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Bombeiros voluntários são cada vez menos e o futuro é a profissionalização
Existem corpos de bombeiros que fazem recruta conjunta para rentabilizar meios

Bombeiros voluntários são cada vez menos e o futuro é a profissionalização

As exigências em termos de sacrifícios da vida pessoal afastam candidatos. O Dia Nacional do Bombeiro assinalou-se a 11 de Setembro, terça-feira. O MIRANTE ouviu vários bombeiros da região, com experiência de décadas, que actualmente desempenham cargos de comando. Cada um deles contou algo que ajuda a perceber melhor o todo que é o universo daquela actividade.

Há umas décadas envergar uma farda de bombeiro dava estatuto social e isso ajudava a atrair candidatos. Actualmente o estatuto social é conseguido mais facilmente de outras formas e além disso os jovens passaram a ter outros interesses e isso, a par da falta de espírito de sacrifício, está a criar uma crise no recrutamento de novos voluntários em muitas corporações de bombeiros da região.
A situação é tão crítica que já há corpos de bombeiros que estão a fazer recrutas conjuntas, para rentabilizar meios e instrutores, perante a diminuição da procura, como acontece, por exemplo, no concelho de Vila Franca de Xira e na zona da Lezíria do Tejo.
Para agravar o problema, dos poucos interessados em entrar para uma recruta, que dura cerca de um ano, cerca de metade desiste antes da sua conclusão e dos que terminam a formação e entram como estagiários para os quartéis, sobram poucos ao fim do primeiro ano.
Em Rio Maior está a iniciar-se uma recruta depois de um ano de interregno por falta de inscrições suficientes. Dos dezoito elementos inscritos, oito desistiram antes da entrevista e de prestarem provas físicas, duas formas de selecção que a corporação decidiu implementar. Pela experiência dos últimos anos, o segundo comandante dos Voluntários de Rio Maior, Luís Coelho, já se dá por satisfeito se destes, houver dois ou três que cheguem a entrar para o quadro activo.
No ano passado os Voluntários de Almeirim juntaram-se aos Municipais de Alpiarça e terminaram recentemente uma recruta conjunta de oito elementos, que estão agora a fazer o estágio com uma duração mínima de três meses.
Aquelas corporações ainda vão conseguindo fazer formação de novos bombeiros com alguma regularidade mas no Cartaxo, nos bombeiros municipais, já só se fazem recrutas de três em três anos, o que leva o comandante, David Lobato, a dizer que o sector tem de ser alterado e que mais de metade dos efectivos das corporações de voluntários têm que ser constituídas por profissionais.
O desinteresse alastra às zonas mais populosas, como acontece em Vila Franca de Xira onde as recrutas já são feitas em conjunto para todas as corporações do concelho. Já não é de agora que o sector deixou de ser apelativo, como refere o comandante de Castanheira do Ribatejo, Mário Batista, devido às exigências que são feitas aos voluntários, falta de incentivos e até às imagens negativas da actuação dos bombeiros, na comunicação social, como admite Hugo Teodoro, comandante dos Municipais de Alpiarça.
Os novos bombeiros quando entram para o quadro activo têm a obrigação mínima de fazer por ano 40 horas de formação e 160 horas de serviço. E a troco de quê? “De uma mão cheia de nada”, refere Luís Coelho de Rio Maior.
As exigências da formação, com horários normalmente em duas ou três noites durante a semana e meio dia ou um dia ao fim-de-semana, durante nove meses ou um ano, leva muitos dos poucos interessados a desistirem.
“Antigamente, como aconteceu comigo, a opção de ir para os bombeiros era uma maneira de sairmos de casa e da alçada dos pais aos 16 ou 17 anos. Actualmente os jovens só podem começar a ajudar a fazer serviços aos 18, o que é desmotivante para quem não atingiu esta idade e anda pelo quartel sem poder fazer nada”, explica.

