Sociedade | 19-04-2019 07:00

Bombeiros regressaram de Moçambique com a sensação que podiam ter feito mais

Bombeiros regressaram de Moçambique com a sensação que podiam ter feito mais
SOLIDARIEDADE

Dezanove operacionais de corporações da região prestaram auxílio às populações afectadas pelo ciclone Idai.

Receberam a missão e um dia depois estavam a aterrar no aeroporto da Beira, em Moçambique, 19 bombeiros de várias corporações do distrito de Santarém. As primeiras impressões não deixaram dúvidas: o cenário era devastador. Mais de 80 por cento dos edifícios sem cobertura, pessoas a roubar comida dos pratos no aeroporto, enquanto outras saciavam a sede em charcos de água barrentos.

A vontade destes homens era ajudar quem tudo perdeu com a passagem do ciclone Idai, mas havia regras, muitas regras. A primeira dificuldade surgiu logo à saída do aeroporto, quando lhes foi pedida uma “quantia absurda de dinheiro” para poderem transportar as quatro embarcações até ao acampamento improvisado onde ficaram alojados. Depois veio a espera de dois dias até receberem a primeira missão: levar mantimentos à vila de Buzi. José Nepomuceno, comandante dos Bombeiros Voluntários de Benavente, e Victor Rodrigues, adjunto de comando dos Bombeiros Municipais do Cartaxo seguiram no mesmo barco, numa viagem de hora e meia até à vila, que se tornou ilha após o Idai.

Quando os bombeiros atracaram junto ao cais esperavam-nos centenas de crianças. “Estavam ali, paradas, como quem está à espera de qualquer coisa”, conta Victor Rodrigues. As farinhas, açúcar e arroz que transportavam eram descarregados e entregues à “governanta da vila”, que dava a ordem para que os locais - mulheres e crianças - os transportassem para um armazém. Os alimentos não eram distribuídos ali, não matavam a fome na hora. Havia regras para evitar desacatos.

“Estávamos impedidos de dar comida a quem quer que fosse, nem a uma criança. Isso foi o que doeu mais”, diz o adjunto de comando do Cartaxo, confessando que quando encontravam crianças isoladas em pequenos grupos lhes davam a comida que traziam consigo.

Fome que deixa marcas

Foi para saciar a fome aos populares de Buzi que estes homens percorreram mais de oito mil quilómetros de Portugal a Moçambique. E foi a fome que viram estampada naqueles rostos, que não lhes sai da cabeça. “Não estava preparado para isto. Não imaginei que fosse ver tanta gente com fome”, começa por dizer a O MIRANTE, José Nepomuceno.

Após horas de missão, os bombeiros serviam-se das rações de combate, da água engarrafada, das bolachas e da marmelada que levavam nos bolsos. “Comer era o que custava mais. Estar de costas voltadas para 200 crianças e ter de pôr a comida à boca, quando a mim nem me fazia tanta falta e eles estavam cheios de fome. Ninguém está preparado para um cenário destes”, recorda o comandante.

Foram os bombeiros juntamente com a GNR que garantiram o transporte e montagem do equipamento de purificação de água, que o Governo português ofereceu ao Estado moçambicano para a vila de Buzi. “Até ser instalado andavam a beber a água barrenta dos rios”, ou até mesmo dos charcos que ficaram pelas ruas. “Beber aquela água foi a melhor coisa do mundo. Não me esqueço da alegria e das palavras de um senhor na casa dos oitenta anos que me disse: isto é ouro branco”, lembra Victor Rodrigues.

Ajuda ficou aquém da vontade

“Nós queríamos fazer mais, queríamos ajudar no que fosse preciso”, descreve o comandante de Benavente. No tempo entre as viagens ajudavam no que lhes permitiam fazer. Desobstruíram as vias terrestres de acesso à escola e hospital da vila, que estavam bloqueadas com troncos e ramos de árvores que os ventos a 190km/h derrubaram. Mas, assegura o comandante, aos 19 bombeiros “fica o amargo na boca de quem podia fazer mais e não fez”. Na profissão de bombeiros estão “habituados a ajudar e a partilhar”, mas ali sentiram-se “de mãos e pés atados, com um sentimento de impotência” perante aquele caos de fome e devastação.

Os bombeiros de Santarém e alguns GNR foram desmobilizados a 2 de Abril, depois de ter sido restabelecida a ligação terrestre até Buzi, com o baixar das águas do rio. Apesar de preparados para encontrar corpos naquelas águas, tal não se verificou. “Mesmo que encontrássemos corpos estávamos impedidos de os resgatar. A indicação era para os encostarmos cuidadosamente às margens e contactar a equipa forense que estava na Beira”, refere o comandante que tem curso de resgate aquático.

Em 32 anos de bombeiro, José Nepomuceno nunca tinha participado numa missão de ajuda humanitária. Aceitou o desafio por ser um sonho que queria concretizar. “Se fazia outra? Não sei, porque isto deixa-nos marcas que não são fáceis de esquecer. Um dia mais tarde, talvez”, confessa.

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