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“O tabaco é um elo invisível de que as pessoas se querem libertar”

“O tabaco é um elo invisível de que as pessoas se querem libertar”

O Serviço Nacional de Saúde tem vários pontos na região onde proporciona consultas de cessação tabágica. Em Santarém, a responsável é a médica Maria do Carmo Cafede, uma ex-fumadora que conseguiu largar o vício e agora ajuda os outros a fazê-lo.

É ou já foi fumadora? Sim, já fui fumadora.

Como conseguiu livrar-se do vício? Consegui porque, infelizmente, um familiar meu faleceu devido a um cancro do pulmão. Essa situação ficou no meu consciente e no meu subconsciente e um dia, por acaso, pus um cigarro na boca e soube-me mal. Desde essa altura, Setembro de 2005, nunca mais toquei num cigarro. Nem vou tocar.

Foi difícil viver com essa decisão nos primeiros tempos? Eu auto-intitulava-me uma fumadora reles, porque dizia que fumava pouco. Não chegava a 10 cigarros por dia. Havia dias e fins-de-semana inteiros em que não fumava. Achava que quando quisesse deixar de fumar seria fácil. Estava totalmente enganada. Porque mesmo quando se fuma pouco isso causa dependência da nicotina. Sofri um bocadinho com o síndrome de privação, com alguma irritabilidade... Mas os benefícios de deixar de fumar são tão rápidos que em cada dia aparecebemo-nos de uma melhoria. A partir daí decidi que nunca mais havia de fumar.

O fumo do tabaco incomoda-a ou tolera-o com alguma facilidade? O fumo incomoda-me, obviamente. Porque os ex-fumadores, ao fim de algum tempo, recuperam alguma acuidade de sentidos, nomeadamente paladar e olfacto. O cheiro do tabaco é desagradável e a nicotina tem um sabor amargo. Hoje, não consigo estar ao pé de fumadores.

Qual é a primeira coisa que diz a quem quer deixar de fumar? A primeira pergunta que faço é: porquê agora? O que leva a pessoa, naquele dia, a querer deixar de fumar? Qual é a motivação? Porque isso vai determinar a nossa percepção da capacidade que a pessoa tem para deixar de fumar.

E quais são as respostas mais comuns? Passam pela preocupação com a própria saúde e da dos que lhe são próximos, mas também pela questão monetária. As pessoas têm consciência que se não fumarem vão poupar dinheiro. Há uma terceira razão curiosa, que é a das pessoas estarem cansadas de fumar. Cansadas da dependência, de não ter tabaco e de ter que ir comprar. É um elo invisível que as prende e de que se querem libertar.

O facto de ter sido fumadora ajuda-a nestas funções? Dá-lhe outra visão das coisas? Sim e não. Sim, porque, como já passei por isso, posso entender toda a problemática que existe antes do deixar de fumar. A cessação tabágica é um processo de mudança, não é um acto isolado. E, como tal, é programado. Temos seis consultas em três meses e o processo só fica finalizado ao fim de um ano. Não é uma coisa que aconteça automaticamente num dia. E isso pressupõe que analisemos para perceber em que fase do processo de mudança é que o utente está. Nesse aspecto, posso pôr-me no lugar da pessoa e entender algumas dificuldades.

E noutros aspectos não? Não, pois não estou aqui para julgar nem é suposto emitir juízos de valor porque a outra pessoa fuma. Não vou dizer que eu, porque já deixei de fumar, sou superior. A pessoa tem que fazer um processo de mudança e nós estamos cá para ajudar.

Os chamados cigarros electrónicos são uma boa alternativa para se tentar deixar de fumar? Não são boa alternativa porque não constituem alternativa nenhuma. Os cigarros electrónicos foram inventados pelos chineses como uma tentativa de fazerem frente às grandes tabaqueiras americanas e com isso darem a entender que se se fumasse cigarros electrónicos seria uma ajuda para a cessação tabagágica. Veio a comprovar-se que não é verdade.

Os danos para a saúde são iguais aos do cigarro convencional? Os malefícios são exactamente a mesma coisa. Num cigarro dito normal temos cerca de 7300 substâncias. É muita substância para um cigarrinho só. O cigarro electrónico não tem tantas substâncias mas tem algumas delas. A única coisa que pode variar é o teor de nicotina, há vários teores, e também conteúdos sem nicotina. Aí é só mesmo a satisfação da manipulação do cigarro. A nicotina é um produto indutor da dependência física e psicológica mas existem outros componentes no cigarro electrónico, usados para produzir o vapor de água, que são directamente nocivos para o ser humano.

E o que pensa de novos produtos como o tabaco aquecido? No tabaco aquecido a combustão chega apenas a temperaturas de 300 ou 400 graus, muito menos que os 800 a 900 graus do cigarro convencional, e como não se vê fumo assume-se que não há combustão. Mas lá por não vermos não quer dizer que não exista.

