José Saramago teve um irmão “imortal” que se chamou Francisco de Sousa

José Saramago teve um irmão “imortal” que se chamou Francisco de Sousa

Dos Cadernos de Lanzarote recuperamos um texto de José Saramago que fala do irmão falecido, que não chegou a conhecer, e como ele interferiu na escrita do Livro das Tentações.

18 de Junho

Quando apareci na Azinhaga, já havia na casa onde comecei a vida um menino chamado Francisco, nascido dois anos antes. O pobrezinho veio a morrer passado pouco tempo, por isso não cheguei a sentir-lhe a falta, tanto mais que a família, depois, quase deixou de falar dele: o meu pai nunca, e a minha mãe só para me dizer, em ocasiões que eu achava mal escolhidas, que o Chico tinha as faces coradíssimas, ao contrário das minhas, que sempre puxaram para o pálido. Não esperava eu que este longínquo e esquecido irmão me aparecesse de repente nas primeiras linhas do Livro das Tentações (e deveria tê-lo pensado, porque, na verdade, era, como agora se diz, incontornável…), impedindo-me de seguir para diante enquanto não deixasse no relato notícia da sua curta vida. Percebi então que não sabia nada dele, nem sequer as simples datas do seu começo e do seu acabar: para mim, era só o Chico das faces coradas, como de facto é fácil acreditar que as teve olhando um retrato seu, empalidecido (ele, sim) pelo tempo, que, apesar de tantas mudanças e andanças, ainda hoje conservo. Pedi portanto à Conservatória do Registo Civil da Golegã uma cópia do registo do nascimento, que vim agora encontrar em casa, no meio da correspondência de um mês…

Tremeram-me as mãos, e creio que se me nublaram um pouco os olhos, quando comecei a ler o papel: “Às dezoito horas do dia vinte e oito do mês I de Outubro do ano de mil novecentos e vinte, nasceu numa casa da Rua da Lagoa, da freguesia de Azinhaga, deste concelho, um indivíduo do sexo masculino, a quem foi posto o nome completo de Francisco de Sousa, filho legítimo de José de Sousa, de vinte e quatro anos de idade, no estado de casado, de profissão jornaleiro, natural de Azinhaga, e de Maria da Piedade, de vinte e dois anos de idade, no estado de casada, de profissão doméstica, natural de Azinhaga…” Ficara a conhecer, finalmente, a data do nascimento do meu irmão. Na coluna dos averbamentos, à esquerda, estaria o que me faltava saber: a data do seu falecimento. Deveria estar, mas não estava. Debaixo do nome de Francisco de Sousa, todas as linhas se encontram em branco, Francisco de Sousa não teve vida nem morte. E no entanto eu sei que ele morreu, que morreu de difteria, popularmente chamada garrotilho, no Instituto Câmara Pestana, como minha mãe nunca se esquecia de acrescentar, depois de ter recordado, uma vez mais, que o Chico tinha as faces tão coradas, que eram como maçãs camoesas. Suponho que ainda será possível encontrar o registo deste nome e desta morte nos velhos arquivos do Instituto, mas eu pergunto-me se não seria preferível deixar as coisas como estão, aquelas linhas para sempre brancas, como se o destino me tivesse dado um irmão imortal…

Em Cadernos de Lazarote Vol. 4 página 158

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