Alguns quartéis ainda resistem ao desinteresse
Na região há dois corpos de bombeiros - os de Azambuja e de Abrantes - que ainda vão conseguindo cativar novos bombeiros. O comandante de Azambuja, Ricardo Correia, diz que no caso da sua corporação tal facto se deve ao facto de ele tentar adaptar os horários das formações às disponibilidades dos candidatos. O comandante de Abrantes, António Manuel Jesus, considera que a capacidade em cativar novos elementos tem a ver com as zonas geográficas e também com a dinâmica das corporações.
Apesar de reconhecer que há muitas desistências, principalmente no início, o comandante de Abrantes, garante que tem conseguido recrutar em média oito elementos por ano. E destes, sublinha, só dois, no máximo, é que não entram no quadro de voluntários.
Na corporação de Azambuja, com 45 bombeiros no activo, começou em Março e termina em Outubro uma recruta com 14 elementos e até agora nenhum desistiu. E está para começar uma outra com 12 candidatos.

Carlos Gonçalves

“Se observarmos rigidamente as regras de segurança dificilmente temos sucesso”

Carlos Gonçalves, 58 anos, comandante dos Bombeiros Municipais de Tomar

Como foi o seu baptismo de fogo?  Lembro-me de num dos primeiros combates a um incêndio os meus pais me irem buscar ao local do incêndio para seguirmos de férias para a praia. Fui de fato macaco, coberto de fuligem e só me lavei no mar.
Há quanto tempo é bombeiro? Tenho 58 anos, 41 dos quais como bombeiro. Estive na corporação de Vila Nova da Barquinha entre 1977 e 2015 e desde essa altura até agora aqui em Tomar. Cheguei a comandante dos Bombeiros Municipais de Tomar já com 23 anos de experiência no comando dos Bombeiros da Barquinha. Mas, atenção, na prática comecei a ser bombeiro nos cadetes, com cerca de 8 anos. Fui sempre bombeiro.
Quanto está a combater um incêndio em que pensa? Quando estamos no terreno temos a sensação que o espaço que nos rodeia é muito curto, ficamos com uma espécie de visão de túnel e só nos concentramos no combate. Hoje em dia somos mais cautelosos relativamente à segurança. Antigamente o bombeiro era mais aguerrido no combate sem olhar a estas questões. Lembro-me perfeitamente que na década de 80 ainda não existiam equipamentos de protecção individual, ia-se para o fogo de sapatilhas.
A segurança é primordial? É, mas não podemos trabalhar em completa segurança. Se o fizermos podemos deixar passar janelas de oportunidade para resolver o incêndio. Os incêndios têm uma dinâmica muito rápida e se observarmos rigidamente as regras de segurança dificilmente conseguimos ter o sucesso. A verdade é que, por vezes, temos que arriscar.
Há muita pressão das populações na altura dos incêndios? As populações estão cada vez mais despertas para a acção dos bombeiros mas quando o incêndio lhes chega à porta a sua casa é sempre mais importante que a do vizinho. Mesmo assim ainda há muito respeito pelo bombeiro e pelo seu trabalho. A campanha de limpeza levada a cabo este ano serviu principalmente para motivar e mobilizar muita gente para a problemática dos incêndios. Este ano houve uma participação mais activa das populações no combate aos incêndios. Muitas vezes quando os bombeiros chegavam os populares já tinha apagado o fogo.
A sirene ainda toca? Funcionamos com brigadas profissionais, de segunda a sábado, entre as 06h00 e as 21h00. Entre as 21h00 e as 06h00 está de serviço uma equipa em regime de voluntariado. Ao domingo há uma brigada de 14 ou 15 bombeiros de prevenção das 06h00 às 21h00. Quando é necessário chamar reforços são contactados por telemóvel mas em 99% das ocorrências usamos o pessoal de serviço. A sirene toca todos os dias às 12h00, apenas por tradição. Era o aviso da hora de almoço de antigamente, quando havia muitas fábricas a laborar na região. Agora nem sequer coincide com o nosso horário de almoço.
Os Bombeiros de Tomar são municipais. O que é que isso implica? É penalizador para a câmara municipal porque não tem os mesmos apoios que o Ministério da Administração Interna dá a uma Associação Humanitária. Tomar tem cerca de 40 mil habitantes. Nós temos uma dezena de ambulâncias e a área do socorro pré hospitalar tem apoio do INEM. Tirando isso, e os casos dos incêndios rurais, em que recebemos todos os mesmos apoios, o município não tem qualquer tipo de apoio para a protecção civil.
Os bombeiros deviam ser todos profissionais? Em 1999 a Liga dos Bombeiros Portugueses quis fazer um trabalho de caracterização do trabalho dos voluntários para encontrar formas de o motivar e expandir. Referi, na altura, que sem haver uma base profissionalizante o voluntariado tem dificuldade em conseguir manter-se. Quase vinte anos depois mantenho a mesma opinião. A velocidade a que vivemos hoje traz uma dimensão incomparável de serviços aos bombeiros que só se resolve com uma resposta profissional. Por outro lado os comportamentos também se alteraram. Antes as pessoas ficavam em casa à espera que Deus as chamasse. Hoje, se tiverem uma dorzita chamam logo os bombeiros. O voluntariado deve continuar a existir como escola de vida mas o caminho é a profissionalização.
Como é que as empresas privadas encaram o voluntariado do seu pessoal nos bombeiros? O cidadão comum tem dificuldade em ser voluntário. As empresas, que em tempos eram colaborantes, agora já não o são. O trabalhador que é bombeiro, ao deixar o seu posto para ir combater um incêndio pode comprometer a actividade da empresa e os patrões não gostam.
Qual o nível de formação académica dos bombeiros da corporação? Mais de 20% dos bombeiros que entraram na última recruta têm estudos superiores mas a maioria tem apenas o ensino obrigatório.
A herança familiar da profissão ainda pesa nos dias de hoje? Essa tradição está a perder-se, principalmente nas cidades. Nas vilas ainda continua a acontecer porque os bombeiros acabam por ser uma escola de vida cujos valores são passados de geração em geração.

