Crónicas do Brasil | 12-10-2015 00:33

João Antônio simplesmente, 2a parte (Final)

João Antônio simplesmente, 2a parte (Final)

João autografou os livros, um a um, com sua letra caprichada. Um deles, adquirido num sebo, já trazia na folha de rosto autógrafo anterior, de 16 de setembro de 1979.

A primeira parte deste texto foi motivada pela homenagem a João na exposição comemorativa pelos 450 anos do Rio, cidade que ele tanto amou, como a amaram Mário Lago e Rubem Braga, os outros dois homenageados. Mas importava menos a efeméride – fundamental, sem dúvida – do que falar do escritor e do meu único encontro com ele. Afinal, depois de anos esperando conhecê-lo, foi duro golpe saber de sua morte menos de um mês após lhe ter levado os livros dele que tinha comigo para que os autografasse. O que João escreveu numa das dedicatórias –“A Eliezer Moreira, ofereço esta Malhação do Judas Carioca e outras malhações de um tempo ruim.” –, como ficou registrado na primeira parte, não pode ser dado a público sem o acréscimo de algum esclarecimento. Vamos a ele. Os tempos podem ser ou estar ruins para qualquer um, em qualquer época, por razões várias. Por que estariam ruins para João Antônio naquele ano de 1996? Talvez seja excessivo levar a sério uma palavra lançada ao acaso de um autógrafo. Em João Antônio, no entanto, nenhuma palavra podia ser casual. Na época, repórter da revista Veredas, do Centro Cultural Banco do Brasil, trabalhando pela agência que a editava, entrei em contato para solicitar uma colaboração. No dia seguinte – 24 de setembro – ele apareceu na redação. Levava uma dessas sacolas de cartolina com o timbre de alguma loja, contendo o que me pareceu serem livros. Camisa gasta nos ombros, barba por fazer. Um brilho nos olhos. O editor – a quem eu falara dele com entusiasmo – nunca ouvira palavra a seu respeito e não o recebeu com a atenção e o interesse devidos: “Já é um senhor...” – foi a palavra de preconceito indisfarçável murmurada numa redação toda de gente jovem. O murmúrio não se dirigia só à idade, mas à camisa e à sacola como invólucros de uma humildade apenas exterior. Só quem o conhecia podia saber o quanto aquele brilho nos olhos os fazia penetrantes, inteligentes, orgulhosos. Logo – bebido o café que lhe ofereci – acendeu o indefectível cigarro. Isto quando a caça a fumantes em locais fechados já havia começado. João autografou os livros, um a um, com sua letra caprichada. Um deles, adquirido num sebo, já trazia na folha de rosto autógrafo anterior, de 16 de setembro de 1979: “Para Sônia e Antônio Henrique, ofereço esta Casa de loucos e outras casas de pouca tolerância. Com o abraço do João Antônio”. Duas páginas adiante, quase exatos 17 anos depois, cravou: “Para Eliezer Moreira, que teve a paciência de encontrar estas histórias, ofereço com um abraço”. Creio ser um caso raro, talvez único, de livro duplamente autografado. Conversamos, mas não tanto quanto eu queria – e à pergunta inevitável sobre o que ele fazia no momento, guardei a resposta: “Escreve-se o tempo todo, até enquanto se caminha...” O encontro de trabalho virou, da minha parte, uma sessão de tietagem. Isto – saber-se diante de um admirador – talvez o tenha levado a permanecer naquele ambiente mais tempo do que teria desejado. Suponho que não gostou do que viu. O anfitrião intolerante lhe pedira que apagasse o cigarro, o que foi feito. Ao sair, já do meio da sala, João se lembra e retorna de repente, para recuperar a guimba deixada no cinzeiro – na verdade, o cigarro ainda quase inteiro. Acompanhei-o até o saguão do elevador. Ao me dar conta de que podíamos terminar a conversa na rua, com café e cigarro, e corri para alcançá-lo, já desaparecera no Largo da Carioca, diante de onde ficava o prédio. Se a impressão do encontro incompleto, da conversa ligeira demais, fez que me sentisse mal, o que eu não teria sentido se soubesse que não o veria mais? João iria a São Paulo aquela semana, e, de volta para um evento literário no CCBB, em meados de outubro, de que participaria como convidado, ficamos de voltar a nos ver e a falar da colaboração. Não senti interesse, porém. No dia do evento, encontrei o auditório lotado, à espera, e a ausência do escritor foi vista como uma de suas atitudes de rebeldia ou independência. Logo surgiram na imprensa as primeiras notas sobre o seu sumiço, até sobrevir a notícia de sua morte, sozinho em seu apartamento de Copacabana. Da viagem a São Paulo não ficaram boas impressões, como se deduz da carta que escreveu a um amigo, provavelmente a última, publicada n’O Estado de S. Paulo uma semana depois da descoberta do corpo: “Todos os meus amigos, conhecidos, parentes e chegados estão atrapalhados no país que sofre de melancolia da escravidão e em que somos tratados como massa de manobra. O miserê que vi no Largo de Pinheiros, no Largo da Batata é um quadro asiático sem a cultura da Ásia, claro. Camelô acabou. Agora são uma legião triste, de cor enferrujada, só os empregados dos contrabandistas. No Largo de Osasco se planta um pedaço do Nordeste miserável. E a alegria está mais longe dali do que da lua. É o Brasil das periferias esquálidas.” Naquele 1996 o Brasil classe média ainda festejava satisfeito a estabilidade econômica, mas João Antônio parecia já consciente de que aquilo não passava de uma transição, mantendo-se atento ao Brasil real. Tempos ruins.

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