espectacular, correu muito bem e a bebé veio muito facilmente”. Da segunda vez, há 10 anos, ajudou uma jovem de Alverca que estava a dar à luz no sofá de casa e o parto também correu bem.
Embora seja uma experiência “linda de se ver”, Artur admite que é sempre “pavorosa”: “Não é nada fácil para nós. Só é bonito quando corre bem, mas quando corre mal é horrível. Também já assisti a muitos abortos e é traumatizante”.

Já não se vai para bombeiro pelas mesmas razões de antes

Artur reconhece que quando era novo a entrada para uma corporação de bombeiros tinha motivações diferentes das que regem hoje os jovens: “Vínhamos pela aventura e para impressionar as miúdas. Hoje os jovens vêm encantados pelas ambulâncias e pelas fardas, mas depois as expectativas que o Estado dá desiludem-nos, porque percebem que vêm trabalhar à borla. Sou sincero: hoje se estivesse na pele deles não vinha para bombeiro”. Artur alerta que muitas vezes os bombeiros são maltratados por quem mais lhes deviam agradecer: “Vimos dar o nosso contributo voluntariamente e ainda somos crucificados quando algo corre mal”.
Não são as recompensas monetárias as mais importantes para os bombeiros, mas outro género de agradecimento, como um “obrigado sincero”: “Em Portugal tem sempre de se deitar as culpas do que acontece para cima de alguém. E normalmente quando algo em que estamos envolvidos corre mal, as culpas vêm para cima de nós, bombeiros. Mas muitas vezes não queremos dinheiro, queremos um obrigado! Sabe muito bem quando alguém que ajudámos vem mais tarde ter connosco e diz: ‘Lembra-se daquela pessoa que levou para o hospital? Fui eu!’”.

Foi pelos bailes que se tornou bombeiro

Foi para poder ir aos bailes dos Bombeiros de Alverca que Artur se juntou à corporação. “Aos 18 anos não tinha grande espírito para me tornar bombeiro, mas não havia tantas festas como há hoje nem redes sociais, por isso eu, os meus amigos e o meu irmão José Carlos, que já era bombeiro na altura, vínhamos aos bailes que os BVA organizavam por causa das miúdas”, conta, com o sorriso malandro que não perdeu nos 36 anos que se passaram desde então.
Por coincidência, não foi num dos bailes que conheceu Leonor Sardinha, a esposa, mas sim quando teve de a levar ao hospital. Na altura ele tinha 24 anos e ela 17 ou 18. Era enteada de Manuel Pedro, chefe dos BVA na altura. Artur acompanhava-o muitas vezes nas ambulâncias e um dia ele apareceu no quartel com Leonor, que tinha feito um corte num dedo. “Ela era muito bonita, tinha uns olhos verdes lindos. Enquanto a levava na ambulância só pensava que ela era espectacular, mas quando chegámos ao hospital apanhei uma desilusão: ela tinha namorado!”, recorda Artur. No entanto, e como conversa puxou conversa, acabaram por se apaixonar. Leonor esteve como voluntária nos BVA durante 11 anos e ela e Artur estão casados há 28. Têm uma filha, Melânia, com 25 anos, mãe de Enzo.

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