Diamantino Duarte

“Os bombeiros não foram criados para andar a transportar doentes não urgentes”

Diamantino Duarte é presidente da Associação dos Bombeiros Voluntários de Santarém

Qual a sua opinião sobre a crescente utilização de bombeiros para fazer transporte de doentes não urgentes que já levou a que algumas corporações, como a de Constância, sejam autênticas centrais de transporte? Os bombeiros existem para prestar socorro urgente em caso de incêndios ou acidentes, por exemplo. Não existem para fazer transporte de doentes não urgentes. O transporte de doentes apareceu por necessidade de gerar receitas, uma vez que, infelizmente, as entidades responsáveis não comparticipam nas despesas das associações com montantes suficientes para elas sobreviverem.
Qual é a situação financeira dos Bombeiros Voluntários de Santarém a que preside? Estamos a passar algumas dificuldades financeiras porque abdicámos muito do transporte de doentes para reforçarmos os meios de socorro. Temos que ser coerentes com o que defendemos. Neste momento temos um défice de três mil euros por mês e só nos vamos aguentando graças à Câmara de Santarém que, no mandato de Ricardo Gonçalves, tem sido um bom apoio para as corporações de bombeiros.
Transportar doentes pode evitar situações como a vossa. Em certos casos evita mas o transporte de doentes também pode dar prejuízo. O preço que é pago ao quilómetro não paga a despesa. Eu já fiz as contas e os 58 cêntimos não chegam. Quando fazem muitos transportes há um volume de dinheiro que dá para “enrolar” mas a factura vai chegar, mais tarde ou mais cedo.
Quer dizer que há corporações a ter prejuízo por fazerem transporte de doentes não urgentes? Não sei. O que eu sei é que o preço é baixo e mesmo assim há quem faça o serviço abaixo da tabela. A corporação de Pernes, por exemplo, presta serviço de transporte de doentes ao Hospital de Santarém abaixo da tabela dos 58 cêntimos. O hospital abriu o concurso e Pernes concorreu com um preço inferior só para o ganhar. Andámos a lutar através da Liga dos Bombeiros Portugueses, com negociações extremamente difíceis com o Ministério da Saúde, para que o custo do quilómetro fosse estabelecido com determinados valores e depois são as próprias associações que furam o acordo?! Eu não posso aceitar isso!!
Acha que faz sentido haver duas corporações de bombeiros na cidade de Santarém? Acho que com o dinheiro que se gasta em protecção civil no concelho de Santarém as condições que nós disponibilizamos à nossa população estão muito longe de serem equilibradas. Eu defendo que haja uma central de coordenação de todos os meios de socorro num só sítio. O dinheiro que se gasta com os bombeiros municipais podia ser distribuído pelas três corporações e seria uma mais valia.
É devido à falta dessa central de coordenação que, por vezes, as duas corporações de bombeiros da cidade acorrem ao mesmo local? Quando as pessoas estão aflitas uma liga para os municipais e outra telefona para os bombeiros voluntários e se cai aqui uma chamada de urgência ninguém da central vai perguntar aos municipais se alguém já lhes telefonou.
Não acontece em acidentes rodoviários, por exemplo. Nos acidentes rodoviários não acontece porque existe uma grelha de saída. A chamada cai no 112 que faz accionar os meios e há uma grelha de saída. Sabemos que a primeira ambulância é a dos municipais. Já o desencarceramento é com os voluntários. Aí está definida a coordenação do CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes).

