Crónicas do Brasil | 24-02-2022 08:44

Saúde Mental – Um drama permanente

Vinicius Todeschini

O isolamento social e confinamento em instituições psiquiátricas, onde os que eram considerados loucos eram submetidos à normas e disciplinas extremamente rigorosas que, muitas vezes, ultrapassavam limites do que se pode considerar humano, tornaram essas instituições temidas pelo povo e estigmatizaram milhões de pessoas através dos séculos.

Quando os leprosários começaram a esvaziar-se na Europa, em meados do  século XVI, esses espaços foram ocupados pelos portadores de doenças venéreas. Em 1657,  foi fundado o Hospital Geral de Paris e aconteceu a grande internação dos pobres que vagavam pelas  grandes cidades europeias atrás da sua sobrevivência. Mais tarde, com a revolução burguesa de 1789, houve a libertação dos acorrentados de Bicêtre, em 1793, pelo médico nomeado pelo governo  

revolucionário, Philippe Pinel. Na França, o conceito de louco e loucura (‘fou’ e ‘folie’), era conhecido desde os tempos da ‘La Chanson de Roland”, por volta de 1080, mas foi no século XIX, propriamente dito, que se  desenvolveu o conceito mais moderno de “alienação mental” e, consequentemente, os especialistas nessas  doenças foram chamados de alienistas, os precursores dos psiquiatras atuais. Foucault afirma, no entanto,  que aconteceu uma ruptura do diálogo entre razão e a loucura e isso resultou de uma conjuração e essa  conjuração aconteceu por uma cisão da razão contra a desrazão. Descartes teria excluído com o seu  “cogito ergo sum” à loucura, criando assim uma oposição entre a ordem da razão à desordem da desrazão,  se duvido, penso, e se penso não posso ser louco. E assim a modernidade excluiu à loucura e criou as  bases filosóficas para o seu confinamento em espaços físicos chamados manicômios. Para Michael  Foucault, no entanto, não existem verdades evidentes e por isso todo conhecimento e saber foi criado em  algum lugar, movido por algum objetivo, por isso mesmo pode ser criticado, transformando e mesmo  destruído. Essa talvez seja a maior contribuição desse grande filósofo, a sua conceituação sobre o que é  governar: “governar significa gerenciar a vida (biopoder) desde o nascimento até a morte, e tornar todos os  indivíduos mais produtivos, sadios, governáveis”. Com isso, os ideais normativos do capitalismo neoliberal  nos tornam presas inconscientes de processos de individuação e subjetivação, controlados habilmente  pelos donos do mercado econômico. O que é a loucura então? 

Pinel criou as bases para o tratamento psiquiátrico e para explicar à loucura ele identificava três  causas: causas físicas, hereditariedade e as causas morais, nessa última se incluíam excessos de toda  ordem, exacerbação dos costumes e hábitos de vida irregulares e excessivos. Para tratar ele prescrevia o  “tratamento moral”, que consistia em uma pedagogia normalizadora, definindo hábitos e rotinas rigidamente  controlados, atividades de trabalho e lazer e medicações receitadas, exclusivamente, pelos médicos. O  isolamento social e confinamento em instituições psiquiátricas, onde os que eram considerados loucos  eram submetidos à normas e disciplinas extremamente rigorosas que, muitas vezes, ultrapassavam limites  do que se pode considerar humano, tornaram essas instituições temidas pelo povo e estigmatizaram milhões de pessoas através dos séculos. 

Em 1952 a Associação Americana de Psiquiatria publicou o DSM I com 106 categorias, o enfoque  era sobre uma base psicanalítica. Com o aumento progressivo de categorias e a confusão de linguagens  na psiquiatria surge o DSM III adotando critérios da medicina baseada em evidências. A medicina baseada  em evidências é uma articulação entre as pesquisas científicas e a prática clínica. Com isso a prática  psiquiátrica direcionou-se para a identificação dos sintomas, definição de diagnósticos e testagem da  eficácia dos medicamentos. Completamente diferente da orientação do Manuais anteriores, onde  predominavam as abordagens psicossociais e psicanalíticas, os Manuais atuais são elaborados em um  contexto da biomedicalização da prática psiquiátrica. 

As contradições atuais trazem à baila uma grande discussão sobre saúde mental: qual a  importância do diagnóstico e o quanto ele é importante ou não para o processo terapêutico? A Luta  Antimanicomial no Brasil continua refém do trabalho da saúde mental centrada na figura do psiquiatra. A  reclusão tecnocrática dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e a sua submissão burocrática repetem  um itinerário desdobrado das antigas práticas, onde no enfrentamento das crises se busca logo um  psiquiatra. É a adaptação dos pacientes às especialidades e aos modelos terapêuticos vigentes, não uma  revolução. O sistema vence no cansaço e absorve às mudanças. “Que no es lo mismo, pero es igual”.  

Vinicius Todeschini 07-02-2022

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