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“Fico horrorizado quando ouço dizer  que no tempo de Salazar é que era bom”
José Pedro Soares é um rosto conhecido em Vila Franca de Xira pelo seu papel na luta contra o antigo regime e sofreu na pele a brutalidade da polícia política

“Fico horrorizado quando ouço dizer  que no tempo de Salazar é que era bom”

José Pedro Soares lutou contra a ditadura, foi preso político e é um dos responsáveis por uma associação que se dedica a manter viva a memória dos tempos do antigo regime e defende a criação de um memorial alusivo aos presos políticos. Trabalhou num jornal e foi director da editora que publicou, entre outros, José Saramago e Urbano Tavares Rodrigues. A Câmara de Vila Franca de Xira atribuiu-lhe a medalha de honra do concelho. Nesta conversa com O MIRANTE deixa um testemunho do seu percurso de vida e fala sem receios das “silvas”extremistas mal cortadas que estão a renascer no país.

Vila Franca de Xira tem feito algum trabalho para evocar a memória da luta contra a ditadura salazarista, através da construção do Museu do Neo-Realismo e da atribuição de topónimos a várias ruas com nomes de resistentes, mas só isso não basta. É preciso fazer mais e falta um monumento condigno a todos os presos políticos do concelho que lutaram pela liberdade. A convicção é de José Pedro Soares, nascido a 14 de Março de 1950 nas Cachoeiras e um dos responsáveis da URAP - União de Resistentes Antifascistas Portugueses que tem um núcleo em Vila Franca de Xira.
“Tendo em conta a resistência que se desenvolveu aqui no concelho podia fazer-se muito mais. Falta um memorial às centenas de pessoas de Vila Franca que estiveram presas. Algumas durante anos, outras que fugiram e voltaram a ser presas. São figuras heróicas e com histórias extraordinárias que precisam de ser lembradas”, defende a O MIRANTE.
Figuras como Dias Lourenço, Severiano Falcão, Carlos Pato, Sofia Ferreira, Georgette Ferreira e até o membro do Conselho de Estado, Domingos Abrantes, que nasceu na Bica do Chinelo. “Precisamos de um mural, uma coisa digna num local central, próximo de luz ou de uma queda de água, onde possamos realizar homenagens. É algo que o próximo presidente de câmara tem de resolver”, defende. Numa altura em que se aproximam os 50 anos do 25 de Abril, a URAP vai propor a Vila Franca de Xira que o monumento avance. “É preciso tirar todas essas pessoas do anonimato”, apela.
José Pedro Soares, pelo seu percurso de vida, foi distinguido em 2019 com a medalha de honra do município nos 45 anos da revolução de Abril. Filho de pai analfabeto e família pobre, cedo começou a ajudar a família no campo. Aos 13 anos foi trabalhar para uma tipografia em VFX onde foi distribuidor - arrumava as letras, filetes e lingotes depois de usados - e pouco depois chegou a compositor, fazendo as chapas finais para impressão.
Aos 18 anos foi trabalhar para as oficinas da OGMA em Alverca, também na área da impressão usando linótipo. Decidiu estudar à noite e foi aí que ganhou consciência política e a percepção da censura e dos presos políticos. Envolveu-se nas lutas clandestinas contra o regime e ajudou a formar e manter células activas do Partido Comunista Português em Vila Franca de Xira. Isto até um camarada responsável por uma das células se ter entregue à polícia secreta do Estado (PIDE) e ter confessado os nomes de todos os envolvidos. José Pedro Soares incluído.

