José Saramago: “Lisboa nunca me poderia ter dado na infância o mesmo que a Azinhaga”

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Descobrir José Saramago nos seus cadernos diários, a que ele deu o titulo de Cadernos de Lanzarote, é um dos melhores exercicios para conhecer a escrita mas também os sentimentos e as emoções vividas pelo Nobel da Literatura que nasceu nos campos do Ribatejo. O texto que reproduzimos em baixo tem uma forte ligação à sua terra Natal e foi escrito há 22 anos quando um grupo de crianças de uma escola da Golegã lhe dirigiu um daqueles questinários de férias, com as perguntas já mil vezes respondidas, mas que o escritor levou a sério e resolveu responder com a afectividade que devia às crianças que, tal como ele, nasceram nas terras do concelho da Golegã.

Chegou-me da Escola “C+S” da Golegã (a moderna didáctica é um enigma para mim: que significarão aquele C e aquele S metidos entres aspas, e ainda por cima somados?) uma carta escrita por três alunos do 6.° B, dois deles da Golegã, a Ana Filipa e a Mariana, e outro da Azinhaga, o Pedro Miguel. Dizem que estão a fazer um trabalho sobre o tema “Factos e Personalidades do Concelho da Golegã” e mandam-me umas quantas perguntas. A carta foi feita realmente em conjunto, cada um o seu parágrafo, e na introdução em que se apresentam foram ao ponto, cada um deles, de escrever o nome pelo seu próprio punho, como se nota pela diferença das caligrafias. Querem saber se me orgulho de ser da Azinhaga, se tive uma infância muito agitada, com que idade fui para Lisboa, por que escolhi o título Levantado do Chão, com que idade me apaixonei pela literatura, qual o livro que mais marcou a minha carreira de escritor, quantos livros escrevi, qual é o meu best-seller, por que não escrevo livros para crianças, se me sinto orgulhoso por ter ganho o Prémio Camões, e por que vim viver para Lanzarote. Sendo eu feito como sou, tomarei tão a sério estas perguntas ingénuas como se tivesse de dar satisfação ao interesse de um universitário em preparativos de tese. Vou-lhes dizer que não escolhemos o sítio onde  nascemos, portanto não pode haver sentimentos de orgulho por ter nascido aqui ou ali. Mas é certo que a Azinhaga me deu o que Lisboa não me poderia ter dado: aqueles campos, aqueles olivais, a lezíria, o rio Almonda (o Almonda daquele tempo, não o de hoje, que é uma cloaca), o Tejo e as marachas, os porcos queo meu avô Jerónimo guardava, os passeios de barco, as manhãs à pesca, os  banhos. O meu sentimento não é de orgulho, mas de felicidade por ter tido uma infância que pôde começar a aprender assim a vida. Dir-Ihes-ei que sempre fui uma criança sossegada, metida consigo, que a minha família era de gente pobre, que por isso é que os meus pais emigraram para Lisboa. Os primeiros anos foram muito difíceis, mudámos muitas vezes de casa (vivíamos em quartos alugados), e foi só quando eu já tinha 7 ou 8 anos que as coisas principiaram a melhorar um pouco. Mas só começámos a viver em casa própria por altura dos meus 13 ou 14 anos. Também lhes responderei que dizer “paixão pela literatura” é o mesmo que dizer “paixão pela leitura”. Ninguém será escritor se não começou por ser leitor. Essa, sim, é a verdadeira paixão.

No meu caso, que não tinha livros em casa (só pude começar a comprar alguns livros – e com dinheiro emprestado por um colega de trabalho – quando tinha 19 anos), o gosto de ler satisfi-lo, conforme me foi possível, nas bibliotecas públicas de Lisboa, à noite. Finalmente (as restantes respostas são mais ou menos óbvias), vou dizer-lhes que não sei escrever para crianças, que quando eu próprio fui criança não me interessavam muito o que chamamos “histórias infantis”, o que eu queria era saber o que diziam os livros para a gente crescida.

In Cardernos de Lanzarote volume IV página 76

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