José Nepomuceno

“Custa muito ver pessoas a dizerem mal de nós na televisão depois de um incêndio”

José Nepomuceno é Comandante dos Bombeiros Voluntários de Benavente

Alguma vez sentiu medo no combate a um incêndio? Medo não, mas tenho um grande respeito e tento estar sempre concentrado e alerta porque não somos nós que controlamos as chamas. É o vento, as temperaturas… Quando há perdas de vidas ou mesmo de habitações o sentimento não é o mesmo de quando se perdem hectares de floresta. É isso que me leva a ter de agir rápido para que essas situações não aconteçam.
Depois de um incêndio o que sente quando vê o que se passou nas televisões? Custa-me ouvir certas coisas, principalmente pelos meus homens. Eles já sofreram no terreno e depois ligam a televisão e sofrem ainda mais por causa daquilo que ouvem. Diga-se o que se disser não vão encontrar bombeiros parados num incêndio e se pararem é por exaustão.
Os bombeiros estão muitas vezes perante situações traumáticas. Quais são para si as que mais chocam? Tudo o que se refere a acidentes com crianças. Acho que é o que mais nos afecta a todos. Tenho 49 anos, sou bombeiro há 32 e comandante há quatro mas nunca conseguirei deixar de ficar afectado por situações que envolvam crianças.
Quando um bombeiro tem que socorrer um assassino, um ladrão ou um violador, pensa nisso? Penso que não há ninguém que fique indiferente a isso mas esta é a nossa missão e temos que a cumprir. Não nos compete ajuizar nem decidir sobre quem merece ou não ser socorrido. A nós compete-nos socorrer e é o que fazemos. Mal de nós se não o fizéssemos.
Concorda que deva existir acompanhamento psicológico frequente aos bombeiros? Concordo a duzentos por cento. Fala-se muito mas são poucos os que passam por cá e perguntam se precisamos de ajuda. Vivemos coisas que não se apagam. E o problema é que quem necessita de ajuda não a vai procurar e nem sequer admite que precisa dela. Já há corporações a fazer testes de avaliação psicotécnica aos candidatos a bombeiros. Nós por enquanto ainda não fazemos.

Bombeiros de Constância aceitam designação de empresa de transportes

Os Bombeiros Voluntários de Constância servem uma população de quatro mil pessoas e têm 18 ambulâncias para transporte de serviço de transporte de doentes não urgentes. O comandante, Adelino Gomes, aceita que se refiram à corporação como uma verdadeira empresa de transporte de doentes mas justifica a opção.
“Podemos considerar que funcionamos como uma empresa e que temos que ser rentáveis. Isso acontece porque temos que pagar as despesas e temos que suportar os custos com o socorro que o Estado não paga. E também temos que ter dinheiro para trocar uma ambulância por outra, passados três anos, depois dela perfazer um milhão de quilómetros”, explica, acrescentando que o socorro nunca foi descurado.
“Temos seis ambulâncias de socorro e mais uma emprestada à corporação de Salvaterra de Magos. A nível de combate a incêndios e de emergência pré-hospitalar não falhamos”, afirma.
Adelino Gomes diz ainda que a opção por entrar no “negócio” do transporte de doentes não urgentes também teve como objectivo fazer aumentar o corpo de bombeiros. “Quando cheguei tínhamos quatro ou cinco ambulâncias mas a vontade de crescer era tão grande que começámos a adquirir três ambulâncias por ano. Agora é o que se vê”, sublinha o comandante de 63 anos que se iniciou como aspirante a bombeiro em 1975 na corporação que agora comanda.

Bombeiros voluntários são cada vez menos e o futuro é a profissionalização

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