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“Deixem as pessoas com gaguez dizerem tudo o que têm a dizer sem as interromper nem mostrar impaciência”
foto DR

“Deixem as pessoas com gaguez dizerem tudo o que têm a dizer sem as interromper nem mostrar impaciência”

Maria Fronteira é terapeuta da fala e explica que em alguns casos a gaguez pode ter tratamento.

Falar em público, falar com um desconhecido ou participar nas aulas podem provocar vergonha e embaraço a uma pessoa com gaguez. A gaguez não afecta só a fala, mas sim o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa que gagueja. A propósito do Dia Internacional da Gaguez, que se assinala a 22 de Outubro, Maria Fronteira, terapeuta da fala, especializada em motricidade orofacial, na Clinicalm, em Almeirim, explica a O MIRANTE o que é a gaguez, porque se gagueja e como um tratamento adequado pode ajudar uma pessoa com gaguez a falar sem “interrupções”.

O que é a gaguez?
A gaguez é uma perturbação da comunicação (da fluência), caracterizada pela interrupção do fluxo natural da fala (discurso), ou seja, existem várias paragens que podem ter a forma de repetição (é é é um carro), bloqueios (b______boa noite) e prolongamentos (amanhã vai chhhhh chover), afectando o débito e o ritmo da fala. Podem ainda observar-se movimentos faciais ou corporais enquanto a pessoa fala.
A pessoa sabe exactamente o que quer dizer, mas a palavra não sai ou fica presa.
Porque gaguejamos?
Existe uma grande componente genética. A maioria das pessoas que gagueja tem familiares com a mesma condição. É uma alteração de base neurobiológica, ou seja, o cérebro processa a fala de uma forma diferente das pessoas que não gaguejam, não tendo por base componentes emocionais. Aliado a estes factores, devemos ter em conta as influências ambientais e o desenvolvimento da linguagem. Todos estes factores irão contribuir ou não para uma predisposição para gaguejar.
De que forma pode a gaguez condicionar a vida das pessoas?
A gaguez pode ter um grande impacto na qualidade de vida e na auto-estima da pessoa que gagueja. Tarefas simples como telefonar a alguém, pedir direcções ou fazer um pedido no café pode ser algo muito difícil. Todas as tarefas que envolvam a comunicação oral revelam-se obstáculos difíceis de transpor. A maioria das pessoas que gagueja evita, por exemplo, falar em público, falar com um desconhecido ou participar nas aulas, entre outras situações, que naturalmente podem suscitar vergonha e embaraço por parte de quem as vive e conduzir a uma redução de oportunidades.
E a reacção de quem ouve?
Posso dar um exemplo. Numa situação de emergência, uma pessoa que gagueja ligou para o 112. Quem estava do outro lado achou que era uma brincadeira e desligou. A socialização por vezes também fica condicionada uma vez que surge o medo e a vergonha de falar, de ser gozado e de enfrentar a impaciência das pessoas. Sentimentos como raiva, culpa e frustração também estão muitas vezes associados.
Como agir perante um gago?
Devemos esperar que a pessoa termine de falar e diga tudo o que quer dizer, ouvindo pacientemente e mantendo o contacto ocular. Dizer “tem calma e pensa”, “respira” ou “fala mais devagar” só serve para aumentar a frustração de quem gagueja, assim como corrigir cada momento de disfluência. Devemos perguntar uma coisa de cada vez e aguardar a resposta, sem mostrar, através da expressão facial, preocupação ou pena, e sem criticar.
Existe tratamento para a gaguez?
O terapeuta da fala pode ensinar métodos e técnicas que podem fazer toda a diferença na produção de um discurso mais fluente. Em crianças, a terapia para a gaguez numa fase precoce pode inclusive conduzir à remissão. Noutros casos, pode minimizar os sintomas da gaguez, ajudar a comunicação no geral e melhorar a qualidade de vida de quem gagueja. A terapia aborda aspectos relacionados com a fala, comunicação, pensamentos, emoções associadas à gaguez e as atitudes perante a comunicação.
Os resultados são sempre positivos?
Esta questão é difícil de responder e não quero de todo transmitir ideias falsas aos leitores. Depende de inúmeros factores. No entanto, posso afirmar que, em terapia, verificam-se progressos muito positivos nos pacientes que gaguejam. O tratamento é realizado com base nas necessidades individuais e com objectivos concretos.
Nem todas as pessoas com gaguez procuram ajuda médica. Que conselho daria a alguém que, sofrendo de gaguez, não tenha procurado ajuda?
Uma intervenção precoce é sempre o ideal. Quanto mais tempo uma criança permanece com características de gaguez e quanto mais tarde estas surgem menor é a probabilidade de as mesmas desaparecerem e pior é o prognóstico. Assim, aconselho todos os pais a estarem atentos aos sinais de alerta e procurarem ajuda o quanto antes.
E os adultos?
Para adultos que nunca procuraram ajuda, por diversos motivos, aconselho a que o façam, uma vez que a gaguez não afecta só a fala, mas sim o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa que gagueja, seja na sua vida pessoal ou profissional. O objectivo do tratamento é atingir uma comunicação plena, sem medos e sem influência nas escolhas e ambições. Assim, com o apoio necessário, poderão melhorar inúmeros aspectos que os condicionam.

