Crónicas do Brasil | 19-09-2022 19:25

A Nova Constituição Chilena

Vinicius Todeschini

A esquerda latino-americana é recalcitrante e não percebe, antes que seja tarde, que não se pode vencer uma guerra cultural de cima para baixo. Aqui no Brasil isso aconteceu com a política de gêneros que bateu de frente com os valores enraizados por séculos de religiosidade intermitente. Para uma transformação real é preciso encarar os fatos e eles demonstram que para mudar algo desta dimensão é necessário muito mais que alguns anos de governo.

                Depois daquela onda de protestos que varreram o país em 2019, o povo chileno não aprovou a nova Constituição. Os chilenos foram bombardeados por fakes news, mas isso é insuficiente para justificar 62% dos chilenos se posicionando contrários ao projeto. Redigido por uma Assembleia Constituinte, eleita democraticamente, o projeto de uma nova Carta Magna para o país acabou derrotado por ampla margem. O voto no plebiscito era obrigatório, portanto, houve uma participação massiva nas urnas. O apoio do presidente Gabriel Boric, eleito pela coalizão, “Apoio Dignidade”, formada pela Frente Ampla e o Partido Comunista, criou-se uma grande expectativa que ela fosse aprovada, mas os setores conservadores conseguiram colocar água fria na fervura progressista, surpreendendo os institutos de pesquisa, que previram a derrota, mas não tamanha diferença. Com isso, o velho texto da Constituição de 1980, criada pelo regime de Pinochet, ditadura das mais sangrentas daquela época, continuará em vigor.         

A esquerda latino-americana é recalcitrante e não percebe, antes que seja tarde, que não se pode vencer uma guerra cultural de cima para baixo. Aqui no Brasil isso aconteceu com a política de gêneros que bateu de frente com os valores enraizados por séculos de religiosidade intermitente. Para uma transformação real é preciso encarar os fatos e eles demonstram que para mudar algo desta dimensão é necessário muito mais que alguns anos de governo, mesmo que esse governo seja eficiente e consiga resolver boa parte dos problemas da população. A religiosidade dos povos latino-americanos é muito forte e o sincretismo acabou por criar certas peculiaridades, ao amalgamar estes mananciais de crenças e mitos muito populares entre os povos originários e os que vieram para cá, escravizados pelos portugueses e espanhóis. Essas matrizes se misturaram com o catolicismo, principalmente, tornando-se referências identitárias para esses povos e tentar desconstruí-las, academicamente, não é uma boa política. Entender melhor o fenômeno –religião- entre os povos das Américas é o primeiro passo para ressignificar esses valores e não propor algo sem qualquer referência interna na maior parte da população. As táticas de guerrilha, tão usadas pela esquerda armada, por ironia, sempre obtiveram um resultado mais satisfatório nessa guerra cultural que o enfrentamento aberto contra o neoconservadorismo. Os fatos demonstram isso.

O eterno candidato à presidência, Ciro Gomes, criticou a esquerda chilena por se perder em pautas muito específicas, as chamadas pautas identitárias, que a maioria da população não entende, segundo ele isso é uma babaquice da esquerda. O excesso de academicismo da esquerda é notório, a tentativa de busca respostas em teses e dissertações criam muitos recortes e infindáveis repetições, que acabam adquirindo um ar de “verdades surradas e superadas” que ninguém mais quer ouvir, a não ser para adquirir títulos acadêmicos e curriculares. Em uma convenção eleita igualmente, entre homens e mulheres, o texto reuniu em 178 páginas, 388 artigos e 54 passagens transitórias. Apesar de avanços substanciais na área social, o texto tem pontos nodais e emperra, justamente, em temas onde a religião tem papel fundamental para trancar os avanços. A questão da defesa do aborto nas pautas progressistas é um velho problema a ser resolvido, porque a sociedade não consegue ser homogênea, nem em seus radicalismos, em relação a esse tema. Os neoconservadores conseguiram deter avanços sociais para grupos há muito excluídos, como os afrodescendentes, afromigrantes, indígenas e, principalmente, as mulheres que continuam sendo limitadas em seus direitos pela ingerência da Igreja Católica. Aqui no Brasil os evangélicos apoiam essas pautas neoconservadoras com o antigo fervor dos católicos brasileiros.

O Chile, durante muito tempo, foi o templo do neoliberalismo na América do Sul. Só com a onda de protestos de 2019 se teve uma ideia melhor do terror que esse capitalismo radical impôs ao povo chileno. Com o sistema sendo imposto durante a ditadura de Pinochet, tudo era aprovado do jeito que desejavam os Chicago Boys, discípulos de Milton Friedman, da Universidade Economia de Chicago, como Paulo Guedes, atual ministro da Economia de Bolsonaro, que trabalhou para o regime chileno nesses tempos terríveis. O nível de suicídio dos mais velhos, abandonados pelo sistema, aumentou abruptamente e as diferenças escancararam o que todos já sabem: que o capitalismo sem regulação é uma besta acéfala, insaciável e devoradora, onde os predadores não só sobrevivem, como engordam.

Vinicius Todeschini 13-09-2022

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