Sociedade | 01-06-2018 14:28

“Para tanto amor uma só mulher não basta”

“Para tanto amor uma só mulher não basta”
Foto: Rita Carmo

O cantor actuou em Tomar e disse a O MIRANTE que a nova censura se chama “play-list”. Fernando Tordo gravou com o vocalista dos Quinta do Bill o tema “Coisas da Malta”

Fernando Tordo está a celebrar 54 anos de carreira artística e convidou o vocalista dos Quinta do Bill, Carlos Moisés, para cantar com ele um tema do seu álbum “Duetos - Diz-me com quem cantas”. Confessa que foi uma experiência muito interessante porque o convidado estava tão à vontade que até parecia que tinha sido ele a escrever a canção. Diz que só a solidez do seu trabalho lhe permite resistir a este tempo em que há uma censura nas rádios chamada “play-list”. Ri-se com gosto quando lhe perguntamos se não receia ser acusado nas redes sociais de incentivo à bigamia por ter uma canção com o verso “Para tanto amor uma só mulher não basta”.

N

o sábado, 19 de Maio, apresentou em Tomar um concerto muito diferente daquilo que é habitual.

O formato dos meus espectáculos depende muito de questões financeiras. Eu posso levar pianista, posso levar um trio, um sexteto ou um octeto como fiz recentemente no Tivoli e na Casa da Música. Em Tomar levei apenas a minha viola e o espectáculo teve um formato muito especial. Fui explicando ao público como é que surgiram as canções que fiz com o Ary dos Santos.

Porque sente essa necessidade de contar essas histórias?

Fi-lo porque o Ary dos Santos já faleceu, eu sou o sobrevivente dessa parceria célebre e já há quem comece a inventar. Já me aconteceu haver pessoas que, à minha frente, o que é a suprema lata, contarem que assistiram ao Ary dos Santos a fazer esta ou aquela canção. A verdade é que em 98 por cento dos casos só estávamos presentes eu e ele. Nesta vida ouve-se de tudo.

Um dos convidados para o seu disco “Duetos - Diz-me com quem Cantas” é o Carlos Moisés, dos Quinta do Bill, de Tomar, e a canção que escolheu para gravar com ele foi “Coisas da Malta”. Pelo que sei não conhecia pessoalmente o Carlos. Porque o escolheu e porquê aquela canção?

“A malta faz aquilo que dantes não podia / Ninguém queria ninguém podia/A malta diz aquilo que dantes não dizia/Ninguém podia ninguém sabia”

Quem ouvir o original dessa canção vai rapidamente perceber porque a escolhi para cantar com o Carlos Moisés. Tem uma toada, tem um ritmo, tem um tipo de aceleração que tem muito a ver com os Quinta do Bill, ou pelo menos com a ideia que eu tenho do grupo. Eu não conhecia pessoalmente o Moisés. Ele foi-me indicado pelo meu agente que é um jovem do Porto, chamado Pedro Barros. A gravação correu de uma forma fantástica. Ele cantou impecavelmente. Conhecia a canção melhor que eu. Parecia que tinha sido ele que a tinha feito. Adorei estar com o Carlos Moisés. Foi uma das experiências mais interessantes que eu tive durante as gravações destes duetos. A outra foi o Héber Marques que também não conhecia e que me foi indicado pelo meu filho mais novo.

Há alguns anos falou-se na edição de uma biografia sua. Quando vai ser publicada?

Há um livro que está para sair, que é da Casa da Moeda, que foi escrito pelo João Paulo Guerra. É um livro biográfico e foi terminado ainda antes de eu ter ido para o Brasil já lá vão quatro anos. Deverá ser publicado este ano e estou com muita curiosidade...

Não o leu previamente?

Li, claro que sim, mas estou com curiosidade sobre o objecto em si. O livro tem essa coisa fascinante. É um objecto. Eu penso que o livro será, muito provavelmente, a última coisa a desaparecer. Este livro escrito pelo João Paulo Guerra resultou de inúmeras conversas entre os dois. Foram sessões e sessões. Felizmente era uma conversa com um amigo e tornou-se mais fácil. Ainda não saiu, pelo que me explicaram, porque houve mudanças na administração da Casa da Moeda.

Há alguma das várias centenas e centenas de canções que já fez e gravou, que por qualquer motivo, não lhe dê muito prazer cantar?

Não. Se me perguntar que há canções que eu fiz, que gravei e que, provavelmente nunca mais terei cantado, isso pode acontecer. Agora eu recusar-me cantar alguma ou sentir-me pior a cantar esta ou aquela canção, isso não. Não há nenhuma. Cada uma tem um significado para mim. Cada uma tem um tempo, tem um motivo, tem uma razão, tem um caminho. O que eu tenho pena é de não poder cantar muitas delas.

Tem músicas guardadas para gravar quando houver oportunidade?

Não. Todas as músicas que fiz estão registadas. Estão todas gravadas. Não tenho música na gaveta. Algumas nunca as toquei em espectáculos mas estão gravadas.