Luís Vicente
Miguel Rotena

“Quando dois gagos se juntam a conversa pode durar uma eternidade”

Miguel Rotena e Luís Vicente, da Castanheira do Ribatejo, são gagos e grandes amigos

Miguel Rotena é gago desde que começou a pronunciar as primeiras palavras e faz questão de dizer que a gaguez é um traço da sua personalidade do qual não se quer livrar.
O empresário, de 46 anos, reside e trabalha em Castanheira do Ribatejo, concelho de Vila Franca de Xira, e ser gago é “herança de família”. “O meu pai é gago mas hoje controla bem a sua gaguez. Há até quem diga que a gaguez dele foi desaparecendo com a idade. Depois de mim veio o meu filho, actualmente com 15 anos, que também é gago”, conta a O MIRANTE.
Miguel chegou a ir com os pais a uma terapeuta da fala mas sem resultado. No entanto, garante que o “bullying” que sofreu quando andou na escola não lhe deixou marcas para a vida. “Hoje lido bem a situação e por vezes até brinco com a minha gaguez.” No seu dia-a-dia, o empresário confessa que utiliza alguns truques para esconder a dificuldade em comunicar. “Tento escolher palavras fáceis, respirar entre elas e falar o mais pausadamente possível”, explica.
“Não gosto de me auto-controlar. Faço isso apenas quando percebo que o meu interlocutor está incomodado com a situação. Mas esse esforço enerva-me. É como se tivesse um vulcão cá dentro que está prestes a entrar em erupção”, atira entre palavras que custam a sair.
Ao telefone o empresário praticamente não gagueja. “Há até quem pense que está a falar com outra pessoa e eu brinco com isso e digo que não sou eu”, explica, antes de confessar que a palavra mais complicada é o três. “Ainda por cima, o meu número de telemóvel tem um três”.
Quando dois gagos se juntam a conversa pode durar uma eternidade
Luís Vicente, de 47 anos, é amigo de Miguel Rotena e também é gago. São amigos de longa data e uma conversa entre ambos, “em dias maus”- em que se gagueja mais - pode durar uma eternidade. Nenhum admite que é mais gago que o outro. “Às vezes apetece-me dar uma palmada nas costas ao Luís para ver se a palavra sai”, brinca Miguel.
“A minha gaguez é uma questão nervosa. Se respirar e falar pausadamente ninguém percebe, o problema é quando me distraio e quero falar muito depressa”, explica Luís Vicente. A conversa do sapateiro com O MIRANTE começa bem e quase não se nota a gaguez mas à medida que avança, ele vai tendo alguns problemas com uma ou outra palavra.
Preocupado em ser menos gago que o amigo Luís diz, divertido: “Se eu sou gago então o que ele é? Quem me conhece sabe que tropeço às vezes. Mas consigo falar bem”. Tal como no caso do amigo, também ele tem pessoas gagas na família. Pelo menos uma tia, um primo e o avô materno.
Se Miguel Rotena não gosta que lhe terminem as palavras quando está a falar com alguém, Luís Vicente diz que por vezes chega a agradecer a quem lhe presta auxílio quando a palavra é teimosa. “Obrigadinho que hoje nunca mais saía”. No entanto só faz isso com quem tem muita confiança.
Dizem que com a idade que têm já vivem bem com a gaguez e que até estranhariam muito se deixassem de ser gagos. Mas há momentos constrangedores, como quando têm que ralhar com algum filho, por exemplo. “Nessas situações, como falo mais rápido gaguejo mais. E ele (o filho de nove anos) chega a rir-se”, conta Luís.

Uma história de superação baseada no “treino da mandíbula”

Silvino Sequeira, tem 70 anos e sempre desempenhou cargos que exigiam contacto com o público. Foi professor, presidente da Câmara de Rio Maior, governador civil do distrito de Santarém, deputado e gestor do Programa Operacional do Alentejo. A dificuldade que sentia desde criança em dizer algumas palavras, que o levavam a gaguejar, era um embaraço mas afirma que encarou o constrangimento da gaguez... “na desportiva”. Com muita força de vontade conseguiu corrigir-se sozinho, “treinando a mandíbula”, como referiu a
O MIRANTE, e insistindo sempre na repetição das palavras em que se sentia mais atrapalhado. Hoje, presidente do Núcleo Sportinguista de Rio Maior, Silvino Sequeira não gagueja absolutamente nada...nem mesmo quando discute os maus resultados do seu clube.

“Deixem as pessoas com gaguez dizerem tudo o que têm a dizer sem as interromper nem mostrar impaciência”

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