Crónicas do Brasil | 27-04-2022 14:24

O país do elogio à tortura

Vinicius Todeschini

O Brasil oficial nunca quis investigar seus algozes, preferiu conciliar o inconciliável e tentar fingir que está tudo bem depois do conflito, mesmo que existam feridos e mortos de um lado e torturadores e assassinos de outro.

                O Brasil deixou a sua marca no século XIX como o último país a abolir a escravidão e no século XX foi um dos poucos países do mundo a não punir os torturadores da ditadura, iniciada em 1964 com o golpe de militar que depôs o presidente João Goulart. O regime seguiu por 21 anos perpetrando uma série de crimes contra os direitos humanos. A Argentina, no entanto, puniu e prendeu os seus golpistas sanguinários, o general e ex-ditador Jorge Videla morreu na cadeia aos 87 anos, mas no Brasil, o truculento general Newton Cruz, acusado de inúmeros crimes contra os direitos humanos, inclusive da morte do jornalista Alexandre Von Baumgarten, morreu aos 97 anos no Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, e recebeu do atual presidente brasileiro uma irônica coroa de flores com os dizeres: “tributo à democracia”. O general era famoso por sua intolerância com os jornalistas, existe um vídeo disponível onde ele agride o jornalista Honório Dantas e depois o obriga a pedir desculpas pelo que não fez. É incrível esse país! Só aqui é possível ver tamanha hipocrisia, porque a coroa de flores enviada por Bolsonaro não era uma ironia, apenas mais um ato hipócrita de um golpista que tem a desfaçatez de falar em democracia.

                Com a liberação dos áudios dos tribunais, depois de uma batalha judicial feita pelo advogado Fernando Fernandes, 10 mil horas de registros feitos, entre 1975 e 1985, vieram à tona. Eram sessões secretas, portanto os presentes estavam muito à vontade para expressar o que sentiam. É o caso do Almirante Júlio de Sá Bierrenbach, ele declara que quando vem à baila uma denúncia de sevícias, se ela for divulgada pelas agências internacionais nos daria a pecha de uma nação de selvagens, quando na verdade, segundo ele, seríamos, de modo geral, um povo que não admite violência. Já o que o vice-presidente da República, general Mourão, declarou, entre risos, sobre esses áudios é emblemático: “Apurar o quê? Os caras já morreram, pô! Vai trazer os caras do túmulo de volta? ” Ele disse isso entre risos, demonstrando total desprezo pela memória viva de um país e pelo Estado de Direito pleno. O general é um defensor do golpe de 1964, que ele chama de “revolução democrática de 64”, período marcado pela ausência de direitos humanos, censura, ataques à imprensa, precarização do trabalho, desestruturação da saúde pública, corrupção, falta de transparência e o pior de tudo; tortura para quem se opusesse ao regime, tanto praticada pelas Forças Armadas, quanto pelas Delegacias de Ordens Políticas e Sociais (DOOPS), onde o delegado Sérgio Fleury foi um dos destaques pelos inúmeros crimes cometidos e pela sua própria morte, para muitos uma queima de arquivo. Na mesma semana, o general Gomes Mattos, presidente do Superior Tribunal Militar, tribunal que custa ao país meio bilhão de reais por ano, afirmou, aliás, em péssimo português, que não tinha respostas a dar e que a revelação dos áudios não estragou a Páscoa de ninguém e chamou de tendenciosa a notícia. No Brasil até os fatos são tendenciosos…

                Carregar o signo de tamanhas contradições é ser brasileiro. É conviver com uma classe dominante da pior espécie, cujo maior esforço que faz é para se manter longe do povo à custa do dinheiro produzido pelo próprio objeto do seu desprezo. Charles Darwin, quando passou por aqui, em sua viagem exploratória no navio Beagle, presenciou, no Rio de Janeiro, um senhor maltratando e humilhando um escravo sem nenhuma justificativa. Aquilo lhe causou horror e o naturalista inglês jamais esqueceu disso e nunca mais quis voltar ao país, mesmo elogiando as nossas belezas naturais.

                O Brasil oficial nunca quis investigar seus algozes, preferiu conciliar o inconciliável e tentar fingir que está tudo bem depois do conflito, mesmo que existam feridos e mortos de um lado e torturadores e assassinos de outro. Hoje temos um governo que defende ditadores e torturadores, como o coronel Brilhante Ustra, ídolo do ex-capitão Bolsonaro, que, entre tantas atrocidades, torturou e deixou agonizando até a morte o jornalista, Luís Eduardo da Rocha Merlino. Contou depois que o jornalista, de apenas 22 anos, teria cometido suicídio ao se jogar debaixo de um caminhão em uma estrada. O país vai de mal a pior e os números estão aí para provar que, além de direitos trabalhistas e previdenciários retirados e a inflação nas alturas, estamos mergulhados em uma crise de valores sem precedentes. É um retrato duro e real de um povo que se negou a crescer emocionalmente e enfrentar as suas maiores contradições, preferiu continuar deitado em berço esplêndido, como diz a letra do hino.

Vinicius Todeschini 25-04-2022

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