Como são muitas não as deve saber todas de cor. Quando decide cantar alguma tem que voltar a decorar o texto...

Eu também não tenho problema nenhum em levar os textos, se não estiver seguro. Levo o papel.

Mas conhece todas as canções pelos nomes, digamos assim? Basta citarem-lhe um verso ou lembrarem-lhe um título e vai lá? O Pic-Nic do Cesário, por exemplo, que é uma canção de 1980 que não costuma cantar. Lembra-se dela?

(Começa a trautear a canção de imediato) Tu molhaste companheira/Pão de ló em malvasia/ e provámos uma vida inteira...

Ora aí está um exemplo de uma cantiga que depois de gravada só devo ter cantado uma vez ou outra. É de um disco chamado Cantigas Cruzadas, de 1980, que tem arranjos do Pedro Osório. Posso dizer-lhe que a Cila do Carmo, filha do Carlos do Carmo, já lá vão muitos anos, fez um trabalho de graduação para a Universidade baseado no texto dessa canção, que é do Ary dos Santos. Está a ver?! Dificilmente não me lembrarei dessa canção, nem de nenhuma outra, embora admita que possa acontecer.

Uma canção que continua actual é a Tourada, que é uma canção de crítica social. No entanto, na altura, um dos protestos mais inflamados veio do sindicato dos toureiros. Divertiu-se com aquela reacção?

Temos que ser tolerantes. A Tourada é uma canção com 45 anos. Teve uma primeira apresentação de três minutos na televisão, no Festival da Canção que naquela altura tinha uma audiência de seis milhões e meio de portugueses. Ninguém esperava uma canção daquelas. Foi uma bizarria. Uma coisa absolutamente extraordinária.

Nem toda a gente percebeu a letra.

Efectivamente numa primeira audição aquilo parece ser um gozo à tourada. No entanto, dentro do meio tauromáquico houve figuras que entenderam logo à primeira que não era nada disso. Uma delas foi o Diamantino Viseu que, à saída do teatro, disse logo aos mais exaltados para terem calma que aquilo não era a gozar com a tourada. O que houve da nossa parte foi a utilização da terminologia da tourada, que é riquíssima, no meu entender e que eu conheço toda de trás para a frente.

É um texto do Ary dos Santos. Ele estava familiarizado com aqueles termos?

Não estava e isso é que é mais extraordinário. Ele disse que não percebia nada de touradas mas eu escrevi-lhe os termos todos e ele seguiu aquele guião riquíssimo, para fazer uma crítica social que se tem mantido actual. Hão-de passar décadas e a sociedade, no essencial, continuará sempre a ser aquilo.

É anti-tourada?

Não, de maneira nenhuma. Eu não sou pessoa para ter a iniciativa de ir ver uma tourada mas não tenho nada contra. Fascina-me aquele cerimonial inicial. As cortesias, o modo como aquela gente vai vestida e o modo como os cavalos vão arranjados. Aquela cor. Aquela exaltação. É um espectáculo fantástico. Assim como aquele momento desvairado dos grupos de forcados a agarrarem o toiro. É uma coisa que prende. A gente quer ver. A gente quer saber como é a resolução de uma coisa daquelas. Só quem nunca esteve ao pé de um toiro é que não fica suspenso do resultado.

Tem amigos ligados ao mundo da tauromaquia?

No meu serviço militar conheci três pessoas directamente ligadas à tourada. Eram do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa. Ainda hoje são meus amigos. E antes do 25 de Abril eu e o Ary dos Santos fomos protegidos por elementos desse grupo, nomeadamente pelo fundador e cabo do grupo, o famoso Nuno Salvação Barreto. Foi num espectáculo no Coliseu. Aquilo estava cheio de Pides e a certa altura começou tudo à pancada. Caíam coisas no palco e só não fomos trucidados porque eles nos levaram dali. O Nuno Salvação Barreto foi outra pessoa que entendeu a tourada como uma crítica social e não como um ataque à tauromaquia.

Antigamente os cantores ganhavam dinheiro a vender discos e a rádio pegava numa canção e fazia dela um sucesso. Agora está tudo muito diferente. Já sabe nadar nestas águas? Bebeu muitos pirolitos até aprender?

Realmente as coisas mudaram muito mas quem tem, como eu, uma carreira sólida e longa é menos afectado. Eu nunca deixei de fazer o meu trabalho, nunca deixei de gravar discos. Claro que tive altos e baixos mas esses altos e baixos são coisas naturais. O que não é natural é vivermos num país com tantas estações de televisão onde não passam um programa com um cantor ou uma cantora ou um grupo no horário nobre.

Como é que se resiste a isso?

A gente só resiste porque tem alguma coisa. Porque fez alguma coisa. Porque tem alguma coisa na vida onde se agarra e que sabe que funciona. Mas isso é uma garantia do trabalho de uma vida inteira. De uma obra inteira.

Já não se vendem discos e mesmo música portuguesa gravada e distribuída de outra forma também não vende.

