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Mulheres que gostam de meter as mãos na massa
Cristiana Bento é servente e gere a sua própria empresa de construção civil. Sandra Freilão trabalhava numa escola antes de ir para as obras

Mulheres que gostam de meter as mãos na massa

Cristiana Bento e Sandra Freilão optaram por uma profissão num sector dominado por homens. Trabalham nas obras e fazem de tudo, inclusive enfrentar o estereótipo do que é ou não trabalho adequado para uma mulher.


Passaram por muitas outras profissões até decidirem entrar num mundo que ainda é considerado uma coutada masculina. Entraram a medo, com dúvidas em relação às tarefas, mas com a certeza que seriam capazes de fazer o que eles fazem: montar andaimes, chapar massa, assentar chão, pintar paredes e carregar todo o tipo de material.
Cristiana Bento e Sandra Freilão sabiam que iam ser olhadas de lado pelos colegas, questionadas por amigos e familiares, mas isso não as demoveu. Trabalham na construção civil e são felizes com a sua escolha, que ultrapassou o estereótipo que diz à sociedade que há trabalhos que não são para mulheres.
É entre o barulho de uma betoneira e uma parede em tijolos, numa obra em Samora Correia, que encontramos Cristiana Bento, de cabelo preso e roupa salpicada de tinta e restos de cimento. O à vontade com que dá indicações aos dois colegas homens que a acompanham nas tarefas revela experiência. Do lado deles, a naturalidade com que as acatam revela que o preconceito foi ultrapassado.
Mas nem sempre foi assim. Já trabalhou com quem não a soube respeitar e duvidava das suas capacidades. “Ficavam a olhar e perguntavam o que é que fazia ali. Não era confortável, mas enquanto eles estavam de mãos nos bolsos eu estava a cortar ferro”, conta a servente que é dona da sua própria empresa de construção civil.
Cristiana Bento tem 42 anos, é natural de Glória do Ribatejo e começou a trabalhar nas obras em 2018. Antes passou pela agricultura, fábricas, restauração e chegou a ser camionista, numa empresa onde também era a única mulher. Sem nunca antes ter metido as mãos na massa, foi, a convite do companheiro, participar na remodelação de um hotel no Algarve. A primeira tarefa foi tirar centenas de azulejos das paredes de uma casa-de-banho. “Pensei que não seria capaz. Quando faltavam três foram dar comigo a chorar com dores. Estava cheia de bolhas nas mãos, mas acabei o serviço”, recorda. Acrescenta que só nesse dia pensou em desistir de fazer carreira na construção civil. “Sou feliz neste meio e já não me imagino a fazer outra coisa”, diz.
Sete de areia, cinco de pedra, um saco de cimento e dois baldes de água. É a receita para fazer a betonilha que Cristiana Bento prepara às 15h30 de um dia de trabalho que começou às 06h30 a carregar material para a obra. “Isto é duro e é por isso que é cada vez mais difícil arranjar mão-de-obra, especialmente pedreiros. As mulheres podiam atenuar o problema, mas não estou a vê-las vir pedir-me trabalho”, diz.
E os motivos são vários: “Porque algumas, como é natural, não têm estrutura física para aguentar”, mas sobretudo porque vão achar que ninguém as vai contratar, ou porque na escola ou em casa ninguém lhes disse que a construção civil também pode ser para as mulheres. “Se não tivesse ido trabalhar para o meu marido acho que também ninguém me teria contratado”, reconhece.

Menos monotonia e mais rendimento ao fim do mês
O percurso profissional de Cristiana Bento ainda é raro nos dias de hoje, mas encontra paralelo no de Sandra Freilão, que há dois anos decidiu trocar o seu trabalho numa escola pelas obras. “Sou mais feliz aqui. Gosto do que faço, ganho mais e trabalho com o meu pai e o meu marido”, começa por dizer enquanto lava um piso em pedra acabado de colocar numa obra em Benavente. Agrada-lhe a não monotonia no trabalho, é perfeccionista e não se inibe de alertar para o que é preciso corrigir. “E eles respeitam”, diz a técnica de obras e jardinagem, de 39 anos, natural de Almeirim.
Admite que nunca foi dada aos livros, razão pela qual os estudos ficaram pelo sexto ano. Já para trabalhar, a vontade nunca faltou. Aos 14 anos quis ser bombeira. E foi, mesmo contra a vontade do pai. “Dizia-me que era para homens e eu dizia-lhe que era para quem quisesse”, lembra, sublinhando que quando se decidiu pelas obras já não enfrentou o mesmo preconceito. “Também cabe a nós, mulheres, acabar com essas ideias de que não somos iguais e não podemos fazer as mesmas coisas”, defende.
Quando os colegas homens lhe vão aliviar a carga não reclama, por não ver o acto como sendo machista. Mas se lhe perguntarem se o trabalho é demasiado duro para uma mulher responde sempre que não, mesmo com o suor a escorrer-lhe pelo rosto. Já se habituou às mãos sujas e acompanha os colegas ao almoço, só não alinha em cervejas nem manda piropos a quem passa. “Isso eles também não mandam, pelo menos quando estão comigo. Se o fizessem levava a mal”, confessa.
Para Sandra Freilão, ser a única mulher da equipa não é algo que a apoquente, ao contrário das dores nas costas que sente depois de um dia de trabalho. “Eles também as têm, não é um mal só de quem é mulher”, diz entre risos. Depois revela que a diferença é que quando chega a casa ainda tem mais duas horas de trabalho doméstico pela frente.

Vaidosas à sua maneira

Cristiana Bento e Sandra Freilão são duas mulheres das obras, vaidosas à sua maneira. No trabalho pouco se importam com a poeira que carregam na roupa, o suor ou o cabelo desgrenhado. Fora dele, a história é outra. Cristiana, a mais vaidosa das duas, solta o cabelo, pinta os lábios, põe um relógio e opta por sapatos de salto alto, se os pés não estiverem inchados depois de um dia calçados em botas biqueira de aço. Gosta de se cuidar. De ir à manicure é que já desistiu. “Usava extensões nas unhas mas queria apanhar uma peça do chão e não conseguia. Agora também andam pintadas, só que umas vezes é de cimento e outras de tinta”, conta às gargalhadas.

Sandra diz-se muito pouco vaidosa. Tal como Cristiana não vai à manicure, mas o cabelo tem que andar bem arranjado. Não usa maquilhagem, a menos que vá a uma cerimónia, e que ninguém lhe diga para vestir uma saia curta. “Uma vez saí assim à rua e minutos depois voltei a casa para me mudar. Sou, definitivamente, uma mulher de calças”.

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