Três anos de prisão e tortura
Em 1971 foi detido pela PIDE e “muito mal tratado”. Passou 21 dias fechado numa sala de interrogatórios. “Estive seis dias sem me ter lembrado de ter dormido, nem sei o que se passou”, recorda. Uma certeza é que nunca denunciou ninguém, até porque não conhecia os nomes reais dos camaradas, ao contrário de si próprio. “A maioria dos que eu conhecia usavam pseudónimos”, lembra.
Foi vítima de brutais espancamentos que o deixaram a precisar de cuidados médicos. Ainda hoje tem na pele as marcas das agressões. Julgado em tribunal militar foi condenado a três anos e meio de cadeia que cumpriu no Forte de Peniche. Foi lá que soube da revolução pela televisão. “Pedimos ao director da cadeia que nos libertasse mas mesmo assim só pudemos sair dia 27. Foi um momento de grande simbolismo. Muita gente a bater palmas, abraços, reencontros. Sofri muito”, recorda com emoção.
José Pedro Soares diz que a revolução foi “um acontecimento notável” e que as novas gerações não devem pensar que as liberdades caíram do céu. Confessa que ainda não vive na sociedade igualitária que idealizou mas destaca as melhorias feitas em diversas áreas da sociedade. “Não há comparação possível com o antigo regime”, afirma.
Critica a falta de participação da sociedade portuguesa, incluindo em Vila Franca de Xira, onde as crises directivas do associativismo são disso exemplo. Afirma que os novos movimentos extremistas que estão a surgir servem-se “da ignorância, falta de informação e de mentiras” espalhadas nas redes sociais. “Fico horrorizado quando oiço dizer que no tempo de Salazar é que era bom. As mulheres nem podiam votar. Só para terem conquistado esse direito já valeu a pena”, elogia.
Defende que independentemente das ideologias todos os democratas devem unir-se contra as novas tendências extremistas. “Vemos que as silvas não foram convenientemente arrancadas e que agora voltaram a crescer. Servem-se da ignorância e das dificuldades das pessoas. Um país sem memória do fascismo não tem futuro. Temos encontrado fenómenos muito perigosos. Quando não se investe na cultura as pessoas voltam às evocações emocionais e lamechas do antigamente. Mas falta nessa análise a razoabilidade”, defende.

Manter viva a memória da luta contra o antigo regime

José é um dos rostos há muito ligado à URAP, associação sem fins lucrativos criada em 1976 por pessoas que faziam parte das comissões de apoio aos presos políticos. Tem nas suas fileiras ex-presos e militares do 25 de Abril e uma das suas missões é manter viva a memória da luta contra o antigo regime e não deixar morrer a história, contando aos mais novos algumas das dores porque passaram os presos políticos. Ele próprio é disso exemplo, indo com regularidade às escolas do concelho e do país contar a sua vida e experiência na cadeia. Está hoje ligado à comissão instaladora do novo Museu do Forte de Peniche.
O núcleo de VFX da URAP anunciou esta semana que vai promover pelas 11h00 do dia 25 de Abril nas ruas de Vila Franca de Xira uma acção evocativa do 47º aniversário da revolução. É uma iniciativa que, respeitando as normas de segurança e o distanciamento físico, pretende juntar cidadãos e instituições que continuam a construir e a salvaguardar as conquistas, liberdades, direitos e deveres consagrados pela revolução.

O trabalho com escritores e a importância da imprensa regional

Depois da revolução José Pedro Soares trabalhou como administrativo no jornal O Diário, onde privou com nomes como Baptista Bastos, Joaquim Benite e Teresa Horta. “Trabalhar com o Baptista Bastos foi incrível, era um homem genial e generoso”, recorda. Mais tarde foi director na editorial Caminho, onde publicou Saramago, Mia Couto, Maria Magalhães ou Alice Vieira.
“Quando o Saramago soube que ia receber o Nobel eu estava com ele em Frankfurt e com o Mário de Carvalho e o Manuel Alegre. Íamos para o aeroporto e foi um impacto extraordinário. É uma das boas memórias que tenho”, recorda o homem que ainda lidou com Urbano Tavares Rodrigues e Manuel da Fonseca, escritores “incríveis” que lamenta serem cada vez menos divulgados.
“Há muitos destes autores perfeitamente esquecidos. A leitura em Portugal decaiu muito e há uma quebra grande na leitura. Criou-se uma interessante rede nacional de bibliotecas em que as pessoas têm maior acesso aos livros mas lê-se menos. Não se lê os grandes e nas escolas ainda há muito trabalho a fazer para os dar a conhecer aos mais novos”, critica.
Diz que os livros são uma realidade que nos enriquece por ser aí que os sábios deixam as suas ideias. “Infelizmente vivemos na realidade das mensagens curtas dos nossos telemóveis”, lamenta. Os seus escritores favoritos são Saramago, Lobo Antunes, Mia Couto e Mário de Carvalho.
José Pedro Soares destaca ainda o papel da imprensa regional no desenvolvimento da região e em particular de O MIRANTE, semanário do qual é leitor. “Dá voz aos leitores, aos problemas e às opiniões políticas, divulga o desenvolvimento regional e ajuda a questionar a região onde estamos inseridos. Se não nos interrogarmos perdemos muito e nisso o jornal é muito importante” destaca.

“Fico horrorizado quando ouço dizer  que no tempo de Salazar é que era bom”

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