É verdade. Já não se vendem discos. Eu por vezes levo alguns para os espectáculos e um livrinho meu de poesia...mas é só para poder estar a conversar um bocadinho com as pessoas. A dar alguns autógrafos. E realmente é ali naqueles momentos que as pessoas podem conseguir comprar um disco. Quem é que hoje vai comprar um CD à FNAC, por exemplo?

E no entanto...

E no entanto, em Portugal temos gente maravilhosa a gravar. O nosso país está cheio de grandes músicos. Está cheio de gente que está a aprender música. A quantidade de jovens com muito talento é uma coisa impressionante. Talvez eles venham a melhorar este tempo pardacento, de promoção da mediocridade... A Antena 1 vai passando alguma música portuguesa. É uma rádio que está mais ou menos atenta ao que se passa a nível da música portuguesa porque se grava muito em Portugal, em muitas áreas da música, mas é uma luta inglória. É uma luta perdida. As pessoas vão para os estúdios de gravação cheias de esperança, que é isso que move músicos, autores, mas depois as coisas não acontecem.

A “Estrela da Tarde”, por exemplo e outras canções suas, chegariam a ser o sucesso que foram se aparecessem agora?

O mais certo era ficarem no anonimato porque não passariam na rádio. Antes do 25 de Abril havia uma censura. Hoje há outra que se chama “play-list”. Mas quem é que faz aquelas “play-lists”? Quem decide quais as canções que podem passar na rádio? Isso parece que ninguém sabe ou, se sabe, não quer dizer. Que critérios de escolha são usados? Quem manda nesses critérios? Ora bem, quem manda são as editoras discográficas e os critérios não são artísticos.

O ano passado o Chico Buarque foi acusado de ser machista porque no tema “Tua Cantiga” canta “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Acha que o podem vir a apelidar de promotor da bigamia, por exemplo, por cantar versos como “Para tanto amor uma mulher não basta”?

Eu estava no Brasil quando aconteceu isso ao Chico Buarque. É muito engraçado porque ele agora faz uma rábula em que finge que não é ele que faz as canções. Ele diz aquilo num tom sério e acrescenta que aquelas pessoas lhe mandam as canções sempre com atraso e que vem tudo errado...é muito divertido. Essa canção onde está o verso “Para tanto amor uma mulher não basta” tem tantos anos, tantos anos....mas se calhar ainda me acontece uma coisa dessas.

O que acha que passa pela cabeça de certas pessoas para fazer esse tipo de acusações a um cantor que ao longo da vida sempre deu provas de ser anti-machista?

Há imensos anos o João Maria Tudela escrevia uma coluna para uma revista, acho que o nome era “Caturrices”, e numa delas contou a história de um cantor português que resolveu dizer cobras e lagartos do Frank Sinatra. E terminava dizendo que depois disso o Sinatra tinha sido entrevistado mas que não tinha dito nada sobre aquele cantor. Quando não há mais nada para dizer diz-se que o Chico Buarque é machista.

Por vezes vêm actuar a Portugal alguns artistas internacionais em fim de carreira que em vez de cantar...já só miam, digamos assim. Acha que, daqui a muitos anos, vai ter a noção de que é chegada a altura de parar?

Eu desde miúdo sempre pensei que poderia ter uma carreira longa. Mas isso é uma coisa minha. É auto-confiança. Eu sempre tive muita confiança naquilo que faço e sei que o trabalho que faço, faço-o bem feito. Não se faz o caminho que eu já fiz com a mediocridade, o oportunismo, a moda passageira, o facilitismo. Neste momento sinto-me muito bem. Deixei de beber e de fumar há muitos anos e no plano físico estou bem. E também canto melhor do que alguma vez cantei mas essa questão vai surgir, inevitavelmente. Quando chegar a hora de parar vou parar. Também me desagrada muito ver, tanto em Portugal como no estrangeiro, alguns artistas a fazerem certas figuras.

Em 2014 disse que ia para o Brasil porque estava desgostoso com o que se passava a nível político. Agora voltou porque considera que as coisas estão melhor. Mas com setenta anos já deve saber que o nosso país nunca será um caso de excelência, pelo menos a julgar pela história. Se continua a sair quando isto está em baixo se calhar mais vale instalar uma porta giratória no aeroporto.

Pois...mas vai ser assim. Se continuarmos a ter uma democracia intermitente eu vou usar essa tal porta giratória de que fala. Se o respeito, a consideração, os valores, entrarem num sistema giratório como entraram quando fui embora eu vou aproveitar a sua porta giratória, que é uma imagem muito engraçada. Mas esta é uma atitude minha. Não levo ninguém atrás.

Temos agora um bom Ministério da Cultura e o país tem dinheiro para lhe dar trabalho e lhe pagar o preço justo?

O que sinto é que se respira um outro ar. Não nos sentimos agredidos, nem ofendidos, nem desrespeitados, ostracizados ou humilhados. Essa coisa do neo-liberalismo em que só valem os que são úteis para certos fins e o resto é para “matar”, isso não!

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