Crónicas do Brasil | 12-07-2022 12:30

O conceito de comunidade no Brasil

Vinicius Todeschini

A maldição da herança colonialista permanece viva e ativa em tudo que existe no Brasil, principalmente no posicionamento das elites, que não abrem mão dos seus ganhos e lucros, e continuam concentrando seus esforços em mantê-los assim, deixando os pobres e miseráveis no seu lugar, porque pobre que quer ascender é mal visto na sociedade brasileira, quase uma ofensa direta à elite entronizada no país.

                Quando Orson Welles esteve no Brasil em 1942 para filmar o episódico e semidocumentário, “It’s All True”, que tinha como escopo mostrar a diversidade étnica e cultural das Américas, foi ciceroneado por, nada mais-nada menos, que Vinicius de Moraes, na época um jovem crítico de cinema apaixonado pelo filme que consagrou definitivamente o diretor americano, “Cidadão Kane”, considerado por muitos como o maior filme da história e estreado no Brasil em 1941. A viagem de Welles ao Brasil se transformou em um grande acontecimento por parte da imprensa. Os colonizados deslumbrados com o ícone rebelde do colonizador. Foi na coletiva de imprensa, no saguão do Copacabana Palace, que Vinicius de Moraes o conheceu e a partir dali, depois de uma aproximação, começaram um diálogo por bares, boates e restaurantes tornando-se amigos. Vinicius, inclusive, deixou um escrito em inglês intitulado “My friend Orson Welles”, onde relata seus momentos marcantes ao lado do diretor americano.

                Quando foram feitas as filmagens nas favelas cariocas, hoje chamadas de “comunidades”, eles tiveram problemas com os bandidos desses lugares e tiveram que se retirar. Vinicius de Moraes, constrangido, tentou convencer o diretor que as favelas eram uma excrescência e que o governo já tinha projetos para erradicá-las, o que nunca conseguiu. O que mudou, realmente, foi o crime organizado que as tornou bases de operações para o comércio de drogas e armas, no entanto, para os moradores a vida só piorou, porque os confrontos frequentes dos traficantes com o Estado ausente socialmente, mas beligerante, criam uma lista infindável de vítimas inocentes que não param de crescer a cada novo confronto. Comunidade é um conceito politicamente correto e completamente injusto, porque as condições sociais das pessoas que precisam viver ali não são opcionais e sim decorrência de um país que se recusa a enfrentar e resolver os seus velhos problemas que se tornaram crônicos. A hipocrisia da classe dominante permite que isso continue indefinidamente e os projetos sociais, apenas, relocam pessoas em prédios mal construídos com materiais de péssima qualidade e afastados dos seus lugares de trabalho, o que é uma forma dos ricos não verem a miséria que a riqueza de poucos precisa produzir para se manter neste nível.

                A maldição da herança colonialista permanece viva e ativa em tudo que existe no Brasil, principalmente no posicionamento das elites, que não abrem mão dos seus ganhos e lucros, e continuam concentrando seus esforços em mantê-los assim, deixando os pobres e miseráveis no seu lugar, porque pobre que quer ascender é mal visto na sociedade brasileira, quase uma ofensa direta à elite entronizada no país. Por mais que os neoliberais tentem explicar de outra forma, os anos atuais confirmam exatamente isso, porque todos os políticos de esquerda que tentaram mudar isso foram perseguidos e mortos para não conseguirem alterar essa ordem perversa e desumana, o episódio contemporâneo da prisão do ex-presidente Lula por quase dois anos, meramente, confirma isso.

                A possibilidade da volta de forças de centro-esquerda ao poder apavora parte da elite, principalmente à extrema-direita, mas não creio que devam temer algo mais radical, Lula nunca se arriscou chegar ao poder com um projeto de esquerda, sempre uniu forças com a direita mais democrática. Em seus anos de presidência compôs uma dupla com José de Alencar, grande empresário do ramo têxtil filiado ao PL, que, na reeleição como vice de Lula, migrou para o PRB. Alencar apoiou o golpe de 1964, mas depois, como tantos iguais a ele, desiludiu-se com os militares. O Brasil levou 522 anos para formar essa oligarquia que se recusa terminantemente a mudar, por isso o ex-presidente sabe que, tirar os 71 milhões da fome e da miséria quase absoluta, será a sua missão e de resto seguirá tudo da mesma forma, claro que não tão ruim quanto o des-governo bolsonarista que se alimenta do ódio contra qualquer significado de justiça e equidade. Comunidade, portanto, não passa de uma forma hodierna de nomear o que está posto na estrutura do país mais injusto do mundo (embora exista muita concorrência nessa área pelo Terceiro Mundo afora). Se Deus existe, certamente o seu projeto compreende infinitas vidas para todos, porque o mundo se recusa a mudar e permanece o mesmo, ainda que pareça em eterna mutação. Talvez o moto perpétuo seja pura convulsão e por isso não exista uma real possibilidade de paz enquanto houver mundo.

Vinicius Todeschini 11-07-2022

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