José Saramago surpreendido por não conhecer Urqueira, Ourém, ao escrever sobre caso de tribunal 

José Saramago com Pilar del Río – FOTO ARQUIVO

José Saramago escrevia no seu diário sobre literatura mas também sobre aquilo que achava importante partilhar ao nível politico e sócio cultural. Não admira por isso que tenha descoberto uma notícia da RTP de 1990 que apontava para um caso de suspeita de tráfico de orgãos humanos em Urqueira no concelho de Ourém por via de movimentos na Caixa Agricola da terra.

7 de Janeiro

Monstros… Nem Frankenstein, nem Drácula, esses são uns pobres inocentes feitos de papel e celulóide, quando parece que matam, não mataram, quando parece que morrem, ressuscitam, tanto fingem a morte como fingem a vida, provavelmente por isso é que não temos a coragem de matá-los de uma vez. Os autênticos monstros são outros, dormem sem pesadelos, tomam o pequeno-almoço com a família, queixam-se de quanto lhes custa o esforço quotidiano, mas que remédio, um homem tem o dever de cuidar dos seus, da educação dos filhos, e depois vêm para a rua, conversam com os amigos e os conhecidos, lêem o jornal e abanam a cabeça, dorida do estado em que se encontra o triste mundo em que vivem. Alguns gostam de música, alguns cultivam flores, têm animaizinhos de estimação, sofrem e rejubilam por causa do seu clube de futebol, e há-os até que, neste tempo de pouca e mal sentida fé, continuam a frequentar a igreja. Hoje vão fechar uns negócios, em primeiro lugar uma partida de fetos humanos originários da Rússia, que serão exportados para a Alemanha e para o Japão, onde têm grande necessidade deles as indústrias de cosmética: certos cremes de beleza e unguentos do mesmo estilo não são nada se não levam o seu fetozinho tenro. O outro negócio pendente que hoje rematarão é um fornecimento de rins e córneas em excelentes condições, que algumas clínicas ocidentais pagam por qualquer preço, a bem de pacientes que necessitam de transplantes e que por qualquer preço estão dispostos a pagá-los. Fui ver ao mapa onde fica Urqueira, povoação de que nunca tinha ouvido falar, e mais prezo-me de conhecer menos maI o país em que nasci, terra de brandos costumes, como toda a gente sabe. Está mesmo ali, no norte do distrito de Santarém, a uns dez quilómetros de Vila Nova de Ourém. Tem uma Caixa de Crédito Agrícola que, segundo se descobriu e a polícia investiga, fazia parte duma rede de falsificação de meios de pagamento a traficantes de órgãos humanos. Graças a Deus, imagino, os directores da Caixa nunca tocaram com as suas honestas mãos os fetos congelados: só faziam a contabilidade, passavam cheques e guardavam as comissões. Para a educação dos filhos, claro.

Em Cadernos de Lazarote Vol. 3 página 12

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