Crónicas do Brasil | 30-11-2023 16:49

Incompatibilidade

Vinicius Todeschini

O liberalismo nunca foi sinônimo de liberdade, porque liberdade não significa ser rico. Não conseguimos viver juntos, mas não podemos viver separados. Não podemos contar com a bondade dos ricos, porque existem poucos ricos realmente bondosos, nem com a revolução dos pobres, porque há poucos pobres conscientes.

Quando persistem estruturas que sustentam uma desigualdade através dos séculos, tornando-a tão naturalizada e arraigada à cultura que, mesmo um povo já consciente desse processo -inaugurado pela burguesia e reestruturado, tempo afora, por várias revoluções tecnológicas, onde a industrial se destaca como aquela que mais impacta à estrutura social e o meio-ambiente- levará muito tempo para transformar o modo de viver da sociedade. As transformações demandam investimentos em educação, para que o senso crítico não fique restrito aos capazes de perceber o continuísmo histórico, através da imposição de uma classe sobre todas as outras. Não se trata de ser comunista, nem mesmo socialista, sequer social- democrata, mas, outrossim, ter acesso ao conhecimento das formações sociais e históricas que nos ultrapassam sem que, muitas vezes, tenhamos consciência disso.

O saudoso compositor e cantor brasileiro, Cazuza, criou e gravou no seu último disco, quando já estava no final de processo que o levou a morte pelo contágio do vírus HIV, a canção “Burguesia”, onde escreveu: “enquanto houver burguesia não vai haver poesia”. O poeta escreve o que sente através dos seus próprios filtros, mas um sistema injusto socialmente, cujos males que produz, jamais compensarão os muitos bens que distribui nas mãos de poucos e que está destruindo o meio-ambiente planetário, ao basear tudo na produção contínua de bens de consumo e do lucro crescente das grandes corporações que dominam “os mercados”, não tem futuro porque vai destruir o seu próprio ‘hospedeiro’, o planeta.

A poesia escorre corrosiva do núcleo podre de uma civilização autodestrutiva, mas não é essa poesia que vai nos redimir, porque, até para isso, haverá disputas, nem que seja para levar o troféu, “The End”. As promessas do neoliberalismo formaram um paradoxo sem saída; prometem liberdade, mas só aos que, através do seu poder e dinheiro, podem usufruir dessas liberalidades e jamais confundem isso com liberdade, porque são compradas. O que prometem, realmente, é apenas liberdade econômica para o dinheiro, o que não é o mesmo, mas é igual, porque só quem tem dinheiro pode desfrutar.

Na Argentina, Milei está baixando o tom, confirmando mais uma vez o que a maioria dos políticos faz, de forma deliberada: dizem o que muitos querem ouvir durante a campanha, e, depois da vitória, diante da realidade da governança, mudam o discurso. Collor, por exemplo, dizia que só tinha uma bala para deter a inflação e, simplesmente, confiscou a poupanças de milhões. Muitos morreram diante desse infortúnio, criado por mentes delirantes que não tiveram nenhuma consideração pelos que destruiriam com suas ações, prepotentes e casuísticas. Milei quer terminar com o Banco Central, mas isso significa um ajuste fiscal sem precedentes para cortar gastos em torno de 15% do PB, o que será um corte de 90 bilhões nos gastos, justamente em um país em que o Estado é um dos maiores empregadores. A resistência política a isso será sem precedentes, se realmente esta medida for tomada. Por isso, os primeiros capítulos dessa saga poderão antecipar as previsões do meio e do final dessa história.

O liberalismo econômico nos trouxe até aqui e, mesmo países poderosos que resistiram a ele, foram cooptados e adaptaram o seu sistema ao neoliberalismo para sobreviver e gerar riquezas para uma nova elite que enriqueceu, como na China. No caso da Rússia, as privatizações transformaram, da noite para o dia, mafiosos aliados ao poder em novos milionários. As riquezas do mundo atraem e para ter acesso as grandes marcas, as grifes e aquele mundo onde a sensualidade entontece, a maioria deseja ardentemente uma chance de galgar o panteão das celebridades. É importante ressaltar que há muito tempo não é mais necessário ter uma obra para ser uma celebridade (o contrário também é válido). Tantos, hoje em dia, querem os seus minutos de fama, não só para aparecer, mas para ganhar mais dinheiro e se tornar um consumidor de elite para se sentir livre, portanto, liberdade no mundo liberal não é sinônimo de ser, mas de ter, e estamos falando de dinheiro, condição sine qua non para ‘poder’ no mundo liberal.

Parte da juventude, não a sua totalidade, luta contra o desequilíbrio ambiental, em uma guerra que a une à outras gerações, separadas por paradigmas muito diferentes em sua formação. A própria sobrevivência da espécie está em jogo e por isso é preciso superar às correntes ideológicas que nos agrilhoam e separam. Não será tarefa fácil, talvez seja mesmo impossível superar tanta estupidez e ambição, tanto orgulho e arrogância, porém, se isso não acontecer tudo acabará como está escrito nas profecias dos textos sagrados. A preservação do meio-ambiente é fundamental, mas o cerne da questão -sobre o fato do meio-ambiente estar desequilibrado- é que isso é consequência do modelo que continua vigente, agressivamente defendido por muitos e convenientemente aceito por outros. O liberalismo nunca foi sinônimo de liberdade, porque liberdade não significa ser rico. Não conseguimos viver juntos, mas não podemos viver separados. Não podemos contar com a bondade dos ricos, porque existem poucos ricos realmente bondosos, nem com a revolução dos pobres, porque há poucos pobres conscientes. A nossa incompatibilidade está destruindo o nosso próprio autoconceito.

Vinicius Todeschini 30-11-2023

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