Sociedade | 04-03-2005 15:23

A força do “sexo fraco”

De auxiliares femininas dos corpos de bombeiros passaram a operacionais. Deixaram de ser apenas mães, esposas e profissionais e já mexem nos destinos das colectividades. As mulheres dão cartas em áreas tradicionalmente dominadas pelos homens.

É manhã de sexta-feira no quartel dos Bombeiros Voluntários de Alhandra. No parque de viaturas, frente à central, sobressai a figura de uma mulher vestida de vermelho vivo. Carmelita Caetano, 44 anos, é a segunda comandante da corporação, a única senhora a ocupar este posto em Portugal Continental.Foi entre as paredes da sede dos bombeiros, onde está há 25 anos, que a voluntária criou os quatro filhos. E é lá que se sente em casa. Mais do que na sua residência no Porto Alto (Benavente), para onde se desloca ao final do dia. Sempre que a sirene dos bombeiros tocava, Carmelita Caetano corria para a viatura. Os filhos, ainda pequenos, ficavam entregues à irmã ou à mãe que trabalhavam na corporação. Carmelita Caetano, que hoje é também funcionária dos bombeiros, entrou no quartel numa altura em que as voluntárias não passavam de auxiliares femininos do corpo activo. O trabalho das mulheres limitava-se à limpeza, pedidos de rua e entrega de alimentos aos homens que combatiam os fogos. Foi com a intenção de alargar esse papel demasiado limitado que integrou a corporação. Há 18 anos deixou o estatuto de auxiliar feminina e transformou-se numa das primeiras operacionais do corpo de bombeiros. As provas físicas não a assustaram. A recruta foi pesada, mas nada que a força de vontade não superasse. “Se tínhamos dificuldades em engatar as escadas, os homens também tinham. O homem é mais que a mulher na força física, mas nós temos a força interior que é capaz de nos levar mais longe”.O comandante dos bombeiros é o seu marido, mas a número dois da corporação orgulha-se de ter feito toda a carreira por mérito próprio. Já era adjunta de comando quando o companheiro foi indicado para coordenar a corporação. Lá dentro trata Jerónimo Caetano como “o comandante”. Exige que a sua opinião, enquanto segunda comandante, seja levada em conta. Só depois de sair do quartel e passar a recta a caminho de Porto Alto volta a “ver” o marido. “A auto-estima” e “o poder está dentro de si” são dois livros pousados sobre a secretária. Cada dia é um desafio, mas Carmelita Caetano acredita que a condição de mulher a ajuda a gerir os conflitos. Considera que as mulheres já impuseram o seu espaço e vê com preocupação uma inversão demasiado rápida da situação. “Vejo muitos homens com dificuldades para não ficar mal ao pé das mulheres. A desigualdade ao contrário também não é saudável”.Carmelita Caetano, que já foi distinguida pelo Presidente da República com o grau oficial da Ordem de Mérito, regozija-se de ter uma “casa” com todas as condições para receber mulheres. Nas camaratas femininas, que funcionam em pleno no quartel de Alhandra, há secadores de cabelo e malas penduradas. Sílvia Lopes, 26 anos, é uma das utilizadoras frequentes do espaço. Frente ao edifício de treino da corporação, a socorrista e formadora de desencarceramento da Escola Nacional de Bombeiros orienta uma simulação de acidente com os quatro camaradas do Grupo Permanente de Intervenção de Alhandra. Para quem já é bombeira há 12 anos a tarefa faz parte da rotina. Silvia Lopes quase não repara que é a única mulher do grupo. Sempre que se apresenta numa sala de aula para iniciar uma acção de formação surgem alguns olhares duvidosos, mas no final quase todos acabam por dar-lhe os parabéns. Está convencida de que se não existem mais mulheres na área é apenas por falta de interesse. “Muitas pensam que não têm capacidade física. Se tivermos força de vontade arranjamos força física onde não sabíamos que existia”.As “mães” da colectividadeForça de vontade é o que não falta a um grupo de mulheres da pequena aldeia de Arneiro das Milhariças, no concelho de Santarém, que por falta de iniciativa dos homens em apresentar uma lista para a sociedade cultural e recreativa da localidade decidiu garantir a continuidade da associação.O repto foi lançado pelo presidente da junta de freguesia durante uma festa de Natal da escola primária. As “mães” depressa encheram uma folha com 20 nomes. Na primeira reunião o número estava reduzido a metade, mas mesmo assim o projecto avançou. Era já uma questão de orgulho.Muitos questionaram a capacidade de um grupo de mulheres à frente da direcção de uma colectividade fechada há ano e meio. “Dizia-se que não iríamos conseguir, que nos iría-mos zangar. Claro que houve momentos de discussão, porque casa que não é ralhada, não é governada”, descrevem.Ao longo dos dois últimos anos organizaram torneios de futebol e as festas anuais da freguesia. Revezaram-se para garantir a abertura do bar pelo menos duas vezes por semana. Os clientes sempre as respeitaram e os maridos foram os primeiros a apoiar.No dia 1 de Abril vão organizar o último evento. A noite de fados irá fechar o ciclo de uma direcção composta única e exclusivamente por mulheres. Não irão recandidatar-se porque acham que é altura de dar lugar aos mais jovens.Durante dois anos acumularam as profissões, a casa, os filhos e os maridos, com a associação. Maria da Encarnação, 56 anos, doméstica, chegou a sair da sede muitas vezes depois das duas da manhã. Quando chegava a casa ainda tinha todo o trabalho doméstico, assim como Dália Baptista, 30 anos, empregada de refeitório. O filho de nove anos chegou a adormecer muitas noites sobre a mesa do bar.“Os homens quando vêm para a associação já têm o jantar feito. Com as mulheres as coisas nem sempre funcionam assim e acumula-se o trabalho”, descreve a presidente da direcção, Ana Cristina Capucho, a única que não tem ainda esse tipo de responsabilidade familiar.Para colaborar na associação, Florbela Caramelo, 33 anos, mãe de uma menina de oito, e Idália Francisco, com um filho de 11 anos, funcionária do refeitório, tiveram de delegar nos companheiros alguns dos afazeres domésticos.“Só haverá igualdade no dia em que os homens participarem nas tarefas domésticas e tiverem a mesma atitude com os filhos”, sentencia Ana Cristina Capucho. Para mudar a mentalidade estas mulheres acreditam que é preciso começar pela educação dos filhos. E já é assim na casa de Dália Baptista. Nos dias em que não tem escola o filho, nove anos, surpreende-a sempre com a mesma pergunta: “Mãe, o que posso fazer para ajudar-te?”.Ana Santiago

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