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Histórias da charneca ribatejana onde o trabalho não mete medo a ninguém
Rafael Jesus assume que trabalhar é mais divertido do que estudar. Francisco Rosa e Florinda Pratas estão casados há mais de 70 anos e são uma equipa na hora de meter mãos à obra. Martim Conceição ajuda a avó Odete no café, mas diz que gosta mais de se entregar à agricultura

Histórias da charneca ribatejana onde o trabalho não mete medo a ninguém

Rafael Jesus e Martim Conceição, naturais da Parreira, têm pouco mais de uma dezena de anos de vida, mas abdicam das brincadeiras para trabalharem no duro na agricultura e a cuidar dos seus animais.

O casal Francisco Rosa e Florinda Pratas, naturais do Chouto, estão perto de completar um século de vida e levantam-se todos os dias às seis horas da manhã para iniciar a labuta. Uma reportagem de O MIRANTE na charneca ribatejana que retrata a vida de quem já nasce com vontade de trabalhar.

A tranquilidade que se vive nas aldeias da Parreira e Chouto, concelho da Chamusca, é sentida apenas por quem as visita; quem nasce na charneca não tem outro remédio senão tornar-se homem e mulher ainda em idade de criança. Os 11 anos de Rafael Jesus explicam a origem do ditado popular ‘de pequenino é que se torce o pepino’; assim como os agricultores retiram “os olhos” aos pepinos para que se desenvolvam, a personalidade de Rafael começou a ser moldada nos primeiros anos de vida.

A destreza e sabedoria dos seus movimentos na horta onde cultiva dezenas de alimentos devem-se às muitas horas de trabalho solitário, ao sol e à chuva, que todos os dias lhe roubam o tempo da televisão, do telemóvel e, para desgosto dos pais, também dos estudos.

A obrigação que sente em fazer diariamente meia centena de quilómetros de autocarro para ter aulas na escola da Chamusca ganha outros contornos quando toca a campainha que avisa para o regresso a casa, local sagrado onde também habitam várias espécies de animais que ajuda a criar. É nesse abrigo que o repórter de O MIRANTE o encontra a alimentar cerca de meia centena de furões. “Vou levá-los para uma reserva natural aqui perto para ajudarem na captura de coelhos para serem vacinados”, esclarece.

A vizinhança é animada e barulhenta; galinhas, fracas (aves da família das galinhas), coelhos, patos, pombos e rolas aguardam pela atenção do pequeno agricultor. “Gosto de conversar com os animais e de lhes contar como vai a minha vida, porque não ralham comigo nem são chatos como os adultos”, afirma, com um sorriso no rosto.

A frontalidade e honestidade do seu discurso são características que não deixam ninguém indiferente. Considera, por exemplo, que se devia entregar mais aos estudos, mas ao mesmo tempo contradiz-se afirmando que os livros não o entretêm tanto como o trabalho.

No trajecto para a parcela de terra onde tem as culturas, explica que nem os pais nem o irmão, Duarte Jesus, que aos cinco anos também já tem a sua horta, estão autorizados a “meter o nariz” no seu trabalho. A quantidade de alimentos dá para encher um pequeno supermercado: catalão, couves, batata-doce, pimentão, alho francês, cebola, tomate, milho, pepino, entre outros. Com tanta tarefa para executar, Rafael conta que tem uma fiel companheira que o apoia: “a enxada é a minha melhor amiga. Demorou até me começar a obedecer, mas hoje damo-nos muito bem”, assegura.

Curiosamente, Rafael Jesus diz que o seu futuro não passa pela agricultura uma vez que o seu grande objectivo é abrir um negócio de catering com o pai. “Quero ser empregado de mesa e dono da minha empresa para trabalhar em casamentos e ver pessoas bonitas”, afirma com convicção.

O SONHO DE TER UMA HERDADE

A cerca de uma centena de metros da casa de Rafael, o repórter descobre Martim Conceição, de 13 anos, enquanto arranja o pneu furado da sua bicicleta. A irreverência do primeiro é substituída pela discrição do segundo, mas a disponibilidade para trabalhar parece tirada a papel químico. Em menos de um minuto lava a cara e as mãos para mostrar onde tem a horta com os alimentos que completam a mesa nos almoços e jantares de família. A lista é igualmente extensa e variada: feijão, melancia, abóbora, tomate cherry, amendoins, pepino, couves, árvores de fruto, uma videira e uma seara de milho.

Sempre pela “fresquinha”, nunca pela hora do calor, Martim entretém-se como os miúdos da sua idade se entretêm a jogar à bola ou nos jogos de computador. “Gosto de andar sozinho e de ter tarefas especificas para fazer nas alturas certas. No fundo, também é um jogo, mas com um resultado mais saboroso, porque fui eu que produzi os alimentos que a minha família vai comer”, sublinha.

Martim Conceição acumula os estudos e a agricultura com o apoio que dá à avó Odete num dos vários cafés da aldeia da Parreira. Diz que ainda é cedo para pensar no que quer ser quando for grande, mas tem a certeza que vai trabalhar no sector da agropecuária. “Um dia gostava de ter a minha herdade com vacas, toiros, ovelhas e muitos hectares de agricultura. Quero ter uma família grande e dar emprego a outras famílias, mas ainda tenho um longo caminho para percorrer”, refere.

UM SÉCULO DE VIDA A TRABALHAR

A cerca de uma dezena de quilómetros da Parreira, na aldeia do Chouto, o casal Francisco Rosa, 98 anos, e Florinda Pratas, 92, recebem o jornalista na sala de uma casa que em tempos também foi taberna e mercearia. O “Império” marcou uma época numa aldeia que tem pouco mais de meio milhar de habitantes.

A longevidade das suas vidas tem uma explicação: muito trabalho. “Sempre fiz grandes searas de arroz onde era responsável por mais de três dezenas de trabalhadores; não havia tractores, era tudo cavado com a enxada. Também fiz carvão e trabalhava muitas horas a vender copos de vinho na taberna”, conta Francisco Rosa.

A afirmação originou a primeira discussão amigável entre o casal que está junto há mais de 70 anos. Em jeito de brincadeira, Florinda queixa-se e diz que trabalhou muito mais e que o marido nunca a ajudou em nada. “Tinha de tomar conta, dos filhos, da mercearia, da taberna, do rebanho de cabras e ainda tratava das lides domésticas e preparava as refeições. Ele trabalhava, mas assim que se despachava não fazia mais nada”, conta.

Francisco Rosa faz orelhas moucas e apressa-se a convidar o repórter para uma breve visita à horta, um dos seus maiores orgulhos. De cajado na mão, porque o equilíbrio já não é o de outros tempos, vai explicando como é o seu dia-a-dia. “Levanto-me às seis horas da manhã para iniciar a labuta. Quando está muito calor resguardo-me, mas nunca fui homem para estar sossegado. A última semana, por exemplo, com a minha mulher, apanhámos mais de uma centena de quilos de batatas, sem qualquer ajuda”, vinca.

Pais de dois filhos, que vivem em Alverca do Ribatejo, o casal confessa que já passou várias temporadas na cidade, embora estejam sempre a contar as horas para regressar à charneca. “A vida aqui corre mais devagar. Enquanto estamos a trabalhar não pensamos na morte nem nas dores que nos consomem o corpo”, sublinham.

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