O cigarro para os homens é um amigo e para as mulheres é um acessório

O consumo do tabaco tem vindo a aumentar entre as mulheres. Que explicação encontra para essa realidade? Não tenho esse assunto muito aprofundado, mas em termos da formação que nos é dada diz-se sempre que as mulheres têm um padrão de consumo de tabaco diferente dos homens.

Em que medida? Costumo dizer que o cigarro para o homem é um amigo, um companheiro dos maus e dos bons momentos, e que nas mulheres é um acessório, com todo o conteúdo pejorativo ou não pejorativo que possa ter. E não é à toa que uma das terapêuticas usadas na cessação tabagágica - a terapêutica de substituição de nicotina -, nas mulheres tem uma eficiência muito mais baixa do que nos homens. De um modo geral, os homens são mais dependentes da nicotina.

Quando fala no cigarro como um acessório, está a pô-lo quase ao nível do acessório de moda? Exactamente!

Mas em profissões de grande stress, o cigarro não acaba por ter para as mulheres o mesmo significado que tem para os homens. Não é visto como um escape, uma espécie de calmante? Essa é uma visão muito redutora do cigarro em si e do consumo de tabaco. Quase todas as pessoas dizem que consomem tabaco por causa do stress. Actualmente tenho dificuldade em definir stress, porque pode ser muita coisa. Pode ser ansiedade, pode ser frustração... Hoje todos temos um pouco dessas coisas. Mas é verdade que quando se começa a fumar o cigarro ajuda à concentração, dá uma força extra. Só que à medida que vamos continuando a fumar desenvolve-se um processo de tolerância e para se ter aquela concentração já não basta um cigarro, são precisos dois. É assim que vamos aumentando o consumo de tabaco.

Há muita gente realmente a deixar de fumar mas também se nota que há muitos jovens a iniciarem-se cedo no consumo. Dá a ideia que por cada ex-fumador um novo consumidor de tabaco surge. Não, os números são mais baixos. A taxa de fumadores em Portugal rondará os 20%.

Evitar que os jovens comecem a fumar é a principal estratégia de prevenção primária do tabagismo. Isso é fundamental. Existe um programa de prevenção do tabagismo e desde 2005/06 existem estratégias base. Uma é prevenir a entrada no tabagismo. Entrar é mais fácil do que sair. As estratégias começam, ou deveriam começar, ao nível da saúde escolar e mesmo ao nível do Serviço Nacional de Saúde transversal a todas as consultas que se fazem, de saúde materna, planeamento familiar, saúde infantil. Isso deve ser feito desde tenra idade.

Isso por si só não basta. Sim, passa também por proibir toda a publicidade e patrocínios, promover ambientes saudáveis e também a questão do preço. Apesar de não se poder aumentar muito, pois a partir de certo valor aumenta o comércio ilícito de tabaco. As restrições aos espaços onde se pode fumar, que progressivamente têm aumentado, também são eficazes. Aliás, os únicos efeitos até este momento que comprovadamente baixaram o consumo de tabaco têm a ver com o preço do tabaco e a restrição de fumar em espaços fechados.

Na sua percepção, a colocação de imagens chocantes nos maços de tabaco produz algum efeito? Essas medidas foram copiadas, no bom sentido, da prevenção rodoviária. Sabemos que mostrar os locais de acidentes e os carros acidentados tem um impacto significativo em termos de prevenção rodoviária. E penso que terá a ver com isso, com o impacto. A verdade é que as pessoas, embora saibam que o tabaco faz mal, não têm a verdadeira percepção de todas as doenças associadas ao tabaco, como a diabetes, o cancro da bexiga, doenças de rins ou problemas nas artérias dos membros inferiores que podem levar a amputações.

Uma alfacinha no Ribatejo

É no Centro de Diagnóstico Pulmonar que funciona a consulta de cessação tabágica em Santarém, que tem como responsável a médica Maria do Carmo Cafede. Um serviço garantido pela Administração Regional de Saúde através do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) da Lezíria. A primeira consulta ocorreu a 19 de Maio deste ano. Até ao momento, 41 utentes procuraram esse serviço. E a tendência é para aumentar. Para marcar consulta, basta contactar os serviços ou através do médico de família. Em Santarém é às segundas e sextas das 9h00 às 13h00 e às quartas das 14h00 às 18h00. Há consultas presenciais e consultas telefónicas. O processo leva um ano.
Maria do Carmo Cafede, casada e mãe de uma filha, nasceu em Lisboa mas vive em Santarém há muitos anos. “Gostei, adaptei-me e fiquei”. É especialista em medicina geral e familiar. Pertence aos quadros do ACES Lezíria.

“O tabaco é um elo invisível de que as pessoas se querem libertar”

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