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Amanhar a terra e pescar também são trabalhos de mulher
Guilhermina Carvalho nunca se intimidou de meter as mãos na terra

Amanhar a terra e pescar também são trabalhos de mulher

Instituído em 1995 pela ONU o Dia Internacional da Mulher Rural assinala-se a 15 de Outubro

Emília Sequeira fez-se pescadora aos nove anos para ajudar a sustentar a família. Guilhermina Carvalho meteu as mãos na terra aos sete anos e nunca mais parou. Mais do que um género, ambas partilham uma filosofia de vida: são mulheres rurais.

“Não sei ler nem escrever, não houve tempo para isso”

Emília Sequeira é a mulher que içava as redes, vendia o peixe nas ruas de Vila Franca de Xira e cuidava de quatro filhos. O rio Tejo não a fez rica, mas é dele que lhe vem a saudade das noites aflitas em que era embalada pelas águas agitadas. Nasceu entre redes e barcos de pesca, uma menina no meio de nove irmãos. Natural de Salvaterra de Magos, tornou-se pescadora aos nove anos para ajudar a sustentar a família que vivia exclusivamente do que o Tejo lhe dava.
Hoje, aos 72 anos, já não arrisca enfrentar os tormentos de outrora, mas todos os dias deixa a sua casa, na Praia dos Pescadores, na Póvoa de Santa Iria, e vai até ao cais ver os pescadores a partir e a atracar. “Já corri tanto atrás da maré. Agora vejo tudo ao longe, na minha cabeça e imagino que me estou a preparar para entrar no mar”, conta Emília.
Nunca foi à escola e o tempo de criança escapou-se entre as mãos gretadas do frio e das redes de pesca que ajudava a puxar. “Não sei ler nem escrever, não houve tempo para isso. Se tenho pena? Tenho, mas agora é tarde”, diz a O MIRANTE.
Alternativas de emprego nunca surgiram nem as procurou. Limitou-se a seguir as pisadas do seu pai e da sua mãe apesar de saber que não ia enriquecer a pescar e a vender peixe. Emília chama-lhe “a vida dos pobres” e o pior é quando o peixe não vai à rede e a família fica sem nada para vender ou comer. Nessas alturas, Emília “chorava muito e às vezes ainda ralhavam uns com os outros”, embora soubessem que a culpa não era de nenhum.
No barco trabalhava, dormia e comia. “Ficávamos todos apertadinhos no colchão de esponja para fugir ao frio que fazia em noite de tempestade”, recorda. “Pior era quando estávamos ensopados em água e a roupa da cama estava ainda mais molhada”. Isso era quando a água entrava proa dentro e os fazia tremer pelo frio, mas sobretudo pelo medo. Nessas alturas, Emília confessa que entre lágrimas rezava e pedia para escaparem àqueles tormentos.
Foi também na faina que conheceu o homem da sua vida. “Foi um casamento arranjado por um tio pescador, tinha eu 16 anos. Juntei-me com ele e casámos passados uns anos”. Manuel Pedrosa faleceu há ano e meio. Foi com ele que Emília passou mais anos a pescar e, quando ele não podia, porque o cansaço ou a doença o venciam, era ela que assumia o leme e atracava o barco.
Os vários barcos que tiveram, como o Samora e o Ana Maria II, foram a casa de Emília e Manuel até aos trinta anos. “Só depois tivemos uma palhota de madeira junto ao cais, mas na maioria das noites era no barco que dormíamos”, conta.
Tiveram quatro filhos que foram à escola, mas desde cedo também aprenderam a arte piscatória. Às duas filhas cabia ainda a responsabilidade de cuidar da casa, dos irmãos e de preparar a comida para a família. Uma filha e um filho seguiram o exemplo dos pais e dedicam-se exclusivamente à actividade piscatória.
Emília vendeu os barcos, já não anda de cesta à cabeça e balança na mão pelas ruas de Vila Franca de Xira a regatear o linguado e o camarão ou nas lotas a tentar vender o peixe ao melhor preço. Agora é a vez dos filhos. Emília gosta de passar o tempo a “admirar as fotografias dos barcos” e a sonhar. “A sonhar que estou com o meu Manuel e que bem cedo seguimos para o cais. Entramos no barco e já não sabemos quando voltamos a terra”.  

Emília Sequeira nasceu entre redes e barcos de pesca

A matriarca de uma família de agricultores

Olhando para os cativantes olhos azuis e o sorriso constante de Guilhermina Carvalho, 66 anos, ninguém diria que a agricultora já teve de passar por momentos muito difíceis. Primeiro o cancro do marido, diagnosticado aos 44 anos e, passados sete anos, a morte, obrigando-a a arregaçar ainda mais as mangas para que não faltasse nada em casa. Talvez por isso, os seus dois filhos, ambos agricultores de profissão, sintam grande orgulho da mãe.
Nascida e criada em Marinhais, Salvaterra de Magos, é a mais velha de três irmãos. Guilhermina Carvalho não nasceu num berço de ouro, talvez por isso nunca se intimidou com o meter as mãos na terra, apesar do seu sonho ter sido sempre continuar os estudos. Afinal, era boa aluna e até gostava muito de aprender. Começou primeiro por ir para as searas de arroz do seu pai entre Porto de Muge e Setil (Cartaxo), nas férias da escola, para preparar os almoços dos trabalhadores e lavar a loiça, e, mais tarde, já agarrava em enxadas.
Por volta dos 17 anos apaixonou-se e aos 19 anos casou. “O meu marido ainda estava mais ligado à agricultura do que eu e isso fez-me continuar a lidar a terra”, adianta enquanto vai lembrando o seu dia-a-dia antes de enviuvar. “Ainda hoje não sei onde ia buscar tanta energia”, confessa.
Guilhermina acordava pelas seis da manhã para dar de comer aos porcos e borregos, depois preparava os filhos para irem para a escola, preparava o almoço e ia para o campo. Quando chegava a casa tratava dos filhos, dava de comer aos animais e fazia as tarefas domésticas. “Sempre consegui conciliar a lide doméstica com a assistência dos meus filhos e o trabalho no campo, mesmo já depois do meu marido falecer aos 51 anos”, admitiu a agricultora.
Actualmente, com vários terrenos em Marinhais e no Escaroupim (Salvaterra de Magos), e já com dois netos que também ajudam nos cultivos, Guilhermina admite que a agricultura nunca a impediu de ser mãe, avó e mulher. “Mesmo trabalhando no campo nunca deixei de passar a ferro, de fazer os almoços, de estar com o meu marido, de brincar com os meus netos e de me arranjar”, adianta a agricultora de Marinhais.

Amanhar a terra e pescar também são trabalhos de mulher

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