José Saramago: o escritor da Azinhaga que sempre sofreu por causa da queda de cima de um cavalo que nunca montou

José Saramago em Azinhaga

Texto do Diário de Lanzarote que pode ser encontrado embora com outra roupagem no livro as Pequenas Memórias onde o escritor fala do tio Francisco Dinis que trabalhava no Mouchão de Baixo nos campos da Chamusca

26 de Dezembro

Violante e os seus deram-me, como presente de Natal, um cavalo de pau, de corpo esbelto e pernas articuladas. Mais parece um poldro brincalhão apanhado nos prados, ainda terá muito que crescer, mas, do chão à ponta das orelhas, já vai passando de dois palmos de altura. Irá fazer boa companhia aos seus semelhantes que, a pouco e pouco, têm vindo a invadir-me a casa. De barro, de madeira, de couro, de ferro, de bronze, de prata, de latão, há aqui de tudo. Vieram da Índia, do Usbequistão, do Canadá, do Brasil; de Cabo Verde, de Marrocos, do Alentejo, de um sítio qualquer de África… Por que tenho estes cavalos? Nem eu próprio sabia, até ao momento em que comecei a tomar apontamentos para o que um dia há-de ser O Livro das Tentações. A ocasião é boa para deixar aqui adiantadas as linhas que relatam o caso e a descoberta:

“E os cavalos? A história dos cavalos é mais triste. Uma tia minha, de nome Elvira, irmã de minha mãe, foi casada com um Francisco Dinis que era guarda da herdade do Mouchão de Baixo, parte do Mouchão dos Coelhos, na margem esquerda do Tejo (terei de escrever um dia como se fazia a travessia do rio na barca do Gabriel, ou Garviel, uma espécie de gigante de cabelos brancos, corpulento como um S. Cristóvão, vermelho de sol e aguardente).

Ser guarda de herdade era pertencer à aristocracia da lezíria: espingarda de dois canos, barrete verde, cinta encarnada, sapatos de prateleira. E cavalo. Em tantos anos – são muitos, se os contarmos dos oito aos quinze – nunca aquele tio me fez subir para a sela, e eu, suponho que por orgulho, nunca lho pedi. Um belo dia, não me lembro já por que vias e pretextos (talvez conhecimento de uma outra irmã de minha mãe, Maria da Luz, que servia em Lisboa, em casa dos Formigais da Rua dos Ferreiros, à Estrela), alojou-se no Casalinho, que assim se chamava a casa dos meus avós maternos, nas Divisões, uma senhora, “amiga”, como então se dizia, de um comerciante qualquer de Lisboa. Que estava fraca, que precisava de descanso, e ali estava a gozar dos bons ares da Azinhaga, melhorando, com a sua presença e o seu dinheiro, o passadio da casa. Com esta mulher, cujo nome não sou capaz de recordar, tinha eu umas brigas e uns jogos de forças que sempre acabavam atirando-a eu (devia ter, nessa altura, uns catorze anos) para cima da cama, peito contra peito, púbis contra púbis, enquanto a avó Josefa, de sabida, ou de inocente, ria e dizia que eu tinha muita força. A mulher levantava-se esbaforida e corada, afirmando que se fosse a sério não se deixaria vencer. Parvo fui eu, ou rematadamente ingénuo, que nunca ousei pegar-lhe na palavra… A ligação dela com o tal comerciante era coisa assente, estável, como se provava com a filha de ambos, uma garotita de uns seis anos, também a ares com a mãe. Meu tio Francisco Dinis era pequenino, empertigado, assaz marialva em casa, mas a docilidade em pessoa sempre que tivesse de tratar com patrões, superiores e gente da cidade. Não era de estranhar, portanto, que rodeasse de atenções especiais a visitante, porém de uma maneira que a mim me parecia muito mais servil que simplesmente respeitosa. Um dia, este homem, que em paz descanse, querendo demonstrar o bem que queria às visitas, pegou na tal menina, pô-la em cima do cavalo e, como palafreneiro de uma princesa, passeou-a por diante da casa dos meus avós, enquanto eu, em silêncio, sofria o desgosto e a humilhação. Anos depois, numa excursão de fim de curso, montei num daqueles melancólicos cavalos do Sameiro, esperando que ele pudesse devolver-me o que eu tinha perdido, e apenas posso imaginar: a nervosa alegria de uma aventura. Demasiado tarde: o rocinante do Sameiro levou-me aonde quis, parou quando lhe apeteceu e não voltou a cabeça quando me deixei escorregar da sela, tão triste como naquele dia. Hoje tenho imagens de cavalos por toda a casa, quem as vê pergunta-me se sou cavaleiro, quando a verdade é sofrer eu ainda os efeitos da queda de um cavalo que nunca montei.”

Em Cadernos de Lazarote Vol. III Página 223

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